01 outubro 2008

Líder Solidário ou Potência Egoísta?

Após sessenta e um anos no exercício do poder, o Partido Colorado foi derrotado nas recentes eleições presidenciais paraguaias. A coalizão Alianza Patriótica para el Cambio (pac),de centro-esquerda,conduziu o ex-bispo Fernando Lugo à chefia do Estado. Contudo, sua vitória não é total na medida em que os Colorados mantiveram a maioria no Parlamento,tornando necessária uma “coabitação” entre os dois movimentos.

A nova realidade política paraguaia traz interrogações ao atual governo brasileiro,embora ele não tenha escondido, ao longo da campanha eleitoral, sua preferência pela vitória do candidato da pac. Vista de Brasília, a evolução da política guarani adquire ainda maior relevo e importância. Desnecessário recorrer à história para afirmar que o Paraguai, com suas marcantes características, sempre ocupou um lugar destacado na estratégia brasileira na América do Sul.

Habituado a tratar com políticos predadores no comando do país vizinho, o Brasil encontra novos e quase desconhecidos interlocutores. A partir da assunção de Lugo,cessa o descompasso ideológico entre a centro-esquerda que governa o Brasil e as autoridades governamentais paraguaias. Em outro espectro do leque político-ideológico, retornamos a um momento de compatibilidade entre os dois lados da fronteira, tal como ocorreu no período da ditadura de Stroessner e do regime militar de exceção no Brasil. Não obstante, a inédita confluência não tem o condão de afastar os dilemas e as dificuldades que marcam as relações entre os dois países no presente.

Este artigo adota uma perspectiva brasileira. Ou seja, tentará identificar as questões que compõem a agenda brasileiro-paraguaia e as estratégias adequadas para enfrentá-las,para a seguir formular um esforço prospectivo de avaliação de seus desdobramentos. Para tanto, é indispensável definir os parâmetros ideológicos e operacionais da atual política externa brasileira, especialmente no seu entorno sul-americano.

Fundamentos da política externa lulista.

O alcance e a profundidade das transformações introduzidas pelo governo Lula na administração do país são objeto de controvérsia em animados debates. Há, porém, uma certeza: a seara externa aporta muitas inovações.

Formou-se, no início do governo, um triângulo diplomático – Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia – encarregado da orientação da política internacional A um só tempo complemento e inspiração, emerge a figura presidencial, de extraordinário impacto internacional por sua origem e trajetória política, que, surpreendentemente, lidera um movimento que beira o ineditismo nas orientações internacionais do país. Excetuando o breve e inconcluso período da Política Externa Independente, no início da década de 1960, os governos brasileiros operaram muito mais como freios do que como aceleradores nas transformações do sistema internacional.

A nova filosofia que rege a inserção internacional brasileira marca uma ruptura com a tradicional postura do país, cujos dirigentes pretéritos demonstraram, de forma constante e inequívoca, satisfação com a ordem internacional vigente.Essa posição fundava-se na idéia de que uma eventual contestação do sistema traria riscos excessivos, quando comparados com as eventuais vantagens de que desfruta o imenso,no entanto frágil, Brasil.

A ascensão das forças que conduziram Lula ao Planalto trouxe consigo uma verdadeira alternância de poder. Desde a posse do novo governo, o Brasil começou a emitir sinais de desconforto diante da ordem internacional vigente. Entretanto, apesar de sua percepção inovadora do sistema internacional, a nova diplomacia não descura das relações tradicionais e mantém elevados níveis de cooperação com a tríade Estados Unidos/União Européia/Japão, como ficou evidenciado pela posição brasileira por ocasião do epílogo da Rodada Doha.

Todavia, a marca registrada da nova política externa do Brasil é sua abertura em direção aos países do Sul, especialmente aos Estados emergentes, e a busca de “uma nova geografia comercial”. A estratégia é a de reunir forças para vencer as barreiras que impedem o acesso dos produtos dos países em desenvolvimento aos mercados dos países industrializados, e de lançar as bases para o incremento das relações econômicas, científicas e culturais, numa inédita cooperação Sul/Sul.

O alcance universal, com ênfase no Sul, da diplomacia lulista não deve obscurecer a importância das iniciativas no entorno regional. Além dos esforços recorrentes para mediação de crises latentes ou abertas (Venezuela, Bolívia, Peru, Equador e Paraguai),o país comanda,sob os auspícios das Nações Unidas, inédita e importante missão militar para estabilizar a situação política no Haiti.

Inspirador de uma diplomacia voltada para o Sul, o presidente Lula concede à América do Sul uma atenção especial.Trata-se,segundo o chanceler Celso Amorim, da “prioridade entre  as prioridades”. Essas propícias condições permitem a criação de um espaço coordenado de atuação coletiva na América do Sul. Foi estabelecido um programa de ação, a indicar os  objetivos e instrumentos dos quais disporia o novo arranjo subcontinental. Entre as principais metas não-econômicas destacam-se as seguintes:

• posições comuns, por meio da emissão de comunicados oficiais, frente às situações de crise institucional na região;
• intervenções conjuntas e apresentação de projetos comuns nos organismos internacionais;
• constituição de um embrião de coordenação política e militar entre todos os países da América do Sul.

No mesmo diapasão, o Brasil concede uma especial atenção aos projetos concretos que bus-cam a integração física da América do Sul,  por meio da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana (IIrsa) . O projeto procura definir prioridades nas áreas de comunicações, energia e transportes.

É descartado o caminho de um desenvolvimento autárquico e isolado do Brasil. O que se busca é exatamente o contrário: uma melhor e mais qualificada inserção no sistema internacional e, especialmente, um olhar atento ao entorno geográfico sul-americano. Com o seu vocabulário original, o presidente Lula  considera que, “para um país como o Brasil, não interessa ser apenas um grande país, economicamente forte, com um monte de gente pobre do seu lado. É preciso que todos cresçam, que todos tenham condições de se desenvolver” . Segundo a atual administração do país, parece haver chegado o momento em que “o Brasil tem que assumir definitivamente a responsabilidade pela integração da América do Sul”.

Portanto, é a luz desse contexto e dessa disponibilidade por parte do Brasil que deve ser avaliado o relacionamento com o novo governo paraguaio. Os já tradicionais problemas da pauta bilateral deverão ser analisados sob uma nova ótica, na medida em que Assunção conhece uma verdadeira alternância de poder pela primeira vez em sua história, consubstanciando um dos mais importantes princípios da democracia representativa. A chegada do ex-bispo Fernando Lugo às mais altas funções do Estado  é prenhe de esperanças, que devem ser acompanhadas por grande responsabilidade administrativa e notável moderação política – condições indispensáveis para que os difíceis temas que orientam as relações entre os dois países possam ser enfrentados.

Os principais desafios

Países contíguos,Brasil e Paraguai delimitaram suas fronteiras por meio de um Tratado de Limites, firmado em 187 , conseqüência da traumática Guerra da Tríplice Aliança. Estendem-se por 1 6 ,4 quilômetros (sendo 9 8, estabelecidos em rios, e o restante pela fórmula de divisor de águas) .O segundo fator marcante das relações entre os vizinhos, ademais da contigüidade – condição que, por si só, afasta a indiferença e obriga os dois países a intensas relações – é a extraordinária  assimetria entre os atores, que pode ser resumida na seguinte tabela:

Ora, segundo o Brasil “as assimetrias são a característica principal da América do Sul, e elas distorcem e dificultam a realização de nosso potencial. É indispensável que todos os países possam contribuir para o desenvolvimento econômico e para a estabilidade política da região e isso depende da redução das disparidades internas e das assimetrias entre eles” .

Ao desequilíbrio constatado, adiciona-se a crise econômica que atinge atualmente o Paraguai. As conseqüências sociais dessa crise são profundas. Assim, os níveis de pobreza e indigência passaram de 17,1% e 16,1%, no período 199 – 001,para ,7% e 18,6%, respectivamente, no período subseqüente ( 00 – 006) .

Entre as questões que devem merecer atenção especial dos dois governos, sobressaem as reivindicações paraguaias referentes a Itaipu e o fenômeno da migração entre os dois países.

Altas tensões de Itaipu

A construção da barragem de Itaipu,por meio de um condomínio brasileiro-paraguaio, constitui elemento central e condicionante das  relações entre os dois países. Trata-se de situação real,fática e incontornável que pode,como tem ocorrido, merecer avaliações de diferentes matizes. Contudo, a gigantesca obra energética representa,no atual contexto das relações internacionais,o elo material mais importante construído de forma conjunta entre dois vizinhos. Itaipu vincula umbilicalmente o destino das relações.

8. Samuel Pinheiro Guimarães, op. cit.
9.Dionisio Borda,“Paraguai,Uma Marcha Lenta:Situação e Perspectiva Econômica”, em dep, 7: 180, julho/setembro 007. entre Brasil e Paraguai,independentemente dos humores políticos circunstanciais.

Seria fastidioso, e pouco esclarecedor para os propósitos deste ensaio, listar as críticas e elogios relacionados com o Tratado de Itaipu (197 ) e a conseqüente construção da barragem.Resumamos as posições da seguinte forma: o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai,signatário do Tratado, Raul Sapena Pastor, declarou, em 197 , que graças às condições financeiras estipuladas pelo Tratado,“ao final de cinqüenta anos [da assinatura do Tratado] o Paraguai possuirá, totalmente paga, gratuitamente e sem ter investido absolutamente nada, uma usina que produz cinco milhões [sic] de quilowatts/hora” 0.

Os numerosos críticos, ao contrário, consideram um eufemismo a noção de desenvolvimento associado entre os dois países. Para eles,trata-se de um processo que torna o Paraguai absolutamente dependente de seu vizinho. Situação agravada pelas condições financeiras do Tratado que “conduzirão a uma portorriquenhização [sic] do Paraguai” pelo Brasil.

De fato, há ao menos duas questões suscitadas pelos novos dirigentes paraguaios. Por um lado, a tentativa de modificar o texto do Tratado de Itaipu. Embora tal arranjo não constitua um acordo fronteiriço, suas características o aproximam deste modelo. Ora, faz parte da filosofia, da tradição e dos princípios da diplomacia brasileira jamais colocar em questão os termos dos tratados fronteiriços. Além disso, como se trata de acordo bilateral, ele somente pode ser objeto de alteração caso ambos os signatários concordem. O Brasil não somente discorda da modificação de tais acordos como também se recusa a entabular negociações com esse objetivo. A posição brasileira foi expressa de maneira peremptória pelo presidente Lula, ao declarar que “em Itaipu temos um tratado e vamos man-tê-lo. Um tratado não se modifica”.

Contudo, caso Assunção insista em rever os termos do Tratado, não poderá recorrer a outro foro ou meio senão aquele definido pelo seu artigo xxII, assim redigido: “em caso de divergência quanto à interpretação ou aplicação do presente Tratado e seus Anexos, as Altas Partes Contratantes a resolverão pelos meios diplomáticos usuais,o que não retardará ou interromperá a construção e/ou a operação do aproveitamento hidrelétrico e de suas obras e instalações auxiliares”. Não foi prevista a possibilidade de recurso a instâncias judiciais, sejam elas quais forem, e tampouco a arbitragem ou mediação. A única via possível parece ser a diplomática,de natureza essencialmente política e voluntarista.

Por outro lado,há a eventualidade de um aumento do preço da energia não-consumida pelo Paraguai e vendida ao Brasil. Nesta questão, o ministro Celso Amorim matiza a declaração presidencial. Embora não a contradiga, acena com a disponibilidade brasileira para “encontrar soluções para um país com o qual temos uma relação muito próxima”. Nesse sentido, Amorim considera “um absurdo que a energia em Assunção seja ruim, mesmo o Paraguai sendo sócio da maior hidrelétrica do mundo.[Portanto] vamos ajudá-lo a fazer linhas de transmissão importantes. É nossa responsabilidade ajudar os países mais pobres da região”.

Não podendo haver nenhuma modificação substantiva do Tratado de Itaipu – como, por exemplo, a derrogação da cláusula que reconhece “a cada um deles o direito de aquisição da energia que não seja utilizada pelo outro país para seu próprio consumo” – resta única e exclusivamente a possibilidade de ajustes tarifários no interior doTratado.No entanto,tais acertos não podem fugir dos preços internacionais, da amortização do investimento e dos custos de manutenção da grandiosa obra.

Mais do que em qualquer outro país latino-americano, a luta pelo poder político no Paraguai é uma competição em busca do controle da receita econômica do Estado, por meio de uma intrincada rede de relações. O caso de Itaipu é paradigmático . Resta saber se com a eleição de Fernando Lugo tal situação perdurará ou se, ao contrário, o excedente energético será utilizado – mesmo que parcialmente – para modernizar e industrializar o país. A proposta brasileira contempla essa última hipótese.

Como uma das conseqüências da construção da barragem e da formação do lago artificial,surge outra questão que se encontra atualmente no centro das preocupações brasileiro-paraguaias: trata-se da situação dos migrantes brasileiros estabelecidos em território guarani.

Em 1967, o general Stroessner anulou a lei que impedia a aquisição de terras por estrangeiros no interior da faixa de fronteira,fixada em 1 0 quilômetros de largura ao longo da linha fronteiriça. Acrescente-se aos atrativos da fertilidade e dos preços acessíveis (a terra do lado brasileiro chegava a alcançar valores oito vezes superiores), que a densidade populacional paraguaia concentrava-se no Oeste do país, contraposta aos grandes vazios demográficos junto à fronteira brasileira.

A intensificação da mecanização na lavoura de soja adicionada ao desalojamento de pequenos agricultores paranaenses para a construção da barragem de Itaipu provocou forte fluxo migratório,em direção principalmente às regiões de Canindeyú e Alto Paraná, no Sudeste do Paraguai.Assim nascem os brasiguaios (ou brasilguaios).

Embora não existam estatísticas confiáveis, e haja inclusive contradições dentro do próprio governo brasileiro sobre a dimensão da questão , o fato é que o Paraguai abriga quase 60% dos brasileiros migrantes que se expatriaram
em direção à América do Sul, como indica o seguinte gráfico:

Note-se que a emigração brasileira demonstra nítida tendência à diminuição, ao passo que a imigração proveniente de nosso entorno, embora em patamares baixos, tende a crescer. Ou seja, atualmente recebemos mais imigrantes da região do que emigramos. A notável e única exceção ocorre com o Paraguai. Em termos numéricos, caso exista uma diáspora brasileira na América Latina, ela encontra-se essencialmente em terras guaranis. Tal fenômeno não é compensado pelo ingresso de paraguaios no território brasileiro, como se depreende do quadro abaixo:

Ademais de sua expressiva importância numérica e da responsabilidade pela produção de 60% da soja paraguaia, a situação dos brasiguaios suscita três outras questões:

• a não-retroatividade da futura lei a ser aprovada pelo Paraguai, que veda a aquisição por estrangeiros de terras na faixa de fronteira com 0 quilômetros de largura a partir da linha fronteiriça. Provavelmente os brasiguaios transferirão o título de propriedade aos seus filhos, nascidos no Paraguai.É indispensável, no  entanto, que os princípios da proteção diplomática e consular sejam acionados pelo Estado brasileiro para resguardar os direitos de seus nacionais. O responsável pelo Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior do Ministério das Relações Exteriores, Eduardo Gradilone, após reuniões com autoridades paraguaias, garante que “a limitação da venda de terras para estrangeiros na fronteira não será retroativa”;


• muitas propriedades rurais são “tierras de mala vida” que pertenciam a opositores políticos à ditadura Stroessner ou seriam terras públicas . Não dispondo de títulos de propriedade regularizados, essas terras poderão ser confiscadas. Diante des-sa situação, o Brasil criou dois grupos de trabalho (um de Assuntos Migratórios e outro de Assuntos Fundiários) e colocou advogados à disposição dos agricultores para esclarecer caso a caso. Além dis-so, por meio de projeto coordenado  pela Agência Brasileira de Cooperação (abc), o Brasil financiará a modernização do sistema de imigração paraguaio. Um dos objetivos do projeto consiste na elaboração de um cadastro atualizado e confiável sobre os brasiguaios 0. O envolvimento da Igreja Católica na busca de soluções para essa espinhosa questão constitui excelente iniciativa. A intenção atribuída a Fernando Lugo de estimular a regularização de terras em poder dos brasiguaios deve ser entendida nesse contexto. A propósito,Fernando Lugo não aprecia a expressão brasiguaio e prefere designar os emigrantes brasileiros como paraguaios;


• a maior ameaça aos direitos e interesses brasiguaios não provém das novas autoridades do país, e sim das ameaças de invasões violentas proferidas pela Mesa Coordenadora Nacional das Organizações Camponesas (mcnoc). Há muitos relatos sobre maus tratos, invasões e desrespeito aos brasiguaios, sobretudo aos pequenos agricultores.

Provavelmente ocorrerão tentativas de invasão de grandes propriedades de brasileiros,eis que a mcnoc possui vínculos com o Movimento  dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) brasileiro.

Apesar de garantir ao novo governo uma trégua durante os seus cem primeiros dias,uma escalada da tensão é provável, ainda mais  perigosa porque muitos brasiguaios estão decididos a defender seus bens criando milícias particulares armadas. Caso as autoridades dos dois países não encontrem imediatamente uma  solução, o processo de retorno ao Brasil dos brasiguaios se intensificará. Desprovidos de recursos, os deslocados tenderão a inflar os centros urbanos e criar novas frentes de invasões e ocupação de terras no território nacional.

Demais temas da agenda brasileiro-paraguaia

País mediterrâneo, o Paraguai tinha acesso ao mercado internacional, até o início da década de 1960, unicamente pelo rio Paraná. A construção da Ponte da Amizade e a concessão de facilidades por parte do Brasil no porto de Paranaguá aproximaram a economia paraguaia do mundo.

Desprovida de liames permanentes e profundos com seu entorno imediato,a diplomacia paraguaia praticou a clássica estratégia pendular.

Com efeito, ator de menor importância relativa frente à poderosa vizinhança, o Paraguai (tal como a Bolívia e o Uruguai) adotou uma política de idas e vindas capaz de incrementar seu escasso poder de negociação frente ao Brasil e à Argentina. Com a construção das barragens binacionais (Itaipu e Corpus) e com o ingresso paraguaio no Mercado Comum do Sul em 1991, Assunção foi obrigada a repensar sua inserção regional.

Uma das estratégias utilizadas foi a de ampliar a prática pendular entre sua participação no Mercosul e as relações privilegiadas com os Estados Unidos. Uma das respostas brasileiras foi a de aceitar a constituição de um Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul  (focem), dotado anualmente de até us$ 100 milhões, para corrigir as discrepantes assimetrias entre os parceiros do bloco.

Ademais, a própria eleição de Fernando Lugo tende a inviabilizar a prática da diplomacia pendular em direção aos Estados Unidos,a começar pela provável recusa paraguaia para a instalação de uma base militar dos Estados Unidos em Mariscal Estigaribia. Prevista para abrigar vinte mil soldados, sua localização próxima da região da Tríplice Fronteira, a 00 km da Argentina e a 00 km do território brasileiro,vinha sendo negociada pelo governo paraguaio.Tanto Buenos Aires quanto Brasília consideram essa eventualidade uma ameaça e tentavam dissuadir o Paraguai de fazê-lo. Essa iniciativa infeliz vai na esteira da reativação da IV Frota us, para atuar no Caribe e no Atlântico Sul,após 8 anos de inatividade .

A região da Tríplice Fronteira abriga duas outras importantes questões envolvendo os dois países. Por um lado, as suspeitas levantadas pelos Estados Unidos de que existem atividades comerciais na área que servem de fonte para financiar o terrorismo internacional. Apesar de negada pelas autoridades dos três países, parecem surgir indícios de certas atividades ilegais propensas ao temido financiamento. O anúncio não-confirmado da nomeação, por Fernando Lugo, de Alejandro Hamed Franco , como seu ministro das Relações Exteriores, constitui indicação suplementar da sensibilidade desse assunto.

Por outro lado, o comércio informal e ilegal na fronteira constitui fonte de dissabores e de gastos para o Estado brasileiro. A imperiosa necessidade de manter uma pesada estrutura de controle da Receita e da Polícia Federal, bem como a inundação sofrida pelos centros urbanos brasileiros de produtos desprovidos de controle de qualidade e que não recolhem impostos, constitui uma afronta aos mais elementares padrões de administração pública.

Conclusão

E sta breve incursão indica a extraordinária pauta que os governos dos dois países devem enfrentar. A complexidade da tarefa é potencializada pelo sofrível desempenho do Paraguai em alguns dos mais importantes índices avaliativos mundiais. Assim, segundo a Transparência Internacional, entre 18 Estados o Paraguai coloca-se em 144º no índice sobre a percepção da corrupção; o Fórum Econômico Mundial de Davos indica que, entre 117 economias avaliadas, o Paraguai é a 11 ª em competitividade econômica. Finalmente, a população paraguaia, interrogada pelo Latino barómetro sobre o seu apreço pela  democracia,indicou que somente 1 % estão satisfeitos com ela. Com esse resultado, o Paraguai coloca-se em último lugar entre os países avaliados.

Qual deve ser a atitude brasileira perante um país nessas condições e que tem a sua frente um governo que deve trilhar o caminho da democracia e do desenvolvimento? Devemos “deixar o garrote apertado na garganta do novo governo paraguaio” ou, ao contrário,aportar nossa solidariedade, na tentativa de encontrar soluções conjuntas e consensuais? O caminho da solidariedade, trilhado atualmente pelo Brasil, na busca de um mínimo de justiça nas relações internacionais, é o único capaz de conduzir a Humanidade à paz. Os demais, como demonstram os atuais conflitos, desembocam tão-somente numa “paz dos cemitérios”.
Com seus erros e acertos, o atual governo tenta alterar,sem bravatas e personalismos,uma ordem internacional que privilegia o unilateralismo político e a exclusão socioeconômica de três quartas partes da Humanidade. Embora passível de numerosos aperfeiçoamentos, o povo brasileiro encontra, na atual gestão, os rudimentos dos verdadeiros interesses nacionais, inspirando a crença de que a política internacional pode vir a ser um dos grandes feitos do governo Lula.

O Brasil não deve comportar-se de maneira imperialista frente a um vizinho debilitado e empobrecido. Não podemos lançar mão dos mesmos instrumentos que condenamos no passado, quando foram contra nós utilizados pelas grandes potências. A atitude serena, responsável e firme do governo brasileiro coaduna-se com o que deve ser a diplomacia de um país democrático: firmeza nos princípios e maleabilidade no método. Essa é a fórmula que melhor defenderá o interesse nacional. É também chegada a hora de colocar interesses setoriais brasileiros em segundo plano,passando a ver nos interesses coletivos da região, a médio e longo prazos, o verdadeiro e legítimo interesse do Brasil.

Não será com arroubos nacionalistas e com medidas musculares que avançaremos na defesa dos nossos interesses e do direito. Ao contrário: tal tática aprofundaria os litígios,como a história regional tem demonstrado. Não devemos trilhar um caminho que conduziria à implosão da América do Sul. A grandeza de uma nação provém da parcimônia e da responsabilidade que orientam suas relações com os mais débeis. Essa é a lição que atualmente o Brasil oferece ao mundo.

É doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra, Professor Titular da Universidade Federal de Santa Maria, Diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (fadisma) e Membro da Comissão Jurídica Interamericana (cji) da oea.

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