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Interesse Nacional
01 outubro 2014

Mal-Estar na Sociedade Brasileira

Por que nos sentimos tão mal na vida social? Este é um tema constante nas conversas, na experiência social, pelo menos do meio social e cultural a que pertencemos, nós, autores e leitores desta revista. Estamos insatisfeitos com a má qualidade dos serviços públicos. Muitos reclamam da corrupção que veem em um ou mais dos três níveis de governo. E há mais, muito mais. Mas, tal preocupação não parece adquirir tanta relevância no discurso e na prática dos políticos. O que, neste mal-estar, depende da política e de seus atores? E o que vem das linhas mestras da vida contemporânea, como, por exemplo, a crescente individualização, notada desde, pelo menos, o final do século XVIII, trazendo, por um lado, maior liberdade pessoal e, por outro, um enfraquecimento do laço social? Aqui, à diferença dos números anteriores da revista, e justamente porque este número vai circular durante as eleições, a ênfase será mais na vida social do que na política. Porém, o quadro aqui desenhado pretende ser também um desafio para futuros governantes e agentes políticos em geral.
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Há que perguntar, inicialmente, quem é este “nós” que sente tal mal-estar. Duas narrativas antagônicas cindiram a sociedade brasileira nos últimos anos. Por coincidência, a revista Inteligência dedica a capa de seu número mais recente ao que chama “Mal-estar na burguesia”1: quem estaria descontente seriam as classes médias e altas, ao contrário dos mais pobres, beneficiários principais da forte inclusão social ocorrida nos últimos dez anos. Temos, hoje, com efeito, um corte radical entre duas narrativas sobre o Brasil. Uma delas, a mais presente na opinião pública, isto é, na mídia e nas camadas sociais com maior acesso a ela, mas derrotada nas eleições gerais de 2006 e 2010, condena fortemente os governos do PT, entende que eles promoveram a corrupção em escala inaudita no País, acusa-os eventualmente de demagogia e até mesmo de comprarem votos populares com seus programas sociais2. Outra corrente, com menor presença na mídia, mas alguma frequência nas redes sociais –detentora de maioria no eleitorado nas eleições de 2006 e 2010 –, aprova os governos do PT, porque integraram na sociedade de mercado ou dos direitos grande número de pobres e, implantando programas como o Bolsa Família, o ProUni, as cotas e o Mais Médicos, melhoraram a vida de muitos brasileiros. Até mesmo no plano ético temos uma clara cisão. Para a oposição, a grande questão ética é a da corrupção ou não no trato dos dinheiros públicos, enquanto para a situação o ponto ético por excelência é o fim da miséria. O que para um lado é ético, para o outro, praticamente não se menciona. Vivemos, assim, uma divisão bastante acentuada entre duas visões do Brasil. O problema é que esse racha não se limita à interpretação dos fatos. Se tivéssemos pelo menos um acordo quanto aos fatos e uma divergência quanto à interpretação estaríamos possivelmente em uma situação melhor, do ponto de vista do diálogo. Mas, os próprios fatos são vistos de forma diferente pelas duas famílias da divisão. A oposição tucana concentra o fogo no que chama mau desempenho da economia, enquanto a situação nega que seja essa a condição real do País. E até mesmo no lazer vimos a divisão, quando segmentos da população que, em outros tempos, teriam torcido pela seleção brasileira na Copa do Mundo, afirmaram desejar a derrota do Brasil, para evitar que o governo fizesse uso eleitoral dela.
Daí que cabe a pergunta: mal-estar para quem? Temos um mal-estar da sociedade inteira ou ele está concentrado nas camadas sociais mais abonadas? Trata-se de um sentimento de forte marca ideológica, ou corresponde ele a uma realidade efetiva? Lembro que, quando, nos anos 1980, muitos de nós, professores universitários, reclamávamos da má qualidade do ensino público gerada pela ditadura – antes deste dado as escolas pertencentes ao Estado muitas vezes figuravam entre as melhores do País – e ouvíamos a resposta, dada já por gestores democráticos, como, por exemplo, colaboradores do governo Franco Montoro, em São Paulo, segundo a qual a boa qualidade anterior servia a uma elite, enquanto a má qualidade na época representava, apesar de tudo, uma promoção para as multidões que antes não tinham acesso à escola. Com efeito, até o final dos anos 1960, se prestava um vestibular, o “exame de admissão”, para se entrar no ginásio, que corresponderia ao atual sexto ano do ensino fundamental – o que hoje soa como uma política absolutamente desastrosa no trato das crianças, no caso, pobres. Certas reclamações precisam, assim, ser consideradas cum grano salis. Até porque não estão fora do quadro de uma forte polarização política que marca o País desde o momento – para uns feliz, para outros, infeliz – em que após o impeachment de Fernando Collor, os dois melhores grandes partidos que temos, PT e PSDB, assumiram cada um a liderança de um lado do espectro político.
Bases para o descontentamento
Talvez por essa polarização, o mal-estar a que aludimos parece ter dois perfis principais. O primeiro é o dos que, num processo que parece recorrente em nossa história, ao menos recente, sentem desânimo pelo Brasil. As razões podem ser as mais diversas, mas a fenomenologia – a aparência, o fenômeno, a manifestação, ainda que não a causa profunda ou verdadeira – é que o País, ou seus governos, não dão aos cidadãos o que estes merecem. Pagam-se impostos, mas o retorno não é garantido. Uma equação se estabelece, pela qual, primeiro, se afirma o descontentamento ante a má qualidade dos serviços públicos e, segundo, ela é atribuída à corrupção dos membros dos dois poderes democráticos eleitos, Legislativo e Executivo, e eventualmente à dos três, incluindo nesse rol o Judiciário. Não é fortuito que esse descontentamento se acirre em particular na classe média. “Classe média” não é um conceito científico, mas apenas uma noção, passível de interpretações as mais diversas. Contudo, penso que a descrição mais adequada desse termo, nas condições presentes brasileiras, se daria pela promoção social que muitos sentem precisamente ao deixar as filas dos serviços públicos básicos – educação, saúde, transporte e segurança – e começar a pagar pelos mesmos, ainda que em outras filas. Sustento que a autopercepção como membro da classe média, no sentido de um upgrade social e econômico, ocorre em especial quando se adquire um seguro ou plano de saúde e se sai do transporte coletivo. São dois sinais de emancipação de forte carga simbólica. Podem ser complementados pelo acesso à educação privada e pelo recurso à segurança privada, mas o que dá o tom, o que efetua a promoção social, é dispor de um atendimento médico um tanto melhor e de um veículo que, em tese, dá mais conforto e mobilidade. Ora, certamente, a ninguém agrada pagar duas vezes pelo mesmo serviço essencial. O que caracteriza a classe média, neste sentido, é pagar uma primeira vez pelo serviço em mãos do Estado, o qual ela não utiliza, e uma segunda vez por um serviço privado, que no frigir dos ovos também não é grande coisa. Mas, seria difícil estarem as pessoas satisfeitas com um mundo no qual sentem essa punção constante do dinheiro que conquistaram com seu trabalho em troca de tão pouco. Daí que eu não concorde com aqueles para quem a classe média é simplesmente reacionária ou movida somente pela ideologia. Há bases materiais para o seu descontentamento.
Numa outra narrativa, a dos que se beneficiaram mais das políticas de inclusão social dos governos petistas – embora estas não tenham prejudicado ninguém, uma vez que foram conduzidas sem efetuar uma transferência significativa de renda, que eticamente seria legítima, dos que mais tinham aos que pouco ou nada tinham –, é provável que aquilo que foi conseguido gere, não a satisfação de se ter chegado a um patamar bom, mas uma independência que leve as pessoas a quererem mais. Não é fortuito que muitos, em vez de atribuir seu resgate da miséria ou da pobreza a políticas de governo, na verdade, digam que o conseguiram pelo seu estrito esforço próprio. Não é casual que cresçam as denominações religiosas que, à diferença do catolicismo, maior ênfase depositam no empenho pessoal, descartando o peso que a religião, ainda majoritária no País, tradicionalmente atribuiu aos laços e vínculos com os próximos.
O governo será sempre o culpado?
De qualquer forma, parece que uns, na primeira narrativa, sentem o País em decadência, enquanto outros, na segunda narrativa, o sentem como insuficiente. Os primeiros vivem a política atual como tragédia e por vezes se colocam a um passo de uma insurreição, felizmente apenas – mas intensamente – simbólica3. Os segundos vivem a política como insatisfatória, talvez desprezível, e também querem mudanças, embora estas – para eles – se deem mais num continuum em relação ao que tem acontecido do que numa reversão de rumo. São duas narrativas diferentes, mas a grande novidade é que os beneficiários da ascensão social não são mais gratos aos governos durante o mandato nos quais ela se deu em escala maciça. Não é casual que as pesquisas tenham dado ao desejo de mudança constantes dois terços da população, desde que as manifestações de junho de 2013 mostraram que a tampa da panela de pressão estava a ponto de explodir. Daí que, independentemente do resultado das eleições, o País sente um mal-estar com muito do que hoje vive.
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A convicção parece ser, mais uma vez, de que o Brasil – ou seu governo, ou seus governos, – está/estão faltando ao encontro marcado. Contudo, em que medida é o poder público e em que medida é a própria sociedade que deixa de cumprir seu papel? Não diminuo a responsabilidade dos governos ao observar que temos uma certa adicção ao Estado. Por exemplo, mal tinha terminado a Copa do Mundo, que, se não foi um sucesso dentro dos campos, o foi fora deles – isto é, se não deu certo o que dependia dos jogadores e da CBF, mas o que dependeu dos governos funcionou melhor – e eu lia jornalistas reclamando que o governo não tinha preparado adequadamente o País para o turismo, e deveria fazê-lo para os Jogos Olímpicos. Mas, não há empresa privada, no Brasil? Não há organização da mesma? Será sempre o governo que deverá agir, o governo (e qual deles?) o culpado do que não foi feito? E é mais que curioso ler isso, por vezes, na pena de soi-disant liberais que, de resto, condenam o governo por controlar demasiado a atividade econômica. Esse filialismo seletivo – o complemento do paternalismo – a situação dos que pedem que o governo os acuda – mais atrasa do que avança nossa cultura política.
Liberdade para escolher
Seria fundamental pôr fim ao alheamento dos cidadãos à polis. Falei das empresas, no parágrafo anterior, mas é hora de as pessoas jurídicas, sim, mas sobretudo das pessoas físicas se empenharem em resolver os problemas do País. Há sinais alvissareiros. Ao terminar a ditadura, ordens e, sobretudo, proibições, interditos e limitações eram constantemente expressas com o sujeito oculto na terceira pessoa do plural: “fecharam essa rua”, “aumentaram o imposto”, “subiram os preços”. O cidadão se sentia súdito, sub-dictus, aquele que está abaixo do que o poder diz, não aquele que forma, ativamente, a cidade política. Felizmente, essa expressão foi sumindo, sumindo, até que praticamente sumiu. Em vez de subentendermos um “eles”, sujeito que não era enunciado como nome, mas nem sequer como pronome, hoje, damos sujeito às frases, mesmo àquelas mais negativas que reclamam do governo. Temos ainda uma grande imprecisão sobre qual governo, qual partido, quais dirigentes escolher. Confunde-se com frequência o que é o papel da União, o do Estado, o do município, e cobra-se de um o que é tarefa do outro. Mas o desocultamento do sujeito repressivo é um avanço notável em nossa relação com a política. Embora um dos artigos deste número vá criticar o alheamento das instituições ao bem comum, cabe lembrar que somente a ação concertada dos cidadãos porá fim a tal descaso; ou seja, que também precisa terminar o alheamento de muitos de nós à coisa pública.
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Finalmente: para não sermos provincianos, cumpre notar que um problema decisivo em nossa sociedade é que nunca na história do mundo fomos tão livres, para escolhas políticas, profissionais e pessoais. Podemos eleger os governantes, tendo acabado o direito divino dos reis, escolher a profissão de nosso agrado, escapando às castas e guildas, e viver com a pessoa de nosso gosto, emancipando-nos das tutelas de famílias e clãs. Esta sensação de liberdade, se não é inebriante, é porque muitos nem têm ideia de como foram as coisas outrora; pensam que tudo isso é normal, e talvez a liberdade seja, mesmo, mais normal do que as mil formas anteriores de autoritarismo.
Mas, isso vem junto com uma perda de referenciais, com uma desorientação generalizada. Este processo, que passa por uma progressiva e aparentemente irreversível tendência à igualdade, pelo menos de direitos, é notado desde Tocqueville. É também estudado por Norbert Elias. Cada vez nos individuamos mais. Cada vez nos distinguimos mais uns dos outros. Cada vez queremos mais direitos e mais bens. Isso faz que os elos sociais, que no passado montavam a estabilidade social e política, se tornem insuportáveis, caso não adquiram a forma mais flexível do laço social.
O que era elo tornou-se grilhão. O ferro prende, o tecido se distende. O tecido social hoje somente subsiste se for formado por laços mais frouxos. Ninguém mais, pelo menos no mundo cultural que é o nosso, e que tende a se expandir no Ocidente e fora dele, vê razões fortes para manter um relacionamento que se tornou inaceitável, horroroso. As pessoas podem até mesmo demorar a tomar a decisão – da palavra cisão, convém lembrar – de cortar algo que lhes é nocivo, mas a tendência é essa. Contudo, ao mesmo tempo que ficou mais fácil se libertar, ficou mais difícil manter compromissos. Com o ataque ao grilhão, o próprio laço entrou em crise. Descartar o outro – o socius, seja de negócios ou de partido, seja de amor ou amizade – quando ele se tornou incômodo é mais fácil do que reparar os fios esgarçados. Cada vez somos menos insubstituíveis. Fomos nos tornando descartáveis. O peso disso é terrível. A mesma sociedade, ou os mesmos membros da sociedade, que se regozijam ao se libertar de pesos mortos, sofrem extraordinariamente quando sentem que eles mesmos, aos olhos de outros, também serão vistos como pesos mortos. Este movimento é mundial. As dificuldades no viver juntos, as aporias do convívio, não são uma jabuticaba. Não existem somente no Brasil. É verdade que temos uma pauta nada pequena de problemas, em especial o fato de que o Estado brasileiro não foi capaz, ao contrário dos desenvolvidos, de fornecer educação, saúde, segurança e transporte públicos de qualidade – o que tenho chamado de “quarta agenda democrática”.4 Mas, mesmo resolvidos estes problemas, que pelo menos podem ser identificados e foram postos na cena pública desde meados de 2013, perdurará essa contradição entre uma sociedade cada vez mais afeta à liberdade individual e, ao mesmo tempo, absolutamente necessitada de laços, de valores éticos, de disposição ao convívio com o diferente, sem os quais a própria vida social poderá sucumbir. Discutir nossas premências, os fardos que uma história nem sempre boa nos legou e que as gerações anteriores não venceram, deve se fazer à luz dessa tendência generalizada de nosso tempo. Está em jogo, não apenas a ineficiência de nosso Estado, não apenas a pouca educação política de nossa sociedade, mas também esta crise de vocação de nosso tempo. Ou seja, há vários mal-estares, ou o mal-estar tem várias camadas, os quais convém identificar e trabalhar.
1 A revista – número 65, de abril-maio-junho de 2014, lê- se na URL http://www.insightinteligencia.com.br/65/. O artigo destacado na manchete é “O Indiscreto ódio da burguesia: quem tem medo de Dilma?”, do historiador João Bettencourt, acessível no mesmo link.
2 A condenação ao Bolsa-Família desapareceu das campanhas do PSDB desde pelo menos 2006, tendo seus três candidatos à presidência desde aquele ano – Geraldo Alckmin, José Serra e Aécio Neves – elogiado o programa e proposto ampliá-lo. Contudo, por parte dos simpatizantes da oposição, é frequente a condenação ao Bolsa-Família, chamado eventualmente de bolsa-esmola e expresses análogas, como se pode ler nos comentários de leitores desse perfil ideológico na Intenet. Já o mais recente programa petista de inclusão, o Mais Médicos, é criticado tanto pelos eleitores quanto pelos líderes da oposição.
3 Exemplos a rodo; um basta: os insultos dirigidos à presidenta da República na abertura da Copa do Mundo, esquecendo que ela representava o Estado brasileiro, e não um partido.
4 Ver meu artigo, no número 25 desta revista, “Eleições 2014 – A Quarta Agenda da Democracia Brasileira (Ou: o que 2013 Trouxe)”, http://interessenacional.uol.com.br/index.php/edicoes-revista/eleicoes-2014-a-quarta-agenda-da-democracia-brasileira-ou-o-que-2013-trouxe/

Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, foi professor visitante na Universidade de Columbia em Nova York, em 2003-2004, e diretor de avaliação da Capes, órgão do Ministério da Educação (2004-2008). Recebeu o Prêmio Jabuti de melhor ensaio (2001), a Ordem Nacional do Mérito Científico (1998) e a Ordem de Rio Branco (2009). Seus principais interesses estão nos temas dos valores democráticos e republicanos, que incluem a escolha livre dos governantes e das leis, a honestidade no governo e o direito à divergência mais amplo possível. Entre outros livros, publicou: A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (que ganhou o Prêmio Jabuti de Ensaio, 2001), Folha explica Democracia, Folha explica República), O Afeto autoritário – televisão, ética, democracia (que discutiu no programa Roda Viva, da TV Cultura), A ética na política. Também organizou uma série de 12 programas sobre Ética para a TV Futura, depois exibidos na TV Globo. Leciona ética para jornalistas no curso da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), voltado para dirigentes de jornal. Desde 2011, mantém uma coluna semanal no jornal Valor Econômico, às segundas-feiras, sobre política.

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