Mau Projeto de Reforma da Lei Rouanet
O objetivo da política cultural é preservar a diversidade. Ameaçada pela moda, pela política, pelo mercado, pela globalização e pelo tempo.
Pela moda, sempre, já que somos um rebanho. Pela política, pois cultura e arte podem ameaçar o poder.
Pelo mercado, desde o início do capitalismo. Pois sobrevivem e são viáveis apenas aquelas atividades artísticas que dão lucro.
Pela globalização, que estreita contatos e relacionamentos entre culturas diferentes e dissolve as diferenças. A internet, por exemplo, é um veículo que contrapõe as diferenças e, ao mesmo tempo, tende a igualá-las.
E pelo tempo, que “moderniza” e mata culturas tradicionais e a cultura popular.
A política cultural não tem como objetivos promover a vanguarda ou “educar” o público promovendo a cultura erudita, a cultura “nacional” ou valores estéticos específicos. O inimigo a ser vencido pela política cultural não é o mau gosto, mas o gosto médio, como disse Ariano Suassuna, embora devesse ter dito o gosto “modal”.
A política cultura se baseia num dogma –que a diversidade é a mãe da criatividade.
A diversidade é um bem público, assim como os bens culturais – quadros, músicas, danças populares, arte multimídia, poesia, literatura. Não são bens públicos municipais, estaduais ou nacionais. A preservação das igrejas barrocas de Minas Gerais interessa tanto aos mineiros e aos brasileiros quanto aos chineses ou aos franceses. Assim como a preservação de Notre Dame ou da Muralha da China interessa aos brasileiros.
Se as igrejas mineiras devem ser preservadas pelo governo federal, pelo governo de Minas ou pela Unesco é questão administrativa cuja resposta não é clara.
Em diversas atividades do Estado, a regra é a contratação de quadros administrativos com estabilidade, de forma que possam tomar decisões independentes do governo do momento. Como no caso de juízes, promotores e delegados. Ou professores e auditores fiscais.
Em nome da diversidade, no caso da cultura, a regra ótima é permitir que as decisões sobre o apoio a diferentes projetos culturais sejam tomadas por uma pluralidade de tomadores de decisão – empresários da indústria cultural, organizações da sociedade civil, setor educacional e, sem dúvida, o próprio Estado.
Diversidade e democracia precisam conviver com os que as ameaçam. Assim como regimes democráticos conviveram com partidos comunistas mesmo quando estes propunham o fim da democracia; a diversidade cultural, por sua vez, deve conviver com o dirigismo estatal mesmo que este no passado tenha proibido “arte decadente”, durante o nazismo, ou “arte burguesa”, durante o regime bolchevista.
Sobre a política cultural no Brasil
O Brasil é país de ricos e pobres. Por um lado, há escassez aguda de recursos públicos demandados para diferentes fins e por diferentes segmentos da população. Por outro lado, o acesso a bens culturais é impossível para boa parte da população. Recursos públicos e privados destinados a promover e financiar artistas e atividades culturais são insuficientes.
A expressão artística em muitos casos concorre com a pujança da indústria cultural de outros países. Assim, como exemplo mais forte, o cinema nacional não existiria sem o apoio governamental face à concorrência do cinema estrangeiro. Mas cinema nacional interessa não apenas aos brasileiros, como bem público, mas deveria interessar até à Motion Pictures Association se esta representasse o interesse público americano e não a indústria cinematográfica americana.
A história recente da política cultura brasileira se inicia com a Lei Sarney, que foi revogada durante o governo Collor e substituída mais tarde pela Lei Rouanet, regulamentada há menos de 15 anos.
A Lei Rouanet permite que contribuintes do imposto de renda abatam até 4% do imposto de renda devido para financiar projetos culturais que tenham sido aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC). Dependendo da modalidade, podem financiar entre 64% e 100% do valor dos projetos aprovados.
No ano de 2008, as empresas contribuintes do Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica destinaram quase R$ 1 bilhão para projetos culturais, enquanto o Ministério da Cultura trabalhou com um orçamento de R$ 800 milhões. O governo do Estado de São Paulo dedica R$ 500 milhões do orçamento à Secretaria da Cultura, além de R$ 50 milhões de incentivos fiscais baseados no ICMS.
As criticas à Lei Rouanet
O projeto de lei apresentado para substituir a Lei Rouanet não vem acompanhado de exposição de motivos. O Ministério manifestou suas críticas ao funcionamento da lei através de palestras, textos ou tabelas apresentadas no site do Ministério.
A primeira crítica refere-se ao fato de os proponentes de projetos para renúncia fiscal se concentrarem na Região Sudeste do país – Minas, Rio, São Paulo.
Aponta-se também que muitas áreas deixam de ser atendidas, como história (?), pesquisa (?), circos, cultura popular, artesanato, periódicos (?), mímica (!!) etc.
Afirma-se ainda que a Lei tende a financiar mais os projetos que tragam algum ganho de imagem à marca da empresa, deixando de lado as atividades artísticas menos atraentes para as empresas. Ou seja, são privilegiados projetos que têm um viés de mercado ou de marketing.
Finalmente, argumenta-se que o orçamento do Ministério é de apenas 20% do valor da renúncia fiscal. Ou seja, há um claro desequilíbrio entre os recursos públicos destinados à cultura: a maior parte fica a cargo das empresas e a menor é destinada a decisões do governo.
Além disso, critica-se o governo do Estado de São Paulo por usar a Lei Rouanet para financiar organizações sociais como a osesp e a Pinacoteca do Estado.
Apresentamos abaixo algumas reflexões sobre essas críticas à luz do que é possível entender sobre as propostas, não muito claras até aqui, de mudança da Lei Rouanet.
Primeiro, a concentração na Região Sudeste. A maior parte das empresas que pagam IRPJ, especialmente as maiores empresas estatais – Petrobrás e BNDES –, está localizada na Região Sudeste. As regiões Norte e Nordeste têm um menor numero de empresas contribuintes do IRPJ. Além disso, não contam com comunidade de produtores culturais que saiba utilizar o mecanismo de renúncia como a Região Sudeste. O assunto é delicado do ponto de vista da federação. Afinal de contas, é a Região Sudeste, especialmente São Paulo, que transfere grande parte das receitas tributárias aqui coletadas para outras regiões da federação.
Segundo, não é óbvio que projetos culturais nascidos no Sudeste refiram-se a “arte” ou “cultura” do Sudeste. Se são projetos culturais, têm caráter público. Ivete Sangalo cantando em São Paulo é Nordeste ou Sudeste? São Paulo tem a maior concentração de grupos de maracatu do Brasil. Música de concerto da osesp interessa apenas a São Paulo? Qual a importância da osesp e seus músicos para a música de concerto no país? O Museu Nacional de Belas Artes tem um acervo de obras “nacionais” e a Pinacoteca, de “arte paulista”? Ainda sob este aspecto, muitas empresas do Sudeste financiam projetos nacionais, isto é, de artistas e interesses localizados em outros estados, ainda que os proponentes estejam localizados na região.
Terceiro, o viés de mercado nos projetos apoiados por empresas através da Lei Rouanet é inevitável. O caso mais espetacular – o Cirque du Soleil – poderia ser evitado se o Ministério da Cultura, ouvindo a CNIC, não o aprovasse, já que se destinava a público capaz de pagar ingressos muito caros e era viável sem apoio do governo. Os membros do Ministério da Cultura que o aprovaram reconhecem o erro da decisão. O erro não deriva da Lei Rouanet, mas de um caso que a Lei Rouanet permite evitar: o apoio a projetos que são economicamente viáveis sem a utilização da renúncia fiscal.
O caso do Cirque du Soleil ocorreu há cinco anos pelo menos, mas continua sendo usado como crítica à Lei Rouanet. Embora não seja devido à Lei Rouanet e sim a decisões do Ministério da Cultura. A mesma coisa acontece com a publicação de “coffee table books”, debitados à Lei Rouanet e que o Ministério da Cultura, ouvida a CNIC, pode rejeitar usando as próprias regras da Lei Rouanet em vigor.
Finalmente, a crítica à utilização da renúncia fiscal para projetos que contam com recursos do governo do Estado. O Ministério da Cultura afirma que o governo do Estado “se furta” a financiar suas atividades culturais usando recursos da renúncia fiscal de impostos federais. A proposição pode ser invertida – o Estado contribui para projetos culturais que poderiam ser financiados apenas a partir da renúncia fiscal. Mesmo assim, de um total de 350 milhões anuais que o governo estadual dedica às Organizações Sociais, os recursos da Rouanet não chegam a 10%.
O projeto de lei
É difícil analisar o projeto de lei apresentado porque a maior parte das mudanças é deixada para decretos e regulamentações que serão editados depois. O Ministério Público Federal já questionou o Ministério da Cultura alegando a inconstitucionalidade do projeto, que muda muitas regras, mas não define qual será a mudança, deixando a critério de decisões posteriores do Poder Executivo.
Da forma como foi escrito, o projeto de lei extingue a Lei Rouanet e cria nova lei de incentivo. Entretanto, a Lei de Diretrizes Orçamentárias prevê que leis de incentivo criadas agora terão vigência de apenas cinco anos. Portanto, na sua versão original, a nova lei de incentivo teria vigência por apenas cinco anos. Dada a sua debilidade na obtenção de recursos orçamentários, a limitação da vigência a cinco anos seria extremamente perigosa para o setor cultural.
O Ministério informa que já corrigiu o projeto. Na nova versão, ele não extinguiria a Lei Rouanet. Permanece, porém, a indefinição sobre o que e como realmente mudaria sob o novo regime de incentivo à cultura. Faltou aos autores capacidade técnica e legislativa para elaborar um novo projeto de lei.
Ainda que não esteja explícito, o projeto de lei apresentado pretende aumentar a participação de recursos próprios das empresas no financiamento dos projetos culturais. Ou seja, pretende “economizar” recursos públicos para a cultura, imaginando que aumentará a participação do setor privado.
Pretende igualmente aumentar a participação dos investimentos feitos com recursos do Fundo Nacional de Cultura cujo destino é decidido pelo governo ou pela CNIC/Comitês Gestores e não pela empresa contribuinte do IRPJ.
A experiência brasileira nesse caso é clara. Os fundos destinados ao Funcad (Fundo de Direitos da Criança e do Adolescente), por exemplo, só cresceram quando as empresas foram autorizadas a destinar a um projeto específico os recursos que depositavam no fundo. Portanto, o Funcad ganhou mais recursos às custas de deixar de ser um fundo. Não há por que esperar que, no caso da cultura, a relutância das empresas em colocar recursos no fundo nacional de cultura seja menor.
Um tiro pela culatra
A luta pelo dinheiro do orçamento é dura. E legítima. Há campeões, vencedores e principiantes.
O Banco Central é campeão. Gasta em média R$ 150 bilhões por ano sem pedir autorização para ninguém; nem Congresso, nem orçamento, nem ninguém. É independente, soberano e absoluto. Tricampeão.
Depois, temos as receitas vinculadas, para educação e saúde, por exemplo. A educação tem que gastar 18% das receitas de impostos a nível federal, 25% a nível municipal, sendo que a Constituição Municipal de São Paulo vincula 31% do orçamento para a educação. É bom dinheiro. O governo é obrigado a gastar ou sofre punições importantes, que podem chegar ao impeachment, no nível municipal. A educação é uma vencedora mas às vezes perde. Como perdeu com a desvinculação de recursos orçamentários, desde 1994 até hoje.
São vencedores também os incentivos fiscais que isentam de impostos regiões ou produtos. O Brasil usa incentivos fiscais para as regiões mais pobres do pais há mais de cinquenta anos. Gastamos R$ 100 bilhões com incentivos. Outro vencedor, politicamente forte, bem articulado.
Há ainda as renúncias fiscais. O contribuinte deve 100 de impostos ao governo. A Lei Rouanet permite que o contribuinte, em vez de pagar, gaste diretamente em cultura parte do imposto devido. Isso é bom também. Mas as renúncias fiscais podem ser dificultadas por exigências burocráticas da Receita Federal. Além da Rouanet, existe a Lei do Audiovisual, mais generosa do que a Rouanet, e uma lista de projetos à espera de incentivos fiscais para o esporte e o meio ambiente.
Em termos de privilégios orçamentários, isto é, garantia de que os recursos serão gastos, em anos de fartura ou de crise, a melhor situação é a do Banco Central. Depois, vêm as receitas vinculadas, como na educação. Em último lugar, vem a renúncia fiscal.
A cultura obtém recursos públicos através de renúncia fiscal há 25 anos. A atividade cultural conseguiu abrir essa brecha, de aproximadamente R$ 1 bilhão, com uma condição: que os gastos fossem decididos pelas empresas com a aprovação do Ministério da Cultura, que avalia preços dos projetos e se os projetos precisam de apoio. Se forem projetos comerciais ou com ingressos caros, a renúncia fiscal não pode ser utilizada. É uma pequena e recente vitória – igual a 1% dos incentivos fiscais em geral, a 1/300 do que se gasta com educação e 1/150 do que se gasta com juros. Conseguimos. Mas é pouco.
As empresas não devem ser as únicas a tomar decisões sobre gastos na cultura. O governo também deve contar com recursos significativos relativamente aos recursos da renúncia fiscal. Assim como a Sociedade Brasileira Artística, a osesp, os Amigos da Pinacoteca, sindicatos, ongs e muitos outros.
A proposta de mudança da Lei Rouanet pretende aumentar a participação do governo nas decisões. É preciso apoiar atividades artísticas que as empresas não apoiariam – cultura popular, grupos amadores, arte erudita, regiões pobres do país e mímica, por que não? É justo. A diversidade cultural exige também a participação do governo na decisão. E o Ministério da Cultura tem recursos muito pequenos relativamente aos recursos da Lei Rouanet. São pequenos mesmo com relação aos recursos da Rouanet administrados pelas estatais federais.
Mas se quer fortalecer o papel do governo reduzindo a renúncia fiscal que as empresas podem utilizar. Isto é, propõe-se aumentar seu poder de decisão sobre a cultura em detrimento dos recursos sobre os quais as empresas decidem. É ingênuo.
E inoportuno. A proposta de reforma é apresentada em ano de crise. Quando o FMI, Banco Mundial e até os economistas propõem aumento de gastos. Quando outros setores propõem projetos de lei com renúncia fiscal para os esportes e o meio ambiente.
Além disso, o projeto de lei reduz o limite de dedução das despesas com projetos culturais mesmo que não utilizem a renúncia fiscal. Assim, hoje uma empresa pode abater como custo e, portanto, reduzir o lucro tributável, se financiar com recursos próprios uma peça de teatro ou um musical. Aprovado o novo projeto, esta redução será limitada (artigo 19, inciso ii, do projeto de lei). Ainda que seja um artigo perdido no meio do projeto de lei, a impressão é que o Ministério preparou o projeto de reforma orientado pela Receita Federal e transformou o projeto num projeto de aprimoramento da legislação do imposto de renda.
Ao ministro da Cultura caberia pedir mais dinheiro para a cultura, ponto. Não em detrimento de outros recursos destinados à cultura. Ao ministro da Fazenda cabe dizer não. Ao Congresso, que aprova o orçamento, cabe decidir.
Em conclusão: os recursos orçamentários do Ministério da Cultura são insuficientes, particularmente quando comparados aos recursos controlados pelas estatais federais e aos recursos da renúncia fiscal da Lei Rouanet.
A tática escolhida pelo Ministério para corrigir essa distorção não dará certo: aumentar a participação dos recursos próprios das empresas privadas ou aumentar o seu poder de decisão sobre esses recursos. No final, teremos menos recursos para a cultura ainda que o poder do Ministério seja maior em termos de participação no total, pois este será muito menor se o projeto de lei for aprovado.
A estratégia correta seria reformar apenas alguns artigos da Lei Rouanet. Primeiro, permitir renúncia fiscal maior para empresas menores, pois só assim estas teriam renúncia suficiente para financiar algum projeto cultural. Várias empresas de regiões mais pobres do país, que hoje não utilizam os benefícios da lei, passariam a utilizá-lo. Depois, mudar o que for necessário para evitar que a renúncia fiscal seja utilizada em projetos economicamente viáveis e que, portanto, não deveriam utilizar-se de recursos públicos.
Por fim, conseguir para o Ministério da Cultura poder para decidir sobre as renúncias fiscais das estatais federais. E mais recursos orçamentários.
Não há conflito político entre entes da federação. Ou entre propostas partidárias. Trata-se do conflito de sempre entre cultura e os demais demandantes de recursos públicos.
O projeto de lei apresentado parece resultar de aliança entre auditores fiscais e gestores públicos da cultura, contra a empresa privada. Exatamente quando os governos do mundo inteiro concedem mais isenções tributárias e aumentam os seus gastos. E quando o governo brasileiro isenta automóveis e geladeiras de IPI. Seriam mais importantes do que a cultura? Geram mais emprego por real investido? Produzem menos CO2?
Exatamente neste momento de crise, o Ministério da Cultura aparece fantasiado de tributarista em defesa da austeridade fiscal.
O Ministério da Cultura precisa de mais recursos. Todos concordamos. Que se alie a comunidade cultural. Que aproveite a conjuntura que distribui isenções e não mais impostos.
O ministro da Cultura deveria aspirar à presidência do Banco Central; ou ao Ministério da Educação. Se não conseguir, deveria pedir mais recursos para consolidar a pequena vitória que a cultura conseguiu. Se o ministro da Cultura se preocupa com coisas da Fazenda, quem se preocupará com as coisas da Cultura?
É economista e secretário de Cultura do Estado de São Paulo
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