Notice: Function _load_textdomain_just_in_time was called incorrectly. Translation loading for the wordpress-seo domain was triggered too early. This is usually an indicator for some code in the plugin or theme running too early. Translations should be loaded at the init action or later. Please see Debugging in WordPress for more information. (This message was added in version 6.7.0.) in /home/storage/c/6b/bd/interessenaciona1/public_html/wp-includes/functions.php on line 6114
Interesse Nacional
30 setembro 2022

Mercosul na casa dos 30

Michel Arslanian Neto

■ Michel Arslanian Neto é secretário das Américas do Ministério das Relações Exteriores

Kassius Diniz da Silva Pontes

■ Kassius Diniz da Silva Pontes é chefe da Divisão de Coordenação Econômica e Assuntos Comerciais do Mercosul do Ministério das Relações Exteriores

.

Em 2021, o Mercosul completou três décadas de existência, o que representa oportunidade para aprofundar a reflexão sobre suas conquistas e seus desafios. Desde sua criação, o agrupamento desempenha um papel estratégico. Além de fator de dinamização econômico-comercial, contribuiu para assentar a democracia no subcontinente, ampliar o perfil geopolítico de seus membros, promover um nível inédito de diálogo político e cooperação e gerar crescente aproximação entre nossas sociedades.

O objetivo deste artigo é apresentar, em linhas gerais, os avanços do Mercosul e seus principais desafios, a partir de análise lastreada numa visão abrangente do processo de integração. Discorreremos sobre o comércio intrazona, o relacionamento externo do Mercosul e a agenda interna do bloco, sem deixar de ressaltar a dimensão cidadã do esforço integracionista. O propósito é mostrar como o agrupamento continua a desempenhar papel central na estratégia de inserção internacional e do próprio desenvolvimento do Brasil, contribuindo também para o enfrentamento dos atuais desafios da conjuntura mundial.

O comércio intrabloco

Em seus 30 anos de existência, o intercâmbio comercial intrabloco multiplicou-se por 12, medido em valores correntes, e por 6, descontada a desvalorização do dólar. A última década, contudo, foi marcada por relativo declínio das trocas. Entre os diversos fatores que explicam esse fenômeno, destacam-se o descompasso e a tendência negativa dos ciclos econômicos dos membros do bloco, a persistência de barreiras não tarifárias sobre as trocas intrazona e, com especial relevo, a ascensão da Ásia no comércio internacional.

Em 2021, o continente asiático foi o destino de 52% das exportações e a

origem de 45% das importações do Mercosul. Somente a China absorveu 29% das vendas do bloco[1].  Há duas décadas, em 2000, o bloco vendia para a Ásia cerca de dez vezes menos.

Não se pode ignorar, ao mesmo tempo, que o Mercosul continua a ser o destino principal das vendas brasileiras para alguns setores importantes, como o automotivo, o químico e o têxtil. Cabe ter presente, igualmente, o perfil do comércio intrabloco: cerca de 90% das exportações brasileiras para os países do Mercosul são de produtos da indústria de transformação.

A importância desse comércio de produtos com maior valor agregado ficou ainda mais patente na esteira dos efeitos da pandemia e do conflito na Ucrânia. Esses dois acontecimentos demonstraram que, em contextos adversos, é fundamental que um país das dimensões do Brasil conte com base industrial sólida e com acesso a insumos estratégicos – como no caso das vacinas e insumos médicos durante a pandemia ou dos fertilizantes no contexto do conflito russo-ucraniano.

Essa recente desestabilização das cadeias globais de valor confirma a necessidade de que se amplie e diversifique o comércio na região latino-americana, com a geração de novos encadeamentos produtivos, com o aproveitamento pleno do potencial da região em termos de energia e produção de alimentos e por meio do fomento à integração em setores estratégicos, como o complexo industrial da saúde.

O reconhecimento desse e de outros desafios é parte do que se tem convencionado chamar de modernização do Mercosul, processo que envolve o aperfeiçoamento de mecanismos já existentes, correção de rumos em alguns setores e o esforço em ampliar o arcabouço interno e a rede de acordos externos do agrupamento.

Agenda externa do Mercosul

No que diz respeito à agenda de relacionamento externo, é preciso ressaltar, inicialmente, que, entre 1995 e 2005, o Mercosul concluiu uma rede de acordos de comércio com todos os países da América do Sul, exceto a Guiana e o Suriname. Esses acordos levaram à constituição, em janeiro de 2019, de uma área de livre comércio de fato na América do Sul, o que constitui inegável, porém ainda pouco conhecida, contribuição do Mercosul para a integração regional. O Brasil vem buscando aprofundar e ampliar essa rede de acordos comerciais na região seja por meio do Mercosul, seja bilateralmente.

Em 2021, nossas exportações para a América do Sul atingiram US$ 34 bilhões, ultrapassando os níveis pré-pandemia, enquanto as importações chegaram a US$ 26,6 bilhões, com superávit brasileiro de US$ 7,4 bilhões. Nosso intercâmbio com a América do Sul respondeu por 12,11% de nosso comércio global, com o importante diferencial de que se trata de mercado muito relevante para as exportações de bens industriais.

Se não há dúvida de que o Mercosul tem sido um fator de integração com seu entorno regional, está claro que um dos grandes desafios que ainda se tem pela frente é o de ampliar a proporção do comércio entre os países latino-americanos relativamente às suas trocas com o resto do mundo. Na União Europeia a taxa do comércio intrarregional chega a 60% e na América do Norte, a 45%[2]. Outra questão a ser enfrentada é o aumento da capacidade de exportação do Mercosul para outros mercados. Dados da CEPAL indicam que desde 2012 as exportações do bloco crescem em ritmo inferior à do comércio global (1,2% versus 2,8%, em dados anuais)[3]. Mas isso não deve ocorrer somente com o aumento do volume exportado – deve-se atentar também para a necessidade de diversificação da pauta exportadora.

Essa diversificação – que deve ocorrer, bem entendido, em uma dinâmica de contínuo incremento das vendas tanto agrícolas quanto industriais – não poderá prescindir de uma política que dê forte atenção à região. Juntamente com os sócios do Mercosul, poderemos buscar o que se convencionou denominar de “crescimento resiliente”, que esteja assentado em políticas tecnológicas e industriais sintonizadas com os rápidos avanços da economia global, com promoção de maior inclusão social e proteção do meio ambiente.

Em seu relacionamento externo, o Mercosul tem envidado esforços para corrigir o descompasso existente entre os âmbitos regional e extrarregional. Se já avançamos muito na liberalização comercial com a região, fora dela só temos vigentes, até agora, acordos de livre comércio com Egito e Israel.

Em 2019, graças ao elevado grau de engajamento dos quatro sócios, logrou-se concluir as negociações com União Europeia e com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA). No momento, o Mercosul tem se dedicado aos trabalhos de revisão técnica e jurídica dos dois acordos. Sobre o acordo com a UE, o agrupamento concordou, uma vez sanadas as pendências do acordo, em negociar documento adicional sobre compromissos em matéria de desenvolvimento sustentável que fortaleçam a implementação do capítulo sobre o tema. O Brasil tem defendido que esse documento, entre outros aspectos, deve ser de aplicação recíproca, e não contemplar a possibilidade de sanções, o que estaria em desacordo com o tratamento multilateral dispensado ao tema.

Outro avanço recente foi a conclusão, em julho de 2022, das negociações do acordo Mercosul-Singapura, que se encontra em fase de revisão jurídica. Trata-se do primeiro acordo de livre comércio do bloco com um parceiro do Sudeste Asiático. Um dos principais entrepostos comerciais e de investimentos do planeta, Singapura é hoje o sexto destino das exportações brasileiras. Ainda na Ásia, estamos projetando realizar, neste ano, a primeira rodada de negociações entre Mercosul e Indonésia.

No ritmo renovado das negociações externas, tem havido no interior do bloco um debate sobre as chamadas “flexibilidades”, em busca de formatos e mecanismos que possam conferir maior agilidade negociadora, mesmo quando não se logra um mínimo denominador comum entre os sócios de integração.

Impõe-se uma reflexão mais detida sobre como o bloco deseja relacionar-se com parceiros importantes em suas trocas e no fluxo de investimentos, como a China e os Estados Unidos. Trata-se de pensar estrategicamente como desenvolver parcerias que reforcem a capacidade dos estados-parte de enfrentar, em melhores condições, vários dos desafios para o crescimento sustentado, que passam não apenas por questões de comércio, mas também pelo avanço das agendas da inovação tecnológica, da integração produtiva, da sustentabilidade e da conectividade física e digital, entre outras.

Agenda interna do Mercosul

Ainda no marco da modernização do bloco, o Mercosul logrou, em julho de 2022, um importante resultado ao realizar a primeira revisão abrangente da Tarifa Externa Comum (TEC), com redução horizontal de 10% das alíquotas ad valorem. Não deve ser minimizada a capacidade demonstrada pelos quatros sócios de alcançar consenso sobre assunto em que havia diferenças de perspectivas, em contexto desafiante. A expectativa é de que essa rebaixa constitua um primeiro passo de um processo de revisão progressiva dos níveis e da estrutura da TEC, com vistas a incrementos de produtividade e competitividade.

Embora as questões tarifárias tenham relevância natural nos debates sobre os resultados do Mercosul, o agrupamento tem buscado promover o comércio também em outros temas. Em 2017, foi concluído o Protocolo do Mercosul sobre Compras Governamentais. Em dezembro de 2019, o bloco aprovou o Acordo sobre Facilitação do Comércio, para agilizar e simplificar os procedimentos relacionados ao fluxo de mercadorias na região. Outro importante avanço foi a assinatura, em abril de 2021, do Acordo sobre Comércio Eletrônico do Mercosul, o mais moderno entendimento dessa natureza já celebrado pelo Brasil.

A integração produtiva é um objetivo que tende a assumir importância cada vez maior. Em alguns segmentos, como o automotivo, já há encadeamentos historicamente estabelecidos. A pandemia demonstrou o caráter estratégico do complexo industrial da saúde, tema que foi objeto de debates, em 2021, no âmbito do Fórum Empresarial do Mercosul. É fundamental que haja continuidade de iniciativas como essas, de forma que possamos mapear oportunidades e atuar para reforçar a capacidade produtiva, exportadora e tecnológica da região, com geração de empregos de qualidade.

Está claro que a criação de encadeamentos produtivos passa pelo fortalecimento da infraestrutura física sub-regional. No primeiro semestre de 2022, os estados-parte decidiram incorporar a infraestrutura regional à agenda permanente do bloco. Em sua atuação no tema, o governo brasileiro deverá estar atento à verdadeira transformação econômica em curso na parte ocidental e norte do país, em que o significativo incremento das exportações dos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Roraima tem gerado uma demanda cada vez maior de integração com a vizinhança, em particular por meio de corredores bioceânicos[4].

Os países do Mercosul têm demonstrado, ademais, crescente preocupação com o protecionismo assentado em argumentos ambientais, muitas vezes em detrimento dos produtos em que somos mais competitivos. É urgente e necessário, por isso, que os estados-parte se articulem cada vez mais para enfrentar essa tendência e deem atenção especial à promoção e à consolidação das credenciais de sua agricultura sustentável.

O potencial do Mercosul no campo energético é igualmente conhecido. Em 2021, foram retomadas as discussões sobre como promover maior integração desse setor. O principal resultado foi a adoção de declaração ministerial que traça uma agenda de futuro para os países. O documento contempla a identificação de novos projetos de interconexão elétrica e a atenção que se deve dar à transição energética global para um futuro com menores emissões de carbono, o que oferece novas oportunidades no segmento de energias limpas e renováveis.

Todos esses aspectos se conectam com outra dimensão importante, que é a do chamado Mercosul Cidadão, com regras que beneficiam diretamente a livre circulação de pessoas e oferecem um marco jurídico comum em temas como reconhecimento de diplomas e currículos, previdência social, justiça, saúde, integração fronteiriça. Consolidando esse compromisso com a vertente cidadã, os estados-parte publicaram, em 2021, o Estatuto da Cidadania do Mercosul, compêndio dos direitos e benefícios assegurados aos cidadãos do bloco.

Não se deve deixar de registrar, igualmente, a contribuição do Mercosul em temas de direitos humanos, combate ao racismo, direitos dos povos indígenas e nos relativos à condição das mulheres. Durante a última cúpula do bloco, em julho, foi assinado Acordo sobre o Reconhecimento Mútuo de Medidas de Proteção às Mulheres em Situação de Violência de Gênero, com participação de Bolívia, Chile e Equador.

No coração da integração, está o relacionamento entre as comunidades fronteiriças. Na estrutura institucional do Mercosul, a zona de fronteira tem um espaço permanente para discussão de políticas para o desenvolvimento conjunto desses territórios e de suas comunidades. Nesse sentido, foi assinado, em 2019, o Acordo sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas do Mercosul, com vistas a facilitar a circulação transfronteiriça e a conferir aos moradores das localidades vinculadas benefícios nas áreas de estudo, trabalho, saúde e comércio de bens de subsistência.

Um último aspecto da agenda interna que merece menção é o da redução das assimetrias. O principal instrumento de que dispõe o Mercosul para financiar projetos voltados para a mitigação das diferenças de desenvolvimento dentro da região é o Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM), em operação desde 2007. Esse mecanismo – inovador num processo de integração entre países em desenvolvimento – já financiou 48 projetos, num montante equivalente a cerca de US$ 1,5 bilhão. Cabe destacar que o Mercosul aprovou, em 2020, a destinação de cerca de US$ 6 milhões do FOCEM (além de um fundo reserva de US$ 10 milhões) para iniciativa de combate à Covid-19 nos quatro estados-parte.

Considerações finais

 As diversas facetas do Mercosul tratadas ao longo deste artigo demonstram que o processo de integração, por sua natureza e transversalidade, deve ser visto como um elemento fundamental no esforço de inserção internacional e de desenvolvimento do Brasil. Em sua vertente econômica, é parte da estratégia para a inserção competitiva do País na economia global. Deve ajudar a reduzir nossa vulnerabilidade externa – notadamente em contextos, como o atual, de perturbação nas cadeias de suprimento –, e potencializar nossa região como espaço de estabilidade e paz, com papel importante para a segurança alimentar e energética do mundo, fomentando o desenvolvimento sustentável.

Cumpre reforçar e ter presente o papel central que o Mercosul desempenhou na conformação de uma zona de livre comércio na América do Sul. Essa rede de acordos tem-se mostrado de grande relevância para a economia brasileira, em especial a nossa indústria, e serve de valiosa base para futuras iniciativas de integração sul-americana, inclusive na criação de cadeias de valor e no campo da infraestrutura. A ampliação da rede de acordos é trabalho constante, inclusive com a incorporação de novos temas. 

O Mercosul constitui eixo econômico e geopolítico importante da integração latino-americana, especialmente num cenário global em que iniciativas de “regionalização” voltaram a estar na ordem do dia. Cumpre lembrar, nesse contexto, que, desde 2017, a Venezuela está suspensa do Mercosul, por violação dos princípios democráticos, e que a conclusão do processo de adesão da Bolívia ao Mercosul está sob consideração do Congresso Nacional.

O esforço de aperfeiçoamento do bloco deve ser permanente. É notório que há uma agenda de trabalho pendente, em questões como coordenação de políticas macroeconômicas, integração ao livre comércio de setores excluídos, como o açucareiro, e alinhamento das práticas regulatórias do bloco aos melhores padrões internacionais, para maior competitividade e atração de investimentos.

A dinâmica de aproximação empresarial, em articulação com os poderes públicos, nos níveis federal e subnacional, é essencial para conferir foco e efetividade às ações de integração, ajudando na definição precisa tanto de gargalos quanto de pautas ofensivas de interesse mútuo.

A agenda cidadã é também prioritária e confere uma dimensão ainda mais abrangente para o bloco, de interesse direto das sociedades. O Mercosul apresenta resultados concretos para a população em todos os domínios das políticas públicas, reforçando, ao mesmo tempo, a defesa e a garantia dos seus direitos.

Todo esse esforço é complexo e se vê afetado por variações de contextos políticos e econômicos. Os avanços são, muitas vezes, lentos e parciais, requerendo trabalho contínuo de engajamento dos demais estados-parte e de fortalecimento da base de apoio doméstica à integração.

A integração regional permanece, contudo, objetivo incontornável da política externa brasileira, pelo qual devemos continuar a atuar em conjunto com os diversos segmentos da sociedade – Congresso Nacional, entes federativos, sociedade e os setores produtivos –, com vistas a consolidar as conquistas já alcançadas, enfrentar os desafios do presente e corrigir rumos sempre que necessário, com uma perspectiva estratégica e com os olhos postos no futuro.   ■


[1]. “Informe Técnico de Comercio Exterior 2021”. Secretaria do Mercosul. Disponível em https://www.mercosur.int/documento/informe-tecnico-de-comercio-exterior-del-mercosur-2021/. Acesso em 01/08/2022.

[2]. “Caminhos para a integração: facilitação do comércio, infraestrutura e cadeias globais de valor” – Resumo Executivo. Corporação Andina de Fomento, 2022, p. 5.

[3]. “Boletín de Comercio Exterior del Mercosur – n. 5”. CEPAL, 2022, p. 6. Disponível em https://www.cepal.org/pt-br/node/56599. Acesso em 02/08/2022.

[4]. Cf. Boletim CEPAL FAL 392 – “Rede Interoceânica na América do Sul: Corredores Bioceânicos e o Papel dos Estados Articuladores” (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Acre e Roraima). CEPAL, 2022.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter