Mercosul na casa dos 30
■ Michel Arslanian Neto é secretário das Américas do Ministério das Relações Exteriores
■ Kassius Diniz da Silva Pontes é chefe da Divisão de Coordenação Econômica e Assuntos Comerciais do Mercosul do Ministério das Relações Exteriores
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Em 2021, o Mercosul completou três décadas de existência, o que representa oportunidade para aprofundar a reflexão sobre suas conquistas e seus desafios. Desde sua criação, o agrupamento desempenha um papel estratégico. Além de fator de dinamização econômico-comercial, contribuiu para assentar a democracia no subcontinente, ampliar o perfil geopolítico de seus membros, promover um nível inédito de diálogo político e cooperação e gerar crescente aproximação entre nossas sociedades.
O objetivo deste artigo é apresentar, em linhas gerais, os avanços do Mercosul e seus principais desafios, a partir de análise lastreada numa visão abrangente do processo de integração. Discorreremos sobre o comércio intrazona, o relacionamento externo do Mercosul e a agenda interna do bloco, sem deixar de ressaltar a dimensão cidadã do esforço integracionista. O propósito é mostrar como o agrupamento continua a desempenhar papel central na estratégia de inserção internacional e do próprio desenvolvimento do Brasil, contribuindo também para o enfrentamento dos atuais desafios da conjuntura mundial.
■ O comércio intrabloco
Em seus 30 anos de existência, o intercâmbio comercial intrabloco multiplicou-se por 12, medido em valores correntes, e por 6, descontada a desvalorização do dólar. A última década, contudo, foi marcada por relativo declínio das trocas. Entre os diversos fatores que explicam esse fenômeno, destacam-se o descompasso e a tendência negativa dos ciclos econômicos dos membros do bloco, a persistência de barreiras não tarifárias sobre as trocas intrazona e, com especial relevo, a ascensão da Ásia no comércio internacional.
Em 2021, o continente asiático foi o destino de 52% das exportações e a
origem de 45% das importações do Mercosul. Somente a China absorveu 29% das vendas do bloco[1]. Há duas décadas, em 2000, o bloco vendia para a Ásia cerca de dez vezes menos.
Não se pode ignorar, ao mesmo tempo, que o Mercosul continua a ser o destino principal das vendas brasileiras para alguns setores importantes, como o automotivo, o químico e o têxtil. Cabe ter presente, igualmente, o perfil do comércio intrabloco: cerca de 90% das exportações brasileiras para os países do Mercosul são de produtos da indústria de transformação.
A importância desse comércio de produtos com maior valor agregado ficou ainda mais patente na esteira dos efeitos da pandemia e do conflito na Ucrânia. Esses dois acontecimentos demonstraram que, em contextos adversos, é fundamental que um país das dimensões do Brasil conte com base industrial sólida e com acesso a insumos estratégicos – como no caso das vacinas e insumos médicos durante a pandemia ou dos fertilizantes no contexto do conflito russo-ucraniano.
Essa recente desestabilização das cadeias globais de valor confirma a necessidade de que se amplie e diversifique o comércio na região latino-americana, com a geração de novos encadeamentos produtivos, com o aproveitamento pleno do potencial da região em termos de energia e produção de alimentos e por meio do fomento à integração em setores estratégicos, como o complexo industrial da saúde.
O reconhecimento desse e de outros desafios é parte do que se tem convencionado chamar de modernização do Mercosul, processo que envolve o aperfeiçoamento de mecanismos já existentes, correção de rumos em alguns setores e o esforço em ampliar o arcabouço interno e a rede de acordos externos do agrupamento.
■ Agenda externa do Mercosul
No que diz respeito à agenda de relacionamento externo, é preciso ressaltar, inicialmente, que, entre 1995 e 2005, o Mercosul concluiu uma rede de acordos de comércio com todos os países da América do Sul, exceto a Guiana e o Suriname. Esses acordos levaram à constituição, em janeiro de 2019, de uma área de livre comércio de fato na América do Sul, o que constitui inegável, porém ainda pouco conhecida, contribuição do Mercosul para a integração regional. O Brasil vem buscando aprofundar e ampliar essa rede de acordos comerciais na região seja por meio do Mercosul, seja bilateralmente.
Em 2021, nossas exportações para a América do Sul atingiram US$ 34 bilhões, ultrapassando os níveis pré-pandemia, enquanto as importações chegaram a US$ 26,6 bilhões, com superávit brasileiro de US$ 7,4 bilhões. Nosso intercâmbio com a América do Sul respondeu por 12,11% de nosso comércio global, com o importante diferencial de que se trata de mercado muito relevante para as exportações de bens industriais.
Se não há dúvida de que o Mercosul tem sido um fator de integração com seu entorno regional, está claro que um dos grandes desafios que ainda se tem pela frente é o de ampliar a proporção do comércio entre os países latino-americanos relativamente às suas trocas com o resto do mundo. Na União Europeia a taxa do comércio intrarregional chega a 60% e na América do Norte, a 45%[2]. Outra questão a ser enfrentada é o aumento da capacidade de exportação do Mercosul para outros mercados. Dados da CEPAL indicam que desde 2012 as exportações do bloco crescem em ritmo inferior à do comércio global (1,2% versus 2,8%, em dados anuais)[3]. Mas isso não deve ocorrer somente com o aumento do volume exportado – deve-se atentar também para a necessidade de diversificação da pauta exportadora.
Essa diversificação – que deve ocorrer, bem entendido, em uma dinâmica de contínuo incremento das vendas tanto agrícolas quanto industriais – não poderá prescindir de uma política que dê forte atenção à região. Juntamente com os sócios do Mercosul, poderemos buscar o que se convencionou denominar de “crescimento resiliente”, que esteja assentado em políticas tecnológicas e industriais sintonizadas com os rápidos avanços da economia global, com promoção de maior inclusão social e proteção do meio ambiente.
Em seu relacionamento externo, o Mercosul tem envidado esforços para corrigir o descompasso existente entre os âmbitos regional e extrarregional. Se já avançamos muito na liberalização comercial com a região, fora dela só temos vigentes, até agora, acordos de livre comércio com Egito e Israel.
Em 2019, graças ao elevado grau de engajamento dos quatro sócios, logrou-se concluir as negociações com União Europeia e com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA). No momento, o Mercosul tem se dedicado aos trabalhos de revisão técnica e jurídica dos dois acordos. Sobre o acordo com a UE, o agrupamento concordou, uma vez sanadas as pendências do acordo, em negociar documento adicional sobre compromissos em matéria de desenvolvimento sustentável que fortaleçam a implementação do capítulo sobre o tema. O Brasil tem defendido que esse documento, entre outros aspectos, deve ser de aplicação recíproca, e não contemplar a possibilidade de sanções, o que estaria em desacordo com o tratamento multilateral dispensado ao tema.
Outro avanço recente foi a conclusão, em julho de 2022, das negociações do acordo Mercosul-Singapura, que se encontra em fase de revisão jurídica. Trata-se do primeiro acordo de livre comércio do bloco com um parceiro do Sudeste Asiático. Um dos principais entrepostos comerciais e de investimentos do planeta, Singapura é hoje o sexto destino das exportações brasileiras. Ainda na Ásia, estamos projetando realizar, neste ano, a primeira rodada de negociações entre Mercosul e Indonésia.
No ritmo renovado das negociações externas, tem havido no interior do bloco um debate sobre as chamadas “flexibilidades”, em busca de formatos e mecanismos que possam conferir maior agilidade negociadora, mesmo quando não se logra um mínimo denominador comum entre os sócios de integração.
Impõe-se uma reflexão mais detida sobre como o bloco deseja relacionar-se com parceiros importantes em suas trocas e no fluxo de investimentos, como a China e os Estados Unidos. Trata-se de pensar estrategicamente como desenvolver parcerias que reforcem a capacidade dos estados-parte de enfrentar, em melhores condições, vários dos desafios para o crescimento sustentado, que passam não apenas por questões de comércio, mas também pelo avanço das agendas da inovação tecnológica, da integração produtiva, da sustentabilidade e da conectividade física e digital, entre outras.
■ Agenda interna do Mercosul
Ainda no marco da modernização do bloco, o Mercosul logrou, em julho de 2022, um importante resultado ao realizar a primeira revisão abrangente da Tarifa Externa Comum (TEC), com redução horizontal de 10% das alíquotas ad valorem. Não deve ser minimizada a capacidade demonstrada pelos quatros sócios de alcançar consenso sobre assunto em que havia diferenças de perspectivas, em contexto desafiante. A expectativa é de que essa rebaixa constitua um primeiro passo de um processo de revisão progressiva dos níveis e da estrutura da TEC, com vistas a incrementos de produtividade e competitividade.
Embora as questões tarifárias tenham relevância natural nos debates sobre os resultados do Mercosul, o agrupamento tem buscado promover o comércio também em outros temas. Em 2017, foi concluído o Protocolo do Mercosul sobre Compras Governamentais. Em dezembro de 2019, o bloco aprovou o Acordo sobre Facilitação do Comércio, para agilizar e simplificar os procedimentos relacionados ao fluxo de mercadorias na região. Outro importante avanço foi a assinatura, em abril de 2021, do Acordo sobre Comércio Eletrônico do Mercosul, o mais moderno entendimento dessa natureza já celebrado pelo Brasil.
A integração produtiva é um objetivo que tende a assumir importância cada vez maior. Em alguns segmentos, como o automotivo, já há encadeamentos historicamente estabelecidos. A pandemia demonstrou o caráter estratégico do complexo industrial da saúde, tema que foi objeto de debates, em 2021, no âmbito do Fórum Empresarial do Mercosul. É fundamental que haja continuidade de iniciativas como essas, de forma que possamos mapear oportunidades e atuar para reforçar a capacidade produtiva, exportadora e tecnológica da região, com geração de empregos de qualidade.
Está claro que a criação de encadeamentos produtivos passa pelo fortalecimento da infraestrutura física sub-regional. No primeiro semestre de 2022, os estados-parte decidiram incorporar a infraestrutura regional à agenda permanente do bloco. Em sua atuação no tema, o governo brasileiro deverá estar atento à verdadeira transformação econômica em curso na parte ocidental e norte do país, em que o significativo incremento das exportações dos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Roraima tem gerado uma demanda cada vez maior de integração com a vizinhança, em particular por meio de corredores bioceânicos[4].
Os países do Mercosul têm demonstrado, ademais, crescente preocupação com o protecionismo assentado em argumentos ambientais, muitas vezes em detrimento dos produtos em que somos mais competitivos. É urgente e necessário, por isso, que os estados-parte se articulem cada vez mais para enfrentar essa tendência e deem atenção especial à promoção e à consolidação das credenciais de sua agricultura sustentável.
O potencial do Mercosul no campo energético é igualmente conhecido. Em 2021, foram retomadas as discussões sobre como promover maior integração desse setor. O principal resultado foi a adoção de declaração ministerial que traça uma agenda de futuro para os países. O documento contempla a identificação de novos projetos de interconexão elétrica e a atenção que se deve dar à transição energética global para um futuro com menores emissões de carbono, o que oferece novas oportunidades no segmento de energias limpas e renováveis.
Todos esses aspectos se conectam com outra dimensão importante, que é a do chamado Mercosul Cidadão, com regras que beneficiam diretamente a livre circulação de pessoas e oferecem um marco jurídico comum em temas como reconhecimento de diplomas e currículos, previdência social, justiça, saúde, integração fronteiriça. Consolidando esse compromisso com a vertente cidadã, os estados-parte publicaram, em 2021, o Estatuto da Cidadania do Mercosul, compêndio dos direitos e benefícios assegurados aos cidadãos do bloco.
Não se deve deixar de registrar, igualmente, a contribuição do Mercosul em temas de direitos humanos, combate ao racismo, direitos dos povos indígenas e nos relativos à condição das mulheres. Durante a última cúpula do bloco, em julho, foi assinado Acordo sobre o Reconhecimento Mútuo de Medidas de Proteção às Mulheres em Situação de Violência de Gênero, com participação de Bolívia, Chile e Equador.
No coração da integração, está o relacionamento entre as comunidades fronteiriças. Na estrutura institucional do Mercosul, a zona de fronteira tem um espaço permanente para discussão de políticas para o desenvolvimento conjunto desses territórios e de suas comunidades. Nesse sentido, foi assinado, em 2019, o Acordo sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas do Mercosul, com vistas a facilitar a circulação transfronteiriça e a conferir aos moradores das localidades vinculadas benefícios nas áreas de estudo, trabalho, saúde e comércio de bens de subsistência.
Um último aspecto da agenda interna que merece menção é o da redução das assimetrias. O principal instrumento de que dispõe o Mercosul para financiar projetos voltados para a mitigação das diferenças de desenvolvimento dentro da região é o Fundo de Convergência Estrutural (FOCEM), em operação desde 2007. Esse mecanismo – inovador num processo de integração entre países em desenvolvimento – já financiou 48 projetos, num montante equivalente a cerca de US$ 1,5 bilhão. Cabe destacar que o Mercosul aprovou, em 2020, a destinação de cerca de US$ 6 milhões do FOCEM (além de um fundo reserva de US$ 10 milhões) para iniciativa de combate à Covid-19 nos quatro estados-parte.
■ Considerações finais
As diversas facetas do Mercosul tratadas ao longo deste artigo demonstram que o processo de integração, por sua natureza e transversalidade, deve ser visto como um elemento fundamental no esforço de inserção internacional e de desenvolvimento do Brasil. Em sua vertente econômica, é parte da estratégia para a inserção competitiva do País na economia global. Deve ajudar a reduzir nossa vulnerabilidade externa – notadamente em contextos, como o atual, de perturbação nas cadeias de suprimento –, e potencializar nossa região como espaço de estabilidade e paz, com papel importante para a segurança alimentar e energética do mundo, fomentando o desenvolvimento sustentável.
Cumpre reforçar e ter presente o papel central que o Mercosul desempenhou na conformação de uma zona de livre comércio na América do Sul. Essa rede de acordos tem-se mostrado de grande relevância para a economia brasileira, em especial a nossa indústria, e serve de valiosa base para futuras iniciativas de integração sul-americana, inclusive na criação de cadeias de valor e no campo da infraestrutura. A ampliação da rede de acordos é trabalho constante, inclusive com a incorporação de novos temas.
O Mercosul constitui eixo econômico e geopolítico importante da integração latino-americana, especialmente num cenário global em que iniciativas de “regionalização” voltaram a estar na ordem do dia. Cumpre lembrar, nesse contexto, que, desde 2017, a Venezuela está suspensa do Mercosul, por violação dos princípios democráticos, e que a conclusão do processo de adesão da Bolívia ao Mercosul está sob consideração do Congresso Nacional.
O esforço de aperfeiçoamento do bloco deve ser permanente. É notório que há uma agenda de trabalho pendente, em questões como coordenação de políticas macroeconômicas, integração ao livre comércio de setores excluídos, como o açucareiro, e alinhamento das práticas regulatórias do bloco aos melhores padrões internacionais, para maior competitividade e atração de investimentos.
A dinâmica de aproximação empresarial, em articulação com os poderes públicos, nos níveis federal e subnacional, é essencial para conferir foco e efetividade às ações de integração, ajudando na definição precisa tanto de gargalos quanto de pautas ofensivas de interesse mútuo.
A agenda cidadã é também prioritária e confere uma dimensão ainda mais abrangente para o bloco, de interesse direto das sociedades. O Mercosul apresenta resultados concretos para a população em todos os domínios das políticas públicas, reforçando, ao mesmo tempo, a defesa e a garantia dos seus direitos.
Todo esse esforço é complexo e se vê afetado por variações de contextos políticos e econômicos. Os avanços são, muitas vezes, lentos e parciais, requerendo trabalho contínuo de engajamento dos demais estados-parte e de fortalecimento da base de apoio doméstica à integração.
A integração regional permanece, contudo, objetivo incontornável da política externa brasileira, pelo qual devemos continuar a atuar em conjunto com os diversos segmentos da sociedade – Congresso Nacional, entes federativos, sociedade e os setores produtivos –, com vistas a consolidar as conquistas já alcançadas, enfrentar os desafios do presente e corrigir rumos sempre que necessário, com uma perspectiva estratégica e com os olhos postos no futuro. ■
[1]. “Informe Técnico de Comercio Exterior 2021”. Secretaria do Mercosul. Disponível em https://www.mercosur.int/documento/informe-tecnico-de-comercio-exterior-del-mercosur-2021/. Acesso em 01/08/2022.
[2]. “Caminhos para a integração: facilitação do comércio, infraestrutura e cadeias globais de valor” – Resumo Executivo. Corporação Andina de Fomento, 2022, p. 5.
[3]. “Boletín de Comercio Exterior del Mercosur – n. 5”. CEPAL, 2022, p. 6. Disponível em https://www.cepal.org/pt-br/node/56599. Acesso em 02/08/2022.
[4]. Cf. Boletim CEPAL FAL 392 – “Rede Interoceânica na América do Sul: Corredores Bioceânicos e o Papel dos Estados Articuladores” (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Acre e Roraima). CEPAL, 2022.
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