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Interesse Nacional
28 junho 2023

Mercosul: um destino histórico

Em recente artigo, o diplomata Rubens Barbosa, muito oportunamente comenta sobre os desafios a enfrentar perante o realinhamento global. Tanto em relação ao Brasil, isoladamente, como também na esfera mais ampla do Mercosul. Visto que a integração econômica da América do Sul é primordial para o fortalecimento da região frente a uma crescente tendência de formação de grandes blocos comerciais. Para sermos atores robustos nesse novo arranjo pós-globalização temos que antes de tudo nos unir, superando as muitas divergências locais.

No momento, preocupa muito o agravamento das relações entre Argentina e Uruguai, suscitadas pela enérgica crítica argentina a Lacalle Pou e suas negociações independentes. Afinal, os uruguaios iniciaram conversações com outros parceiros comerciais sem consulta ao Mercosul. É dever e missão do Brasil assumir uma posição moderada, negociando uma superação dessa divergência, para que possamos evoluir na conclusão de acordos comuns ao bloco.

São três as questões que adiam uma nova configuração. Duas delas necessitam de mais tempo de maturação e cuidado, quais sejam a admissão da Bolívia e readmissão da Venezuela ao Mercosul, com ênfase na complementaridade comercial.A terceira é a maisimportante: a definição das eleições de outubro na Argentina, em grave crise financeira.

■  Negociações entre blocos

Nas últimas semanas ganharam corpo as negociações para a aceleração do processo de discussão dos termos do pretendido acordo entre Mercosul e União Europeia, tratado há cerca de 20 anos. Há pouco esteve no Brasil o primeiro-ministro Olaf Scholz, enfatizando a necessidade de retomada das negociações com o Mercosul, concomitantemente ao anúncio de novos cortes de importações da Rússia. A mesma disposição foi manifestada por Ursula von der Leyen, a presidente da União Europeia, em recente conversa com o presidente Lula.

Entretanto, mais recentemente, manifestações desanimadoras para a evolução das tratativas partiram justamente de um representante francês que detém a presidência do grupo parlamentar de amizade Brasil-França na Assembleia Nacional, o deputado Nicolas Dupont-Aignan. Em verdadeiro tom de ameaça, disse durante um almoço com parlamentares brasileiros que o acordo entre Mercosul e União Europeia não será aprovado sem modificações importantes no capítulo agrícola, sobretudo com relação à carne e a inúmeros produtos tidos como “veneno” dado a um alegado uso intensivo de agrotóxicos. Somadas a outras medidas unilaterais recentes da União Europeia, a postura do parlamentar causou grande desapontamento na delegação brasileira.

■  O peso do Mercosul

Não devemos subestimar nosso potencial e nem por isso exagerar nas reivindicações. Temos um papel importantíssimo nesse desejado arranjo. Em dezembro de 2020, um artigo de Josep Borrell, no jornal espanhol El País, advogava uma inexorável aproximação da União Europeia com a América Latina e o Caribe. Borrell, político catalão que exerce o cargo de Alto Representante de Assuntos Exteriores e Política de Segurança da Comunidade Europeia, dizia com todas as letras a respeito das possibilidades futuras da União Europeia que “não podemos ser uma potência geopolítica ou um ator global, como costumamos dizer, sem uma sólida presença na América Latina e Caribe”. Assim como desejam uma ampliação de escala produtiva, não querem subestimar a eventual criação de um bloco de bens e serviços com 780 milhões de consumidores e quase um quarto do PIB mundial, números estimados para a união dos mercados da América Latina e União Europeia, incluindo o Mercosul.

A urgência de um acordo com a União Europeia interessa a quem? É do interesse do Brasil e do Mercosul como bloco regional avançar rapidamente num acordo com eles? De um lado parece que sim, pois um bom acordo traria vantagens a todos. E no atual governo há uma vontade de que as negociações evoluam. Lula chegou a falar em um eventual acordo até o final do ano, o que certamente não vai ocorrer, seja pelas divergências já existentes entre os dois blocos, agravadas por recentes medidas e declarações dos europeus, seja, sobretudo, pela situação argentina que impede qualquer compromisso efetivo desse importante membro do Mercosul até a posse do novo governo. 

Assim exposto, não se mostra prioritário aos membros do Mercosul esse eventual acordo em condições desfavoráveis e pouco amadurecidas, apesar dos 20 anos de discussão. Em março passado, alguns dias antes da reunião em Buenos Aires dos participantes do Mercosul para discutir o eventual acordo, a União Europeia enviou um protocolo adicional (side letter), estabelecendo unilateralmente novas condicionantes da negociação, atreladas a exigências envolvendo questões ambientais que restringiriam o acesso de diversos produtos agrícolas e industriais ao mercado europeu.

Estas novas condições estão sendo contestadas com veemência pelo Brasil e demais países do bloco meridional. O Brasil cogita mesmo entrar com uma ação na Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Diante desse panorama, o mínimo que devemos fazer é agir com muita cautela nessa negociação, confrontando o eficiente lobby protecionista europeu. Afinal, o eurocentrismo nunca deixou de existir na mentalidade dos agentes econômicos do velho continente. Ademais, não se justifica apressar o que não está suficientemente esclarecido. Portanto, no momento cabe, sim, ao Mercosul ter um olhar mais atento e prioritário quanto às outras possibilidades que se abrem com os demais blocos comerciais, notadamente na Ásia e na África.

Pois, de outro lado, pragmaticamente, temos que estabelecer relações cordiais com nossos parceiros comerciais efetivos, com interesses complementares. Como dizia John Foster Dulles, experiente diplomata norte-americano dos anos 50, “não existem países amigos, mas interesses comuns”. Para tanto, necessitamos, antes de tudo, da união consensual entre os membros do Mercosul, condição básica para qualquer negociação proveitosa aos nossos interesses comuns ibero-americanos. Interesses esses que ao longo da história sempre foram convergentes comercialmente, embora às vezes as aparências enganassem ou conflitos na península ibérica os interrompessem pontualmente. O mesmo se deu posteriormente com as disputas por fronteiras nacionais durante o século XIX.

■  Integração platina, berço do Mercosul

Qual o destino geopolítico da Bacia do Prata? Ligadas por centenárias vicissitudes históricas, muitas possibilidades se abrem para as nações platinas, riquíssimas em mananciais de água doce e de terras agriculturáveis. A região já concentra grande parcela de produção de grãos no mundo, além de inúmeras outras potencialidades econômicas. Mas, ainda é tímida sua integração regional na produção, processamento industrial e comercialização de suas mercadorias.

Essa é a missão do Mercosul, atualmente em grande crise de identidade.  É imperioso que pensemos mais seriamente como alcançar ganhos de escala produtiva agregada para todos. Este processo resultará no empoderamento coletivo, com uma consequente melhora no poder de barganha nas acirradas negociações entre os blocos. De fato, o cenário internacional recente aponta para o realinhamento progressivo de novos aglomerados comerciais. Quanto mais coesos, mais força teremos perante os demais.

A região platina desenvolveu-se como um todo desde o século XVI, embora separada por impérios, a princípio, e por nações, a partir do século XIX. No período colonial, o comércio interno na bacia do Prata entre súditos portugueses e hispânicos prosperou, apesar dos mecanismos de controle das metrópoles, sempre burlados pelo contrabando e trocas diretas, frequentemente com anuência dos governantes locais. Pois sempre existiram trocas comerciais complementares intensas, mesmo que pontualmente interrompidas por guerras. A começar pelo período da União Ibérica, quando Espanha e Portugal estiveram governadas pelos Habsburgos (1580-1640).

■  Comércio e relações

Em 1602, o porto de Buenos Aires é autorizado a comerciar diretamente com o Rio de Janeiro. Por terra, o acesso a Assunção por São Paulo era usado durante o inverno, seja pelos problemas de navegabilidade na bacia do Prata durante a estiagem, seja pelas ameaças de holandeses em todo o Atlântico Sul nessa época. Até mesmo um governador espanhol do Paraguai recém-nomeado, Luís de Céspedes Xeria, fez sua viagem de posse por São Paulo, em 1628. Deixou comentários depreciativos aos paulistas, notadamente pela sua belicosidade.

Na mesma época, Salvador Correia de Sá e Benavides, filho do então governador do Rio de Janeiro, Martim de Sá, cuja mãe era da nobreza espanhola, acompanhou sua prima Victória até o Paraguai, onde chegou em agosto de 1630. No início de 1632, casou-se com uma rica viúva da elite crioula do Paraguai e Tucumán, a qual o acompanharia ao Rio de Janeiro anos depois.

Nesse período, São Paulo passava a interessar estrategicamente à coroa espanhola. Espanhóis são incentivados a se integrarem à sociedade paulista, uma elite mestiça daquela boca de sertão. Alguns vieram através do Paraguai, como o sevilhano Baltazar de Godoy, que se casa com Paula Moreira, filha do Capitão-Mor Jorge Moreira. Outros diretamente da Espanha como os Bueno, Lara, Toledo, Piza, Rendon e Camargo. Deles descendem muitas das famílias mais tradicionais de São Paulo.

Assim transcorreu esse período, havendo uma interação do sudeste brasileiro e mesmo da Bahia com a região do Prata. Do Rio de Janeiro, partiam barcos carregados de açúcar, aguardente, tabaco e escravos africanos. Retornavam de Buenos Aires com couros dos pampas e moedas de prata de Potosí. Os portos de Santos, Salvador e Recife também participavam desse comércio com menor intensidade. Havia mesmo uma comunidade de cristãos novos portugueses em Buenos Aires, dedicados ao comércio e aos ofícios urbanos.

■  Intercâmbio de animais

No vice-reinado do Peru, já no século XVII, o uso do muar era bastante difundido, garantindo a comunicação por terra de Buenos Aires a Lima. Razão pela qual a criação de mulas se dava em várias regiões do Prata castelhano. Desses muares descendem os jumentos e mulas levados ao Brasil. Mas havia também uma colaboração inversa de gado de São Vicente para o Paraguai e daí para toda a região platina espanhola, em meados do século XVI.

Somente em 1570 as pastagens de Assunção receberam o primeiro gado vindo do Peru, que se cruzaria com o plantel já existente, de origem vicentina. Essa criação pioneira de Assunção deu origem ao gado de toda a região platina hispânica, incluindo as bandas ocidental e oriental. Abundantes pastagens, enorme disponibilidade de água e barrancas de sal favoreceram a grande proliferação dos animais no Pampa. Parte desse gado seria levado para alimentar as minas de ouro brasileiras.

De outro lado, a busca pelo gado disperso do Pampa para abastecimento de Minas Gerais fez com que tropas de paulistas garantissem a ocupação do sul do país e a alimentação das minas de ouro, acumulando capital privado em São Paulo, que se imbricou com o açúcar, o café, ferrovias, bancos e a indústria. Trata-se, portanto, de um fator vital no desenrolar de nossa história econômica. É então curioso registrar que esse processo é originário inicialmente a partir de animais descendentes de exemplares hispânicos, os quais já contavam com uma importante contribuição original de gado de São Vicente.

■  O papel vital do comércio

Realmente é notável o caráter integrador do comércio e seu efeito propagador de prosperidade econômica. Como bem demonstrou Fernand Braudel, foi a expansão do comércio do Mediterrâneo que se desdobrou na conquista das águas do Atlântico, Índico e Pacífico. Nessa aventura, Portugal e Espanha se lançaram à frente.

Não fosse o comércio ilegal realizado no Prata, seja durante a União ibérica (1580-1640), seja no período posterior de posse de Colônia do Sacramento em mãos portuguesas (1680-1777), caracterizado por um intenso comércio com Buenos Aires e Rio de Janeiro, o desenvolvimento econômico de territórios hoje localizados na Argentina, Uruguai e Brasil teria sido bem mais lento. E, se não houvesse controle algum, poderia ter sido mais intenso e virtuoso.

De fato, havia mercados internos hispânicos e luso-brasileiros, muitas vezes atrofiados, mas sempre existiram. Assim como a demanda da sociedade urbana e rural que se formava na região aurífera brasileira estimulou a ocupação do sul brasileiro, um século antes a atividade mineradora em Potosí também representou um papel de ocupação territorial e criação de novas atividades econômicas na região adjacente.

Da mesma forma, no Brasil do século XVIII a extração de ouro em Minas Gerais gerou o desenvolvimento de um mercado interno com grande capilaridade em Minas Gerais e São Paulo, estimulando também a ocupação da Região Sul pela importância da pecuária no abastecimento. O posterior desenvolvimento agrícola em São Paulo, factível pelo advento da mula, resultará num circuito virtuoso multiplicador. Novas visões historiográficas estão apontando para uma revisão do funcionamento do pacto colonial de forma rígida quanto à intenção de concentrar o capital exclusivamente nas metrópoles, pois sempre houve uma parcela de acumulação local, em maior ou menor grau.

Uma reflexão sobre esse passado nos remete à importância da integração regional entre países limítrofes. Apesar de todos os antagonismos pontuais e muitas vezes dramáticos e violentos, a presença luso-brasileira no Prata foi decisiva na história político-econômica de toda a região, incluído o Brasil. A atividade econômica é a indutora do povoamento. Assim como a economia se desenvolve de forma interativa com o comércio, em meio a processos que se conectam por conveniências recíprocas e complementares. É preocupante constatar que ameaças a essa integração comercial tão saudável para todas as partes ocorram ainda nos dias de hoje, mais de 30 anos após a assinatura do Tratado de Assunção que criou o Mercosul. O Mercosul carece de uma nova abordagem estratégica de alcance geopolítico que extrapole as políticas imediatistas e oportunistas. O comércio platino fortaleceu tanto os hispânicos como os luso-brasileiros, numa relação mútua de prosperidade, em meio a pontuais conflitos armados. Esse é o paradoxo platino de antagonismo e prosperidade. E este é um momento mais do que oportuno para superarmos o antagonismo e caminharmos numa integração progressiva e virtuosa que resulte no fortalecimento de toda a região. Nossa maior urgência é uma sólida união!

JOSÉ ALFREDO VIDIGAL PONTES é historiador e jornalista. Autor dos livros: A política do café com leite: mito ou história? e Revolução de 1932: o caráter nacional de um movimento democrático

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