01 outubro 2008

No conflito de Roraima, só pode haver um vencedor: o Brasil

O artigo analisa o conflito de Roraima com base na formação social do Brasil. Para o autor, não interessaria ao país alimentar um litígio que violenta a composição étnica de seu povo, opondo brasileiros como se constituíssem nações diferentes. Conclui que a reserva de extensas glebas em faixa de fronteira, para usufruto exclusivo de índios, provocando a extrusão de não índios e do próprio Estado, enfraqueceria a segurança nacional e potencializaria a cobiça da Amazônia.

A sentença a que Joaquim Nabuco se referia, em notas pessoais escritas em 1904, era o laudo arbitral do rei da Itália Vítor Emanuel III, que tomou 19 630 km² do Brasil e deu-os à Inglaterra ao julgar uma disputa pela posse de uma fatia do atual Estado de Roraima. Ministro plenipotenciário em Londres, Nabuco foi o advogado do Brasil na querela. Sabia como ninguém que as terras haviam sido conquistadas à Espanha pela Coroa portuguesa, depois postas sob a jurisdição do Império do Brasil e, naquele alvorecer da República, eram apropriadas pela Inglaterra como epílogo de um meticuloso programa de cobiça e anexação que começou no século18. Nas mesmas faixas de floresta e lavrado em que se deu o litígio dos dois países, trava-se agora uma luta intestina entre brasileiros que há séculos ocupam e exploram aquela parte do território nacional. É o conflito embutido na terra indígena Raposa Serra do Sol, demar cada em 1,7 milhão de hectares para usufruto exclusivo de aproximadamente 11 mil índios, em prejuízo de não índios que desde a colônia ali também se instalaram com a têmpera dos bandeirantes. Se em 1904 perdemos um pedaço do mapa para uma dita ‘nação amiga’, agora trata-se de evitar a sequela no seio da nação brasileira.
Roraima: território de conflitos

O campo de conflitos em que foi transformado o território de Roraima demanda uma visão estratégica que pondere os diversos pleitos fraternos ali presentes. Há de considerar a interdependência dos fatores da formação social brasileira, as demandas de índios e não índios, a geopolítica do interesse nacional mais amplo – fatores que se revestem de maior complexidade na medida em que o cenário alonga-se em zona de fronteira onde é escassa a presença do Estado nacional. Como já tivemos oportunidade de afirmar, o primeiro e maior erro nesse debate é escolher um lado e nele entrincheirar-se para travar uma guerra santa que desconsidere a legitimidade dos demais atores que adensam o litígio. Forçoso é reconhecer que tal erro vem sendo cometido, além do tolerável, pelo partido dos índios, que desenha o debate como um antagonismo entre humanistas e bugreiros – e nesta categoria infame são enfiados todos os que buscam uma saída encaixada num projeto nacional, sem ceder ao dogmatismo das facções. Para solução do problema, impõe-se uma arbitragem nacional justa, que dê a cada um a sua parte equitativa, sem que ao final haja vitoriosos e derrotados. Admite-se neste conflito apenas um vencedor: o Brasil.

Incursões estrangeiras

Como em toda controvérsia, esta também tem seus vilões. O maior deles é o Estado, que desde o episódio da arbitragem real italiana move-se com incúria na defesa dos interesses nacionais. Joaquim Nabuco, a despeito de suas qualidades de estadista, não foi um negociador hábil, restando-lhe a constatação de que deveria o Brasil ter demarcado sua presença naquelas terras de forma ostensiva. É verdade que a arbitragem do rei Vítor Emanuel era um jogo de cartas marcadas. Anglófilo, metido no jogo de partilha do mundo praticado pelas potências europeias, sua majestade cuidou de atender ao interesse da nação vizinha e poderosa. Até as pedras sabiam que a presença da Inglaterra no atual território de Roraima fora construída como um projeto expansionista a partir da Guiana Inglesa, tendo como cabeça de ponte a clássica missão religiosa e como artífice um aventureiro – com o incentivo de um tipo de entidade que viria a ser onipresente em nossos dias, a organização não governamental. No caso, a primeira ONG estrangeira a sabotar os interesses do Brasil na região foi a Real Sociedade Britânica.


Foi sob a bandeira da pesquisa científica da Real Sociedade, e depois por ela patrocinado, que o aventureiro Roberto Schomburgk, nascido na Prússia em 1804, palmilhou o vale do rio Branco e pôs-se a soldo do império britânico. Desde o Tratado de Tordesilhas as terras pertenciam à Espanha, mas já no século 17 foram invadidas pela Holanda. O Reino Unido teve de comprá-las aos holandeses em 1814 para criar a chamada Guiana Inglesa. Schomburgk viu ali uma oportunidade de estender a bandeira de um império onde o sol nunca se punha. A partir de 1835, cruzou a fronteira do Brasil (chegou até o rio Negro) e passou a reclamar glebas para a Inglaterra. Como era de praxe na colonização, a espada unia-se à cruz, e ele importou um missionário, o metodista Thomas Young, para catequizar os índios, ensinar-lhes o idioma e torná-los súditos ingleses. Young instalou-se entre os macuxis, que originalmente não viviam na região. Foram para lá numa trajetória de nomadismo natural, oriundos das Antilhas, através do rio Essequibo, e daí ao Rupununi e ao Branco. Dez anos depois, Young foi expulso do território brasileiro, levando consigo para a Guiana índios que havia catequizado. Não foi difícil aos invasores argumentarem que os índios reclamavam proteção inglesa contra a escravidão a que eram submetidos no Brasil, embora não se deva deixar de observar que aquele país europeu abolira a escravatura em 1834, ao passo que o governo português proibira o cativeiro de índios em 1758.


A vulnerabilidade da região e a afeição dos índios aos invasores já haviam sido constatadas por Alexandre Rodrigues Ferreira em 1787. No relato Tratado Histórico do Rio Branco, este baia- no, que viria a ser o primeiro naturalista do Brasil, sugeriu que fossem instaladas ‘fortificações’ militares, e observou: “Como segundo o que o cabo-de-esquadra me diz da paragem em que encontrou aquele estrangeiro, sendo entre as serras vizinhas ao rio Rupununi e ali em um povoação de índios caripunas, mais afeiçoados dos holandeses que nossos…”
povoamento e ocupação

A coroa portuguesa, tal como demorara três décadas para apossar-se do Brasil, o tempo entre o Descobrimento e a expedição de Martim Afonso de Sousa em 1532, tinha dificuldades de assumir um território de dimensões continentais. É clássica a observação de frei Vicente do Salvador, em sua ‘História do Brasil’, de 1627, acerca do apego dos portugueses ao litoral: “Sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, fundador de Olinda e do ciclo do açúcar, bem resumiu a epopeia em carta ao rei de Portugal:

“Somos obrigados a conquistar por polegadas as terras que Vossa Majestade nos fez merecer por léguas”.

Contudo, por mais críticas que se façam à ausência da bandeira lusa (e depois brasileira) em Roraima, como se o território tivesse sido até pouco tempo hábitat exclusivo de índios, é fato que já a partir de 1670 teve início a ex- ploração do vale do rio Branco, nome dado pelo explorador português Pedro Teixeira em 1639. Em 1725 instalaram-se na região os frades carmelitas e em 1776 Lobo d’Almada, chefe da Comissão Portuguesa de Limites, subiu ao ponto onde está hoje a cidade de Boa Vista e seguiu o rio Uraricoera até a foz do Ararica- pará. Em 1775 começara a construção do Forte de São Joaquim e em 1789 já havia fazendas de gado instaladas na região. O professor Aimberê de Freitas, no livro ‘Geografia e História de Roraima’, documenta que em 1794 foi formada a fazenda de São José na margem do rio Tacutu, que pertencia ao Brasil mas passou a ser a divisa com a Guiana depois da arbitragem do rei italiano. No trabalho Brasil versus Inglaterra nos Trópicos Amazônicos, de 2003, o pesquisador José Theodoro Mascarenhas Menck demonstra que “a criação de animais, exigida pelos exploradores, começa em 1789. São criadas fazendas régias em torno de São Joaquim, e, sob a proteção do forte e suas patrulhas, o gado vai pastar ao longe, atingindo a região das savanas”.

Construído o forte, as autoridades luso-brasileiras tentaram agrupar os índios em pelo menos cinco aldeamentos, com o objetivo de torná-los sentinelas do território e fincar os fundamentos de cidades, mas eles terminaram por rebelar-se. Desde o século 18, portanto, o Estado e empreendedores estabeleceram-se em Roraima, e, tal como em outras áreas da colônia, dinamizava-se a fronteira com fortificações militares, atividade econômica e fixação espontânea de migrantes brancos e caboclos dedicados à agricultura e ao extrativismo.


Integração do índio

A ocupação do vale do rio Branco seguiu o modelo da formação social brasileira. Índios e brancos misturaram-se na constituição do povo, gerando caboclos ou mamelucos que nem sempre viveram em harmonia. Ao contrário, é sangrenta a saga indígena na ocupação do território. Não houve, por certo, genocídio, como tanto se diz, assim como carecem de fundamento sequer aritmético os cálculos acerca do número de indivíduos existentes por ocasião do Descobrimento – fala-se até em três milhões, sem nenhum indicação científica da origem do algarismo. Nenhuma história sincera do Brasil poderá ser escrita, no entanto, sem o reconhecimento da tragédia imposta aos índios e aos negros escravos, assim como é inescapável a comprovação de que ambos enriqueceram a formação étnica brasileira, tal como demonstra- do à larga por Gilberto Freire. Transplantadas para os nossos tempos, a dívida e a gratidão que o Brasil tem com os índios está expressa no Art. 231 da Constituição, que garante o usufruto das terras que tradicionalmente ocupem. Nenhuma inteligência humanista poderá negar aos índios que vivem em Roraima o direito de terem as terras de que necessitem para viver demarca- das e protegidas da invasão por parte de quem quer que seja.


Convém lembrar que fez o Brasil um esforço comovente para incorporar os índios à sociedade nacional, esta secularmente revestida de virtudes e deformidades que afetam a todos os brasileiros. Apesar dos pesares, a intervenção do Estado em favor dos índios, preconizada pelo patriarca José Bonifácio de Andrada e Silva e introduzida pela República com a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910, assinalou o fim doutrinário das guerras de conquista de território, da catequese dogmática e do etnocentrismo cultural. Nesta via-sacra, todos temos pecados, e não só os estigmatizados conquistadores, bandeirantes, fazendeiros, seringueiros, garimpeiros. Do lado dos cientistas, pontifica a visão de remoção dos obstáculos ao progresso defendida pelo naturalista alemão (e naturalizado brasileiro) Hermann VonIhering (1850–1930), que legou um trabalho precioso à frente do Museu Paulista, mas não teve pejo em pregar o extermínio sumário dos caingangues que resistiam à passagem por suas terras da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. A igreja católica também deixou escalpos pelo caminho. O etnólogo Darci Ribeiro, na grande obra de referência ‘Os Índios e a Civilização’, de 1970, relata episódios em que a chegada dos missionários coincidiu com o desaparecimento da tribo que foram catequizar: “É o caso da missão dominicana de Goiás e do Sul do Pará. Seu principal centro missionário, Conceição do Araguaia, é hoje uma cidade. Ocorre, porém, que os índios Kayapó, objeto de seu desvelo, morreram todos sem deixar descendentes e os padres passaram a cuidar dos sertanejos que se haviam localizado junto à missão e hoje constituem o seu rebanho”.


Maior autoridade do indigenismo científico do Brasil, Darci mostra que, ao aceitar dirigir o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) um dos maiores brasileiros, o Marechal Rondon, anunciou que adotaria diretrizes baseadas em José Bonifácio:

⦁ Justiça – não esbulhando mais os índios, pela força, das terras que ainda lhes restam e de que são legítimos senhores;
⦁ Brandura, constância e sofrimento de nossa parte, que nos cumpre como usurpadores e cristãos;
⦁ Abrir comércio com os bárbaros, ainda que seja com perda de nossa parte;
⦁ Procurar com dádivas e admoestações fazer pazes com índios inimigos;
⦁ Favorecer por todos os meios os matrimônios entre índios e brancos e mulatos.


No bojo do Decreto nº 9 214, de 15.12.1911, que oficializou o SPI, diz Darci, “pela primeira vez era estatuído, como princípio de lei, o respeito às tribos indígenas como povos que tinham o direito de ser eles próprios, de professar suas crenças, de viver segundo o único modo que sabiam fazê-lo: aquele que aprenderam de seus antepassados e que só lentamente podia mudar”. E mais: “Outro princípio de importância fundamental era a proteção ao índio em seu próprio território”, diz ainda o grande etnólogo, daí adotando-se a fórmula das demarcação do hábitat e não a transferência abusiva para locais distantes do assentamento tradicional das tribos.


Índios e não índios entrelaçados

Sob a luz desses aspectos históricos é que se deve examinar o problema de Roraima. Trata-se, em primeiro lugar, de reconhecer o direito dos índios às terras que ocupam, mas, convém repetir, sem desprezar – antes valorizar
– os demais aspectos geopolíticos e históricos que configuram o ambiente de tensão. Faz-se imperioso insistir numa solução que atenda aos interesses de todos os envolvidos – a começar da unidade nacional. Urge respeitar as diferen- ças, mas o objetivo final é a igualdade.


A demarcação de Raposa-Serra do Sol numa área contínua de 1,7 milhão de hectares é um erro a ser revisto. Ao tomar essa decisão desastrada, o Estado brasileiro desperdiçou a solução e fomentou o conflito. Os índios da região – cujo número também é elástico, variando, de acordo com a fonte, de 10 mil a 19 mil – vivem num regime de cooperação e disputa com os não índios, incluindo aí as autoridades, a começar do exército. Não se apartam num cordão sanitário que os isole da comunidade nacional.


Muitíssimos índios trabalham ou trabalha- vam nas fazendas e lavouras que remontam ao século xviii, sobretudo de nordestinos que le- varam gado e algodão aos campos de Roraima. Outros, principalmente os macuxis, excelentes vaqueiros, são pecuaristas ou agricultores com rebanhos de trinta mil reses e lavouras meca- nizadas. Há os que se filiam ao catolicismo e os que professam antigas e novas denomina- ções ditas evangélicas. Desde séculos ocorrem os casamentos interétnicos, sobretudo de índias com caboclos arribados do Nordeste. Há no- tícias de que agora tuxauas locais, certamen- te mal influenciados, cogitam de proibir esses casamentos, como a buscar uma pureza étni- ca incompatível com a tradição brasileira. Os estudiosos citam uma carta de 1940 do padre beneditino Alcuino Meyer, na qual aponta o caso de um garimpeiro chegado havia mais de trinta anos ao local conhecido como Socó, hoje na área da reserva, o “velho mineiro Seve- rino Pereira da Silva, casado pela segunda vez com índia macuxi e pai de numerosa família”. Muitos índios – e seus descendentes das uni- ões fora das tribos – sabem ler e escrever, usam artefatos tecnológicos, prestam serviço militar, pagam impostos, almejam, por força da pres- são ideológica que fascina a todos os estratos sociais, integrar-se ao mercado de produção e consumo de mercadorias e sonhos.


Como quaisquer brasileiros, exercitam a cidadania participando da vida em comunidade e da política. A índia macuxi Erotéia (Téia) Mota é candidata a vice-prefeita do município de Pacaraima, na chapa do líder dos arrozeiros (dado como inimigo número um dos índios) Paulo César Quartiero, do Dem. A prefeita de Uiramutã, outra cidade encravada no perímetro da Serra do Sol, Florany Mota, do PT, ela própria neta de um caboclo da Paraíba com uma índia macuxi, me disse que seus antepassados chegaram à região em 1908, misturaram-se aos índios e – aqui faço um paralelo – procriaram gerações de mestiços da mesma forma que o tuxaua Tibiriçá, protetor dos jesuítas em São Paulo, pai de Bartira e sogro de João Ramalho, fez-se avô de uma linhagem de paulistas quatrocentões.


A essa natural roda da história o Brasil adotou como meta a integração dos índios à sociedade nacional. É a linha estabelecida no Estatuto do Índio, de 1973, mas, ultimamente, repudiada pelas ONGs e rejeitada como política da Funai. Deve-se ponderar que a assimilação de outros costumes pelas tribos não as descaracteriza como sociedades indígenas. Índio, segundo uma definição de Darci Ribeiro, no texto ‘Culturas e Línguas Indígenas do Brasil’, formulada nos anos 1950, mas adotada ainda hoje pela Funai, é “aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato”.


Ocorre que em Roraima reproduziu-se o cenário dos séculos, repleto das contradições peculiares à gênese do povo brasileiro. Nossa marca é a mistura, não a pureza. À revelia da história e da realidade concreta construída pelos protagonistas, a demarcação contínua da reserva significou a ‘extrusão’ sumária dos não índios, a restrição da presença do Estado e, não menos grave, o isolamento de um vasto pedaço do território nacional bordado em 964 quilômetros de fronteira com a Guiana e outros 958 quilômetros com a Venezuela. A solução natural deverá ser baseada no respeito a esses quesitos. A defesa honesta e íntegra dos índios não implica necessária – e lamentavelmente – na discriminação dos não índios.

Demarcação sem cabimento

Uma voz a ser ouvida é a do engenheiro- agrônomo Carlos Ernesto Schaefer. Professor da Universidade Federal de Viçosa (mg), pesquisador do cnpq, fez na área suas teses de mestrado e doutorado e foi um dos cinco pe- ritos nomeados pela Justiça Federal para ela- borar o laudo acerca da demarcação contínua ou pontilhada da reserva. Com rara autoridade no assunto, Schaefer pondera que na área de Raposa-Serra do Sol existem cinco etnias dis- tintas, macuxi, taurepang, patamonas, ingaricó e vapixana, de hábitats e costumes distintos, algumas até rivais. Estão divididas em “aden- samentos com 91 malocas, totalizando uma po- pulação por volta de 10 500 pessoas, nas áreas Ingarikó, Saraó, Vale do Rio Quinô, Carapu- ru-Canaã, Maturuca, Raposa-Surumu, Cutia, Xuriunuatemu, Cedro, Patativa e que vivem sa- lutarmente integrados com os não-índios até os dias de hoje”.


Nos cálculos de Schaefer, não tem cabimen- to ilhar uma área de 1,7 milhão de hectares para os índios: bastariam 400 hectares de trechos onde efetivamente vivem as tribos. “Conside- rando os períodos de pousios típicos adotados na região, de cerca de 10–15 anos de abando- no, poder-se-ia estimar uma área de aproxi- madamente 5 000 a 10 000 hectares, que seria como suficiente para prover a subsistência da população total da região, mediante técnicas ru- dimentares de cultivo. Grande parte dos restan- tes 350 000 hectares, de áreas de relevo muito desfavorável, pode ser utilizada por pastoreio extensivo e extrativismo vegetal, nos moldes existentes há mais de 250 anos na região”, diz o pesquisador. Tal demarcação não afetaria, se- gundo o pesquisador, a cosmovisão indígena, incluindo-se a sua compreensão de que a terra não é apenas um bem econômico a ser explorado, mas o território da vida.


A demarcação de terras ainda se baseia no antigo comportamento nômade e extrativista das tribos, que precisariam de glebas infindas para caçar, pescar, coletar e extrair produtos da floresta e praticar a agricultura de coivara. Se- gundo a Funai, o Brasil tem aproximadamente “460 mil índios, distribuídos entre 225 socieda- des indígenas”, estes vivendo em aldeias, “ha- vendo estimativas de que, além destes, há entre cem mil e 190 mil vivendo fora das terras indí- genas, inclusive em áreas urbanas”. Os aldeados dispõem de 611 áreas de usufruto exclusivo, das quais 488 estão identificadas, isto é, delimitadas, homologadas ou regularizadas, com o total de 105 milhões de hectares, ou 12,41% do território nacional. Outras 123 terras indígenas aguardam demarcação. Em Roraima, 32 reservas somam 12,3 milhões de hectares, ou 46% da superfície de 22 milhões de hectares do estado.


Segundo dados divulgados pela ex-ministra do Meio Ambiente Marina da Silva, no arti- go “Raposa-Serra do Sol: Um Lugar de Di- reito”, “a população rural não chega a 90 mil pessoas, das quais 46 mil são indígenas, ou seja, 52% do total, ocupando 47% das terras. Rapo- sa-Serra do Sol ocupa 7,7% da área do Estado e abriga 18 mil índios”. Do “outro lado”, diz ainda a ex-ministra, “seis rizicultores ocupam 14 mil hectares em terras da União”. A presen- ça dos não-índios, como já demonstrado, tem substância histórica e é superior a este número anêmico. Ainda assim, mesmo os alegados “seis arrozeiros” não significam meia dúzia de indi- víduos, mas empreendedores que desenvolvem atividade econômica, empregam muita gente – inclusive índios – e ajudam a vivificar a zona de fronteira e extensas áreas a elas contíguas.


Outros ocupantes não-índios já foram ex- pulsos desde a homologação da terra indígena, em 2005, e, pelo rigor da lei, mesmo os que constituíram família com índios dependem da autorização daqueles para continuar na área. O mais importante a considerar para a solução justa do conflito é que o centro do problema não é a defesa de “seis arrozeiros”, e sim de um contingente enumerável de brasileiros que não se declaram índios. Segundo os dados de Marina da Silva, chegam a 48% da população rural do estado. Como vimos, muitos dos que vivem na área de Raposa-Serra do Sol têm ra- ízes ancestrais que remontam a mais de dois séculos e, acima de qualquer argumento, per- tencem à nação brasileira tanto quanto os ín- dios – e vice-versa.

Não à soberania relativa

A controvérsia suscitada pela demarcação contínua de Raposa-Serra do Sol decorre do aspecto geopolítico de a reserva estar em área de fronteira deserta. Visto no mapa, Roraima é uma cunha que avança entre a Guia- na e a Venezuela, e foi no extremo norte do estado que os topógrafos traçaram os limites da terra indígena. O povo brasileiro teme pelo futuro dessa parte do território. Há quem exa- gere, mas a verdade é que há séculos a Ama- zônia tem sido objeto de cobiça e de invasões de franceses, ingleses, espanhóis e holandeses. Foram os bandeirantes que demarcaram e ga- rantiram as atuais divisas do país, a exemplo do capitão Pedro Teixeira, que subiu o Ama- zonas e pelo Negro chegou ao rio Branco, ou Raposo Tavares, que foi de São Paulo a Gu- rupá, perto de Belém, e mesmo Francisco de Melo Palheta, cuja entrada de 1727 avançou até a Guiana Francesa e de lá trouxe nada menos que o café.
Os tempos são outros, os métodos idem. É impensável que países como a França, Es- panha, Holanda ou Inglaterra simplesmente invadam a Amazônia. É compreensível, por ser fato palpável, no entanto, que muita gente de boa-fé preocupe-se com o futuro da região, por ela constituir um tesouro ecológico re- tardatário. A ninguém agrada, a começar dos brasileiros, a progressiva destruição da maior floresta equatorial do mundo. São latentes, porém, as insinuações de que o melhor para a preservação do planeta verde seria relativi- zar a soberania do Brasil. Na prática, isso já está acontecendo com a presença ruidosa de ongs estrangeiras que integram o movimen- to ambientalista internacional. Dão palpites se podemos ou não abrir uma estrada, fazer uma barragem, explorar a floresta. Os países industrializados destruíram ou consumiram seus recursos naturais e continuam a ser os maiores poluidores do planeta. Agora, por meio de suas ongs, e de uma e outra indis crição de autoridades, erguem a bandeira da intocabilidade da Amazônia.


Doutrina perigosa


Como todo movimento político, este também tem sua ideologia. A doutrina da preservação dos “povos da floresta” assegura que os índios constituem nações e têm direito à soberania ao menos relativa em referência aos Estados na- cionais. O centro da questão com a Inglaterra, no século xix, esteve precisamente nesse con- ceito de autonomia tribal. Os mapas ingleses não mostravam a região que ia da fronteira da Guiana até o rio Surumu (uma das áreas da reserva de Raposa-Serra do Sol) como per- tencentes ao Brasil, mas habitada por “tribos independentes”. A bandeira da independência, associada à propaganda de que os índios são vítimas do Estado brasileiro, abre as portas dos foros internacionais. Já é rotina as ongs em- purrarem índios para a busca da arbitragem estrangeira, como se expressassem uma ques- tão nacional própria alheia e até antagônica à nação brasileira.


Não se pode atribuir outro sentido à via- gem a seis países europeus (e mais o Vaticano e o papa) feita em junho e julho por dois ín- dios de Roraima. Na visita a Lisboa, segundo relato do jornalista Simon Kamm, da Agên- cia Lusa, a índia Pierlângela Cunha, da tribo vapixana, instou Portugal “a que ratifique a Convenção 169 da oit sobre povos indígenas e tribais em países independentes [que trata sobre a relação entre os povos indígenas e a sua terra, recursos naturais e oportunidades de desenvolvimento] para que outros povos nativos possam solicitar apoio”. O jornal Ti-
mes de Londres noticiou que Pierlângela apresentou a viagem como acumulação de forças para a batalha que os índios já planejam travar em tribunais internacionais, caso o Supremo Tribunal Federal decida pela demarcação des- contínua de Raposa-Serra do Sol. As duas li- deranças indígenas pediram a intervenção de autoridades estrangeiras no conflito brasileiro mencionando os documentos que advogam a independência das tribos.


Além da Convenção da oit, invoca-se a Declaração dos Direitos dos Povos Indíge- nas, aprovada pela Assembléia Geral da onu em 13 de setembro de 2007. O Brasil e mais 142 países, a maioria deles sem um só índio, votaram a favor, mas quatro que concentram grandes populações aborígines foram contra: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O artigo 3º da Declaração é pe- remptório: “Os povos indígenas têm direito à livre determinação”. Na tradição do indi- genismo brasileiro, aquela de José Bonifácio, Marechal Rondon e Darci Ribeiro, consolida- da pelo Estatuto de 1973, as tribos não cons- tituem nações nem são povos independentes, portanto não podem as vivandeiras atribuir- lhes independentismo que as coloquem acima ou ao largo do Estado nacional. Logo, o único foro aceitável para este debate é o Brasil, sua sociedade e instituições, a exemplo do Supre- mo, que avalia se mantém ou não a demarca- ção contínua de Raposa-Serra do Sol.


Se prosperar essa doutrina de que os índios têm direito à autodeterminação em seu territó- rio, como parece estar prosperando, amplia-se uma vulnerabilidade que expõe larga faixa do território brasileiro à influência de organismos internacionais e ao manejo de organizações es- trangeiras. Por mais que caminhem na direção da integração à sociedade nacional, fenômeno que ocorre em Roraima, os índios não têm – e deles não se cobra – consciência geopolítica so- fisticada para discernir os interesses em jogo. Eles não ocupam as terras no sentido de fixar uma presença nacional marcante, afirmativa e dissuasória numa área de fronteira. Nem isso deles se espera. Tal papel é do Estado, não só com seu aparelho militar, mas como indutor da ocupação do território. A tarefa secular, renova- da em nossos dias, é ocupar a Amazônia e evitar a intromissão estrangeira. A última coisa que o Brasil pode admitir é a transferência dos seus problemas para foros multilaterais, e depender de arbitragens externas. São atualíssimas duas lições do litígio com a Inglaterra.


A primeira foi lavrada já em 1904, pelo Ba- rão do Rio Branco, chanceler do Brasil que aca- tou a mediação do rei da Itália. Num artigo de jornal, citado por José Theodoro Mascarenhas Menck, o estadista, que soube resolver a Ques- tão do Acre com a Bolívia, sem sangue ou res- sentimento, afirmou: “Esta lição consiste em reconhecer que o arbitramento não é sempre eficaz. Pode a causa ser magnífica, o advogado inigualável, e, como é o caso, ter-se uma sen- tença desfavorável”. Só devemos recorrer a ela quando for de todo impossível chegarmos a um acordo direito com a parte adversa. Transigire- mos, então, tendo em vista o interesse comum, mas não veremos possíveis interesses estranhos a nós, desconhecendo o nosso Direito e até os princípios do Direito Internacional”.
Ser forte para ser pacífico

T
ambém soa contemporânea a conclusão de Joaquim Nabuco de “que quem tem uma propriedade deve logo tratar de a delimitar e de ocupar as fronteiras”. Sem descuidar das ne- cessidades dos índios, cabe ao Estado brasileiro induzir a ocupação das zonas fronteiriças com megaprojetos de desenvolvimento que respei- tem o ecossistema, mapeamento fisiográfico, monitoração militar e pesquisa científica. Dois programas importantes para a região, o Calha Norte e o Projeto Sivam, se não fracassaram, ficaram longe dos objetivos. Uma falha do Es- tado está na balbúrdia fundiária: ninguém sabe quem é dono do quê. Urge instalar uma su- perbase administrativa com unidades do Incra, Ibama, Funai e militares das três Armas, talvez no rio Negro, com tropa numerosa e flexível, e apoio de caças e de aviões-patrulha, além de corvetas de baixo calado e rápido deslocamen- to. Hoje, o Exército tem apenas 25 mil sol- dados na Amazônia. Tome-se o caso da faixa de dois mil quilômetros de fronteira com as Guianas e o Suriname: o pelotão local dispõe de apenas dezessete homens para fiscalizar a faixa de 1 385 quilômetros de fronteira no ex- tremo norte do Pará. As unidades do Exército não possuem barcos velozes nem helicópteros nem aviões de caça para fiscalizar a fronteira e chegar rapidamente a um local de conflito ou de situação suspeita. Usam ubá, a velha canoa índia esculpida num tronco de árvore.


Mais uma vez, paira sobre nossas respon- sabilidades uma advertência de Rio Branco, feita em discurso no Clube Militar, em 11 de outubro de 1911: “Não se pode ser pacífico sem ser forte”.

B E TO R ICA R DO E M Á R CIO SANTILLI

A pesar da convivência e do confronto de mais de 500 anos, o conhecimento que a sociedade e o Estado têm sobre
os povos indígenas no Brasil é fragmentário e cumulativo, embora tenha avançado significa- tivamente a partir dos anos 1980. Até os nomes que se dão a esses povos freqüentemente não são autodenominações, mas termos pejorati- vos que lhes foram atribuídos e permaneceram no glossário oficial. Enquanto levávamos tanto tempo para aprender e reconhecer os seus pró- prios nomes, centenas de povos desapareceram. Ainda hoje é provável que estejamos deixando de conhecer muitíssimo sobre as particularíssi- mas visões de mundo dos povos indígenas con- temporâneos.


Até os anos 1970, a perspectiva que se ti- nha no Brasil era a da inexorável extinção dos índios ou da sua “incorporação à comunhão nacional”, como preconizavam as Constitui- ções anteriores à de 1988. Extinção “muito de- sejável” para os que estavam em conflito direto com índios em qualquer parte do território nacional; “processo natural” para os realistas de diferentes matizes, inclusive os de orientação marxista; “tragédia inevitável” para os que se opunham de alma ou de militância à violência

beto ricardo é antropólogo, coordenador do Pro- grama Rio Negro do Instituto Socioambiental (isa). márcio santilli, filósofo, ex-deputado federal e ex- presidente da Funai, é coordenador da iniciativa sobre mudanças climáticas do isa.
histórica e mantinham simpatia pelos povos indígenas e suas lutas.


Foi uma surpresa constatar, no início dos anos 1980, que a população indígena no Brasil crescia, a despeito de que dezenas de etnias ain- da estivessem, e continuam a estar, sob risco de extinção. O padrão histórico de contato entre a nossa sociedade-Estado e esses povos é o de choque imediato num primeiro momento, em que eles podem sucumbir ao impacto das armas ou das doenças. Mas quando logram sobreviver, adaptam-se ativamente às novas condições, até mesmo do ponto de vista imunológico. Atu- almente, verificamos a existência de muitos processos em curso de afirmação cultural e de recomposição demográfica, freqüentemente em taxas superiores à média de crescimento da po- pulação nacional. São processos relativamente recentes e que ocorrem de Norte a Sul do país (ver exemplos registrados por vários autores e fontes na série de publicações Povos Indígenas no Brasil, publicada desde 1980 pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação– cedi, e a partir de 1995 pelo Instituto Socioambiental – isa).
O placar atual registra 227 povos indígenas vivendo no Brasil, em 626 terras indígenas, demarcadas ou com algum grau de reconheci- mento oficial, falando cerca de 180 línguas. Não há um censo indígena especializado no Brasil. Computam-se dados da Funai, da Funasa e de outras instituições e pesquisadores para se che- gar a cerca de 450 mil índios vivendo em terras indígenas, ou núcleos urbanos próximos. A população indígena urbana, que mantém relações com comunidades e terras indígenas, é ainda menos aferida. A esses contingentes se somam muitos milhares de pessoas que, por força de descendência ou de qualquer outra relação de identidade, assumiram-se como índios no censo nacional do ibge de 2000.


Resulta que a demografia indígena do Brasil é muito diferente da andina ou da mexicana e se caracteriza pela diversidade de povos. Há etnias com alguns milhares de pessoas (23 po- vos têm mais de cinco mil indivíduos), mas a maioria forma grupos reduzidos (50 povos têm população de até 200 indivíduos).
Direitos originários

Refletindo o fato histórico de que os povos indígenas mantêm parte considerável da sua exuberante diversidade cultural e de que a população indígena passou a crescer acima da média nacional, a Constituição de 1988 reconheceu o óbvio: os índios não vão extinguir- se e devem fazer parte do futuro do Brasil. A eles se reconhecem direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e às suas próprias formas de organização social e expressão cultural.


O caráter originário desses direitos é uma prerrogativa histórica dos índios, mas a Constituição é também generosa no reconhecimento da diversidade brasileira como um todo, ao legitimar as expressões culturais regionais, os direitos dos negros e dos quilombolas, das minorias em geral, dos emigrados. Todos são brasileiros, compartilham uma mesma ordem jurídica e política, mas ninguém está privado da sua condição histórica ou cultural diferente, sendo a diversidade um patrimônio nacional.


O direito originário não é uma dádiva, é um reconhecimento. Decorre de uma anterioridade histórica que não pode ser ignorada. Já não se criam “reservas indígenas” mas se reconhecem “terras indígenas” ocupadas ou se reparam es-
bulhos recentes. A sua propriedade é da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos naturais nelas existentes. O direito originário não é “externo”, mas se insere de forma apropriada no ordenamento jurídico nacional.


O fato de que a Constituição privilegia a tutela pela União dos direitos especiais dos índios não modifica os direitos e obrigações que eles têm como quaisquer brasileiros. Suas terras integram municípios e estados e, assim, como terras privadas ou outras terras públicas, podem estar situadas em regiões mais ou menos provi- das de recursos naturais, em qualquer unidade da federação, mais ou menos próximas de fronteiras internacionais.


A extensão total das terras indígenas no Brasil é de mais de 109,7 milhões de hectares, ou 12,8% do território nacional. Porém, essa extensão é marcadamente desigual quando se compara a região amazônica com o restante do território nacional. Na Amazônia Legal Brasileira, que corresponde a 60% do territó- rio nacional, vivem 60% da população indígena brasileira, ocupando 98,8% da extensão total das terras indígenas. Os outros 40% da popu- lação indígena vivem em terras predominan- temente exíguas, que correspondem a 1,2% da extensão total das terras indígenas.
Essa aparente distorção não é uma singula- ridade. A correlação disforme entre extensão de terras dentro e fora da Amazônia Legal tam- bém ocorre com as unidades de conservação, com as áreas destinadas a uso militar, com as grandes propriedades rurais e com o módulo de terras para assentamentos, com a extensão dos estados e municípios, etc. É conseqüência da baixa densidade demográfica de grande parte do interior amazônico. Os 22 milhões de ama- zônidas vivem fortemente concentrados nas cidades, enquanto a população indígena cons- titui franca maioria nas zonas rurais de extensos municípios da região.


Assim, a extensão das terras indígenas está longe de constituir privilégio. Que o digam os povos indígenas, fronteiras e militares 19 Terena e os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, que vivem aos milhares em terras com um punhado de hectares, numa correlação mui- to inferior à reconhecida para não-índios pelos módulos rurais para reforma agrária. Mesmo na região amazônica, as terras indígenas resultam de ocupação efetiva e a sociedade brasileira deve valorizar, em vez de lamentar, que a sua presen- ça sobre essa parte do território esteja sendo garantida por pessoas e grupos indígenas. Não é fácil viver no interior da floresta e as formas milenares de ocupação indígena ainda têm sido mais eficazes que os modelos clássicos de ocu- pação intensiva nessas regiões.


Faixa de fronteira

Nas Américas, os estados coloniais e depois nacionais se sobrepuseram à ocupação an- terior de milhares de povos indígenas e, segundo padrões diferenciados, absorvem a sua ocupação atual. De um modo geral, a ocupação colonial do continente se deu das regiões costeiras para o interior. Na Amazônia, ela se estabeleceu a partir das terras baixas. O controle sobre a foz do rio Amazonas permitiu a portugueses e bra- sileiros um acesso mais fácil à imensa extensão territorial abrangida pelos leitos navegáveis dele e de seus formadores e afluentes, razão pela qual mais da metade da bacia amazônica acabou incluída no território nacional.


No processo de ocupação do interior, grupos indígenas foram historicamente escravizados ou cooptados, outros massacrados ou mortal- mente infectados, muitos fugiram para as terras mais altas, acima das cachoeiras e alguns ainda hoje não chegaram a ser diretamente alcança- dos. Não é de estranhar que a ocupação indí- gena seja tanto maior onde menor tenha sido a penetração colonial. Assim como é de esperar que a ocupação indígena permaneça ou preva- leça em regiões remotas, fronteiriças, como as terras mais altas da região amazônica.


O Brasil tem 16 886 quilômetros de fronteira terrestre com dez países da América do Sul. Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas em tratados bilaterais com todos os vizinhos, encontram- se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucional- mente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de onze estados brasileiros. Aí estão cidades, estradas, rios, posses e assentamentos, propriedades privadas rurais, terras públicas com diferentes destinações e, inclusive, terras indígenas.


Existem 177 terras indígenas situadas na faixa de 150 quilômetros da fronteira em todo o país, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório. A demarcação das terras indígenas situadas em faixa de fronteira é uma providência fundamental, entre outras, para a regularização da situação fundiária, fator relevante para garantir estabilidade e evitar conflitos em regiões de fronteira. A indefinição de limites, a ocorrência de invasões e de disputas pela terra, não apenas quando se trata de terra indígena, constitui uma fragilidade que desfavorece a política de fronteiras.


De Norte a Sul do Brasil, há 43 povos indí- genas que vivem em território brasileiro e em território de países vizinhos. A construção polí- tica das fronteiras terrestres não se pautou pela morfologia pluriétnica da ocupação indígena nesses territórios. Fundamentou-se muito mais na presença militar ou missionária, com base no princípio da ocupação colonial efetiva, que recortou povos e territórios.


Porém, freqüentemente, as relações construídas entre as frentes de colonização e as “lideranças” ou intermediários indígenas locais foram cruciais em muitos casos para caracterizar a efetividade da própria presença colonial e implicaram a inclusão (ou exclusão) das ter- ras ocupadas por esses grupos. Essas relações continuam sendo relevantes no exercício da soberania dos Estados nacionais, assim como para a implementação de quaisquer políticas públicas nessas regiões. A qualidade dessas re- lações é um fator indissociável da qualidade dessas políticas.


Não há registro histórico de conflitos fron- teiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como re- ferência central. Assim como não há preceden- te de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar Estado próprio. A expectativa con- tinuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políti- cas de seu interesse pelo Estado brasileiro. E há o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasilei- ro, ainda no século xix, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai. Vale também mencionar a Comissão Rondon de Inspeção de Fronteiras do Norte amazôni- co, que, no ano de 1927, recomendava a mui- tas aldeias e chefes indígenas que visitava que se fixassem em território nacional, buscando persuadi-los com promessas de assistência por parte do Estado brasileiro.
Intercâmbios transfronteiriços

Mas a fronteira não é apenas uma linha imaginária politicamente acordada para estabelecer limites entre territórios nacionais. Por ela transitam pessoas, mercadorias e ilíci- tos. Além da situação dos povos indígenas que vivem dos dois lados da linha, há brasileiros (e vizinhos) que vivem além (ou aquém) dela, fa- miliares e amigos, comerciantes e turistas. Com fronteira plenamente reconhecida, vivendo em paz com todos os seus vizinhos há mais de um século e diante do avanço democrático ocorri- do na América do Sul nos últimos vinte anos, é de esperar que essa linha enseje políticas de aproximação e integração, valorizando o inter- câmbio de idéias, manifestações culturais e pro-
dutos. Isto vale para índios e para não-índios, brasileiros e demais sul-americanos, residentes ou viajantes.
E, ainda, a fronteira é um espaço suscetível de incidentes. Passam por ela produtos falsifi- cados, dinheiro ilícito, drogas, doenças, arma- mentos traficados, criminosos contumazes e imigrantes ilegais. Via de regra, essas conexões criminosas ocorrem nas cidades fronteiriças e se utilizam das vias de transporte entre os paí- ses, mas também podem utilizar-se de qualquer área de fronteira em que encontrem condições mais favoráveis. Raramente ocorrem em terra indígena ou envolvem pessoas indígenas.


Em tempos de paz, os incidentes de fron- teira são de natureza tipicamente policial. Ocorrem em qualquer parte do(s) território(s) nacional(ais). Confrontam a ordem jurídica e a autoridade do Estado, mas não ameaçam a so- berania política ou a integridade do território nacional. São questões afetas à política para as fronteiras e não propriamente à defesa mili- tar; demandam repressão policial e não guerra convencional.


É temerária a atribuição de poder de polí- cia para forças militares, seja para combater o crime em periferias de grandes cidades ou em faixa de fronteira. O seu eventual envolvimen- to com o próprio crime, como ocorreu recen- temente no Rio de Janeiro, quando militares em missão de segurança numa favela entrega- ram três adolescentes civis a uma facção rival de narcotraficantes que os assassinou, desgasta sua imagem e as debilita para o exercício da sua função primordial: a defesa nacional (territórios e gentes). É lícito que se recorra às forças mili- tares em situações de emergência, como para a defesa civil em casos de sinistros naturais. Mas é sumamente pernicioso que elas sejam utiliza- das para substituir a ação da polícia e de outros órgãos de Estado na execução de políticas que não são afetas à sua competência. Inclusive – e sobretudo – em regiões de fronteira.


Cabe uma reflexão mais profunda sobre as razões que levam pessoas e governantes a que povos indígenas, fronteiras e militares 21rerem que o Exército suba os morros, execute obras públicas, combata a grilagem de terras, proteja as unidades de conservação. É como aceitar que o Estado de Direito não só não fun- ciona como não possa funcionar e, ainda, que a força bélica convencional nos possa imunizar das balas perdidas e achadas, resolver gargalos de infra-estrutura, promover o ordenamento fundiário e garantir a biodiversidade nacional. Nesse contexto, o melhor cenário é o da in- competência, já que Forças Armadas não são formadas e treinadas para isso. O pior é o seu envolvimento em conflitos internos à socieda- de brasileira e até com o crime organizado. É vã e perigosa a ilusão dos que esperam substi- tuir, pela presença militar, o necessário enfren- tamento às mazelas do Estado democrático e
das suas políticas públicas.


É certo que as Forças Armadas dispõem do poder legal de convocação, que é uma enor- me vantagem comparativa para alocar quadros profissionais em regiões críticas ou remotas. E é inaceitável que as estruturas civis de Esta- do, com vinte anos de estabilidade democrá- tica, não tenham sido capazes de desenvolver mecanismos de incentivo, adequação estrutural, diferenciação e adaptação de procedimentos, formação de quadros locais para o mesmo fim. O Estado democrático precisa ser despido da sua postura cartorial e impelido pela sociedade a assumir a sua função em qualquer parte do território nacional.


Índios e militares

Nessa mesma lógica, mazelas institucionais da Funai e de outros órgãos com com- petências afetas às demandas indígenas não justificam a interveniência militar na política indigenista. O conhecimento atual sobre os di- ferentes povos, com milhares de comunidades com localização definida, a dimensão das terras já reconhecidas, com recursos naturais, patri- mônio cultural, serviços ambientais, diversidade biológica e conhecimentos tradicionais associa-
dos, impelem a sociedade e o Estado nacional a buscar respostas mais consistentes.


Não se trata de ignorar as relações históricas acumuladas entre militares e índios, que leva- ram as Forças Armadas a incorporar a questão indígena à sua visão estratégica, o que é um mérito a ser perseguido por outras instituições. Das guerras coloniais ao indigenismo tutelar, é inegável, para o bem ou para o mal, a influência militar sobre a política indigenista. Porém, ain- da há vivas seqüelas do período histórico mais recente em que essa influência se traduziu em subordinação, na ditadura militar e no gover- no Sarney, em que os conflitos sobre direitos e terras indígenas se multiplicaram.


Também não se trata de minimizar a im- portância e a extensão das relações atuais entre índios e militares, sobretudo na parte amazôni- ca da faixa de fronteira. Há pelo menos 30 anos, o Exército vem procedendo à transferência de unidades com infra-estrutura, equipamentos e efetivos de outras regiões do Brasil para a Ama- zônia, que no conjunto atingirão logo mais um total de 25 mil homens. Outro mérito seu: a ênfase estratégica na Amazônia, que por mui- tos motivos não-militares é, mesmo, altamente estratégica.
Assim como vem aumentando a presença militar em diversos municípios situados em re- giões de fronteira, o Exército vem implantando dezenas de pelotões em terras indígenas nessas regiões (ver mapa na página seguinte). Mesmo dispondo do poder convocatório, trata-se de um trabalho penoso e dispendioso, com todos os ônus da transferência e permanência de contin- gentes em regiões remotas, desprovidas de infra- estrutura e condições favoráveis de assistência, dependendo de abastecimento por via aérea.


Pode ser que a atual presença militar em ter- ras indígenas, assim como em outras áreas, ain- da não seja suficiente para a estratégia de defesa nacional que se pretende. Está prevista a insta- lação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fron- teira. É o que dispõe um decreto presidencial

recente (nº 6 513, de 22.7.2008, publicado no Diário Oficial da União no dia 23.7.2008, seção 1, p. 1), que prevê a apresentação de um plano do comando do Exército a ser submetido pelo Ministério da Defesa à aprovação do presidente da República num prazo de noventa dias.


Esse decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a seg- mentos antiindígenas, do que para atender a necessidades da defesa nacional. É discrimina- tório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indí- gena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdí- cio de recursos públicos que certamente se- riam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclu- sive a indigenista.


Além do mais, a forma e a intensidade do estabelecimento de unidades militares em ter- ras indígenas, quando for o caso, têm outras implicações que merecem atenção e o estabe- lecimento de regras, mecanismos de monito- ramento e mediações institucionais adequadas para resguardar os direitos indígenas e dirimir situações de conflito de interesses. Antes que o debate ganhe contornos puramente ideoló- gicos, trata-se de apontar, a título de exemplo, algumas questões concretas que merecem a atenção daqueles que prezam as prerrogativas do Estado democrático de direito. Quais são os critérios que regem a escolha dos locais de instalação das unidades militares? Quando os locais pretendidos pelos militares para a insta- lação de um pelotão ou de uma pista de pouso coincidirem com a existência de comunidades indígenas, como realizar uma consulta prévia informada? Quais as mediações adequadas para que tais consultas respeitem a organiza- ção social e formas de comunicação eficazes, o que implica, em muitos casos, a necessidade de tradução das justificativas em línguas na tivas? Uma vez definidos esses locais, via de regra colados a comunidades já existentes em áreas remotas, quais as regras para a utilização de recursos naturais (água, pedra, areia, etc.) e de mão-de-obra locais para a construção da infra-estrutura? Não seriam desejáveis estudos prévios de impactos socioambientais? Uma vez instalada a infra-estrutura, quais as regras de convivência entre os militares dos pelotões e as comunidades locais?


A proximidade física entre pelotões e al- deias potencializa a ocorrência de incidentes nas relações entre militares e índios. Por exemplo, quando são explorados locais sagrados com a explosão de rochas para obter brita para a pa- vimentação de pistas de pouso, ou corrompidas paisagens e fontes de água em busca de areia; ou em operações de campo realizadas sem aviso prévio da população civil. Ou quando soldados se utilizam, sem prévia autorização, de alimen- tos coletados em roças indígenas durante exercícios de sobrevivência na selva. Ou quando ocorrem relações sexuais entre soldados e ín- dias, consentidas ou forçadas, gerando ressentimentos e nascidos que não se enquadram nas estruturas sociais tradicionais.


Portanto, o como e o onde dessa presença militar em terras indígenas é altamente relevan- te para essas relações, para que elas se desen- volvam em condições favoráveis e consistentes com o objetivo de defesa nacional, que também inclui a segurança e a confiança dos índios. Cer- tamente, não são implicações estranhas aos co- mandantes militares, mas ainda há muito que se pode fazer, e corrigir, para que se evitem esses incidentes e se potencialize a dimensão mais positiva da relação.


Mobilidade e inteligência

E ssas cautelas no âmbito das relações entre índios e militares são também pertinentes
às relações com qualquer outro grupo social, sendo todos merecedores da segurança nacio- nal. Há, ainda, alguns aspectos da própria estratégia de defesa das fronteiras que merecem ser observados e considerados, inclusive na in- terface com os povos indígenas.


A atual política de defesa privilegia a aloca- ção de tropas em pontos determinados de uma extensa faixa de fronteira. Em qualquer estraté- gia, a presença de tropas, em alguma medida, é indispensável. Porém, parece evidente que essa política não reconhece igual importância aos fa- tores de mobilidade e de inteligência. Nas con- dições amazônicas, o rápido deslocamento de tropas, sobretudo por via aérea, é mais decisivo do que a pulverização de contingentes em pon- tos isolados ao longo da fronteira. Além disso, incidentes e ameaças são pouco visíveis, dada a extensão da fronteira e a densidade da floresta. São redes locais e informais de comunicação que os fazem conhecidos. Com presença direta de poucas pessoas qualificadas, baseadas em comunidades-chave, pode-se saber melhor e mais rápido da sua eventual ocorrência.


No que se refere aos índios, o Exército tem avançado, em algumas regiões, na sua incorpo- ração por meio de recrutamento, como na Terra Indígena Alto Rio Negro, na qual 70% da tropa dos cinco pelotões é formada por recrutas indí- genas locais. Além de possibilitar a redução de custos e de dificuldades de adaptação, a inserção de índios em batalhões tem assegurado van- tagens comparativas quanto ao conhecimento do terreno, à capacidade de deslocamento e de sobrevivência na selva. Porém, essa sabedoria ainda não se traduziu na incorporação de pes- soas indígenas às instâncias de comando. Da mesma forma, há pouca ênfase na formação de quadros de inteligência militar especializados para atuar em regiões com presença indígena, inclusive de pessoas indígenas entre estes, que pudessem aportar o conhecimento de línguas e de referências geográficas, além de relações sociais e culturais preciosas para a identificação e prevenção de riscos potenciais.


Não se está aqui sugerindo que a política de defesa nacional seja entregue aos cuidados dos índios (nem mesmo nas próprias terras in-
dígenas), como costumam reagir algumas au- toridades militares diante de tais ponderações. Embora muitos deles disponham de forma- ção militar ou tradição guerreira, uma estra- tégia contemporânea de defesa supõe muitos outros recursos, instrumentos e competências. Tampouco seria justo e razoável atribuir-lhes, como a qualquer outro grupo social, os ônus e responsabilidades de toda a nação. Postula-se aqui o óbvio: que os índios sejam considerados, como os demais cidadãos, atores, destinatários e aliados para a defesa do país, e não óbices, inimigos ou inconfiáveis.
Imaginações perigosas

A fronteira suscita, ainda, além do anseio de integração, dos incidentes criminais e das cautelas de defesa, muita imaginação. Tanto das pessoas comuns, que tendem a associá-la ao desconhecido, quanto de estrategistas mi- litares, que raciocinam por hipóteses, como é próprio, mas nem sempre atribuem a cada hi- pótese o peso específico que lhe cabe ponderar em função dos fatos concretos e do seu grau de probabilidade. Freqüentemente, possibilidades teóricas, remotas ou inverossímeis, são politica- mente priorizadas para legitimar reivindicações
corporativas ou orçamentárias.


A exposição de motivos para o Projeto Ca- lha Norte, de 1986, falava em ameaça constitu- ída pela presença de um governo marxista na Guiana, o que projetaria o conflito Leste-Oes- te (Guerra Fria) sobre o Norte da América do Sul. Três anos depois, cairia o Muro de Berlim. Agora, Hugo Chávez pode fazer as vezes de ameaça à soberania nacional.
Da mesma forma, aquele e outros documen- tos oficiais chegam a tratar do “risco de criação de um Estado Yanomami”, pelo desmembra- mento de territórios pertencentes ao Brasil e à Venezuela, imemorialmente ocupados por este povo. Como inexiste demanda indígena nesse sentido – menos ainda por parte dos Yanoma- mi, que mantêm relações ainda recentes de contato com as sociedades e Estados nacionais, não dispõem de qualquer estrutura hierarquizada e global de representação política e estão espa- lhados por centenas de aldeias, separadas por grandes distâncias e sem mecanismo sequer de intercâmbio de informações entre elas –, atri- bui-se a “potências mundiais” a intencionalida- de dessa hipotética construção política.


Há países que reconhecem status de autonomia, subordinado ao ordenamento jurídico dos respectivos Estados nacionais, a regiões com presença relevante de populações indíge- nas, como Canadá e Nicarágua, de populações autóctones, como a Noruega, de populações tri- bais ou de minorias étnicas, em outras partes. Porém a hipótese de desmembramento territo- rial, imposto pela força de terceiros, é totalmen- te extravagante até para o contexto do Iraque ocupado, não havendo precedente nas Amé- ricas, o que seria inaceitável, inclusive, para os próprios Estados Unidos, única potência con- temporânea com aparato militar para sustentar equivalente intervenção.
Se, por absurdo, uma potência estrangei- ra decidisse invadir militarmente o Brasil para derrubar o seu governo ou esquartejar o seu território, por que haveria de utilizar remotas fronteiras terrestres? Não seria mais fácil e me- nos custoso bloquear portos e aeroportos, ata- car a infra-estrutura, cortar fontes e rotas de abastecimento? Para isolar a Amazônia, por exemplo, não seria mais eficaz aplicar a lição histórica da colonização e promover a ocupação militar da foz do Amazonas?


É patético que autoridades militares, inte- lectuais conservadores e jornalistas sensaciona- listas lancem mão da extravagante hipótese de um “Estado Yanomami” para justificar novos investimentos na política de defesa nacional. Não deveria ser preciso.

Tensão em Roraima

A qualidade das relações entre índios e mi- litares, na fronteira, não é homogênea e
varia segundo contextos e conjunturas locais, além de posturas pessoais. Por exemplo, elas são mais maduras e institucionalizadas na re- gião do Alto Rio Negro, onde as terras indíge- nas estão demarcadas (com expressiva extensão contínua), a população indígena é majoritária e está organizada em federação capilar, o coman- do militar atual é de alta patente e exercido com ponderação. E se encontra a fronteira com a Colômbia, onde atuam as farcs, os paramili- tares e os narcotraficantes, presenças incompa- ravelmente mais incômodas do que nas demais regiões de fronteira.

Muito mais tensas estão essas relações em Roraima, onde ainda ocorre a disputa por ter- ras indígenas, com autoridades militares se dei- xando envolver nela freqüentemente, e onde os índios, além de não as convidarem para eventos e assembléias, como rotineiramente o fazem os do rio Negro, se opõem expressamente à sua presença. E onde não há registro de ocorrências críticas recentes afetas à defesa nacional prove- nientes da Venezuela ou da Guiana.


É mais do que evidente que os fatores que contribuem para deteriorar as relações entre índios e militares na fronteira são intrínsecos, decorrem das dificuldades da própria relação ou estão associados a conflitos internos à or- dem política, social e econômica brasileira, as- sim como são passíveis de solução no âmbito da própria relação. Eles não decorrem de ação externa, de alianças indígenas com inimigos além-fronteira. Ao contrário, à menor ameaça externa, o recurso à união entre as partes é in- discutível, imediato e automático.


Portanto, não se deve politizar os incidentes de relação como se fossem afetos à soberania nacional ou à integridade do território. Deve-se trabalhar melhor a própria relação, adotar pro- cedimentos que evitem incidentes e ampliem espaços de cooperação.


Na contramão, a discussão pública sobre índios e militares na fronteira polarizou-se ultimamente, com o questionamento da de- marcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, no Supremo Tribunal Fede- ral (stf ). Está em evidência um paradigma de conflito, e não de solução.


A identificação administrativa dessa terra vem desde 1977 e foi concluída, com a publi- cação no Diário Oficial da União em 1993, do respectivo despacho do presidente da Funai e parecer com as coordenadas geográficas da área proposta para demarcação. Da área contínua proposta, ficou excluída a área urbana de Nor- mandia e o seu entorno, único município ali então constituído, onde estava estabelecido o batalhão de fronteira então existente.
Após esse ato, e contra ele, fazendeiros ocu- param ilegalmente parte das áreas de várzea da terra indígena com produção de arroz, repre- sentantes indígenas foram cooptados, um novo município foi criado com sede dentro da área oficialmente identificada pela Funai, estradas estaduais foram implantadas e outras obras pú- blicas foram planejadas sem audiência aos ín- dios ou entendimento com o governo federal. A proposta de demarcação sofreu contesta- ções administrativas que foram recusadas pela Funai e pelo Ministério da Justiça, mas ense- jaram morosidade e decisões inconclusivas e contraditórias. Apenas em 1998, foi expedida a portaria ministerial com a decisão política sobre os limites da área e determinando a sua demarcação física. Pressões políticas, liminares judiciais e baixo grau de determinação fizeram com que a homologação presidencial da demarcação física só viesse em 2005.


Em que pese a ocupação imemorial dessa área pelos Macuxi, Wapixana, Taurepáng, In- garikó e Patamona de Roraima, já se vão três décadas de trâmites administrativos e judiciais, com conflitos acirrados e vítimas fatais, sem que eles tenham uma solução efetiva e defini- tiva em relação aos seus direitos territoriais. A demarcação foi homologada, ficou estabeleci- do o prazo de um ano para a retirada dos ocu- pantes não-índios, e quando uma atabalhoada operação policial foi mobilizada para retirar alguns poucos ocupantes resistentes, notada mente os arrozeiros, o stf acatou um pedido de dois senadores para suspendê-la e sinaliza um próximo julgamento final do caso, prolon- gando incertezas.
Além da previsível pressão das partes inte- ressadas, aí incluídos pronunciamentos de auto- ridades militares, o julgamento do caso pelo stf ocorrerá num contexto marcado por confrontos entre poderes e polêmicas entre seus membros, representantes e associações de classe, por con- ta de grampos telefônicos, banqueiros presos e algemados, decisões judiciais contraditórias e outras “brigas de branco”.


Reza a tradição que, em “briga de branco”, pode muito bem sobrar para negros e índios. Deveria sobrar? Deveriam esses índios pagar com a própria terra pelos interesses contraria- dos? Por alegados erros processuais? Por fatos consumados no decorrer do lento processo de reconhecimento oficial? Pelas operações poli- ciais? Pela insuficiente presença do Estado na- cional nas fronteiras? Pelo populismo verbal ou armado em países vizinhos? Pela cobiça da Amazônia por gringos mal-intencionados?


Ou deveriam ser resgatados desse paradig- ma de conflito, compensados e indenizados pelo esbulho histórico, pela morosidade polí- tica, administrativa e judicial no reconhecimen- to dos seus direitos fundamentais, pelos mortos, feridos e desprovidos em sucessivos conflitos, pela degradação do seu território, pela nega- ção da sua identidade e pelo desprezo às suas tradições?


Pelo estado democrático

O debate que emerge agora sobre índios nas fronteiras está prismado pelo paradigma
do conflito. É um surto midiático, desmemoria- do, que comprime toda uma história em uma página de revista. Ainda assim, é melhor do que o silêncio.


Nesse debate, que também inclui opiniões muito qualificadas, misturam-se fatos, boatos, impressões, suposições e acusações. Incidentes são mencionados sem que se distinga o seu caráter de ameaça política externa, criminalidade comum, conflito social interno ou de incidente de relação. Sem que sejam comparados dentro e fora de terras indígenas, dentro e fora de faixa de fronteira, dentro e fora do território nacional.


Mistura-se ainda, além de tudo que há, tudo o mais que possa haver: projeção de con- flitos planetários, governos inconfiáveis, rique- zas minerais inesgotáveis, biopirataria, cobiça pela Amazônia, gringos e ongs suspeitos e até Estados indígenas. E também o que se possa imaginar: toda a faixa de fronteira povoada por gente malfeitora, onde antes os militares diziam haver um imenso “vazio demográfico”, cheio de “florestas virgens”.

O fato é que, salvo em alguns pontos notoriamente críticos, como entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Leste, no Paraguai, e outros corredores de tráfico, a faixa de fronteira continua como sempre, com predomínio de áreas com baixa ocupação demográfica, com alguma presença militar e quase nenhuma presença do Estado civil. Há alguns milênios deixou de ser um vazio demográfico, assim como as florestas deixaram de ser virgens, se é que algum dia o foram.
O que falta nas terras indígenas, na faixa de fronteira e em várias outras partes do território nacional, é o estado democrático de direito. É o planejamento civil do território, com a destinação das terras e a resolução dos conflitos. É a implementação de políticas de saúde, de educação e de segurança alimentar. É uma polícia competente. E que as Forças Armadas possam, com maior ou menor efetivo, dedicar-se à dissuasão de possíveis ameaças externas, com o apoio de todo povo brasileiro.


É deputado pelo PCdoB-SP, foi presidente da Câmara, ministro do governo Lula, presidiu e integra a Comissão de Relações Exteriores.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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