26 junho 2020

Notas Sobre a C&T no Brasil Depois da Pandemia

Ciência e Tecnologia (C&T) têm trazido muitos benefícios aos brasileiros. A produção de energia e de alimentos, a prevenção e o tratamento de doenças, o desenvolvimento da indústria e dos serviços, são algumas atividades que melhoram a vida dos brasileiros e que só acontecem devido aos resultados obtidos por pesquisadores no Brasil, usando conhecimentos descobertos aqui e em outros países. Mesmo que muitas vezes se fale de crises e dificuldades para se fazer C&T no Brasil, os resultados são grandes.
A ciência e a tecnologia que beneficiam o Brasil são desenvolvidas em universidades, institutos de pesquisa, e em empresas, nacionais e estrangeiras, mesmo que com frequência o debate sobre C&T enfatize repetidamente só a ação governamental, limitando a compreensão da complexidade e do funcionamento do sistema.
Um sistema nacional de C&T depende de pesquisadores trabalhando em universidades, em institutos públicos e particulares e em empresas. Nos países bem-sucedidos em criar desenvolvimento e bem-estar com C&T, os pesquisadores desses setores interagem naturalmente entre si. Estas interações podem ser formais – projetos colaborativos e visitas – ou informais – pois uns leem os trabalhos dos outros e frequentemente se comunicam para resolver dúvidas ou trocar ideias. Segundo os dados mais recentes, em 2014 havia 317 mil pesquisadores ativos no Brasil. Destes, 265 mil eram professores em universidades e instituições de ensino superior públicas, 59 mil trabalhavam em laboratórios e centros de pesquisa de empresas, 6 mil em laboratórios governamentais e 1,4 mil em entidades de ensino superior do setor privado sem fins lucrativos. Em 2017, o governo e as empresas privadas investiram em pesquisa e desenvolvimento (P&D) R$ 81 bilhões (1,26% do PIB do ano). Desse valor, R$ 41 bilhões vieram do governo, R$ 39 bilhões de empresas e R$ 2,3 bilhões foram aplicados por instituições particulares de ensino superior.
Assim, mesmo que seja preciso continuamente desenvolver o sistema brasileiro de C&T em quantidade e qualidade, já há no país um esforço substancial para se criar ciência e tecnologia, que tem trazido inúmeros resultados positivos. A pergunta preliminar, que antecede a crise da pandemia e que permanecerá com mais ênfase quando a crise terminar, é: seria possível obter ainda mais resultados desse sistema?
No mundo e no Brasil, a sociedade e as lideranças políticas responsáveis têm, até agora, buscado em resultados com base científica a orientação para as ações e direções a tomar. A contribuição de pesquisadores brasileiros na compreensão da pandemia e nas sugestões e recomendações ao poder público para enfrentá-la tem sido notável.
Pesquisadores do Brasil determinaram, em apenas 48 horas depois de identificado o primeiro caso local, a estrutura do RNA do vírus, permitindo conhecer características da infecção e o caminho do contágio. Profissionais e pesquisadores do Sistema Único de Saúde (SUS) trabalharam, muitas vezes em colaboração com colegas estrangeiros, para aperfeiçoar modelos epidemiológicos para orientar providências sanitárias. Empresas com capacidade tecnológica desenvolvida localmente se engajaram na produção de respiradores e tomógrafos. Pesquisadores de universidades e institutos criaram protótipos de respiradores emergenciais de baixo custo. Universidades e institutos, como Butantan e Fiocruz, desenvolveram capacidade própria para desenvolver e coordenar testes diagnósticos. Não menos importante tem sido o papel de cientistas sociais e cientistas políticos, conhecedores dos desafios engendrados pela crônica desigualdade social existente no país. Tudo isso foi feito vencendo dificuldades, mas o que importa é que foi e está sendo feito.
Somente os países que possuem um sistema de Ciência e Tecnologia estruturado e um quadro de pesquisadores capaz de criar, incorporar e traduzir o conhecimento global são capazes de dialogar, interagir e colaborar com o melhor da ciência mundial em benefício de suas sociedades. Devido a investimentos em C&T iniciados há muito tempo, fundamentados na formação de pessoal técnico e pesquisadores bem qualificados, o Brasil tem duas instituições essenciais para acompanhar estes desenvolvimentos: a Fiocruz e o Instituto Butantan. O Butantan, por exemplo, tem capacidade para produzir anualmente 90 milhões de doses de vacina contra gripe, com conhecimento para a produção de vacinas contra vírus que afetam o sistema respiratório. As demandas surgidas da pandemia – vacina, fármacos antivirais, testes diagnósticos, equipamentos hospitalares, criação de estratégias e políticas públicas protetoras de vidas, otimização do sistema hospitalar – praticamente obrigam os pesquisadores experientes e as lideranças em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) no Brasil a considerarem a necessidade de que, aprendendo com os dramáticos efeitos da pandemia, reflita-se sobre como poderá ser o sistema nacional de C&T na fase posterior.
Um sistema de C&T integrado requer múltiplas entidades públicas e privadas, cada uma com seu foco e especialização, conectadas entre si e com as melhores do mundo. O sistema precisa ser capaz de criar a ciência fundamental e aplicada, a tecnologia e a inovação necessárias ao desenvolvimento local. Requer também a formação de pessoal com qualificação mundialmente competitiva. Tal sistema de C&T precisa funcionar segundo prioridades definidas de forma democrática, considerando o necessário equilíbrio entre as atividades de descoberta e construção de um estoque de conhecimento para ser usado no futuro (pesquisa fundamental) e atividades aplicadas à resolução de problemas emergentes e urgentes, com tecnologia e inovação muitas vezes baseadas em conhecimento criado anteriormente (pesquisa aplicada).
Quando se trata de problemas reais e complexos, os desafios a serem enfrentados, em geral, não podem ser superados somente com os conhecimentos de cada disciplina científica isoladamente, exigindo multidisciplinaridade. Ciências da natureza, ciências sociais e humanidades são simultaneamente necessárias para se obter resultados integrados e orientar as iniciativas políticas baseadas em evidências, enfrentando problemas como a fome, as desigualdades sociais, as mudanças climáticas, a conservação do meio ambiente, o desenvolvimento de um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo ou a presente pandemia.
No cenário pós-pandemia, o Brasil pode ter, num bom sistema de C&T, integrado e democrático, um esteio para continuar criando benefícios à sociedade e ser, ao mesmo tempo, um ator globalmente relevante. É preciso aprender com o que foi feito até aqui para consolidar um sistema articulado e eficaz de C&T e inovação, composto por entidades do setor público, por empresas fortes em P&D e por entidades particulares. Na recessão global que se prenuncia, países que focalizarem esforços no desenvolvimento de conhecimento, tecnologia e inovação terão melhores oportunidades para minimizar os impactos negativos sobre suas sociedades.

Desafios e oportunidades evidenciados pela pandemia
A pandemia da Covid-19 trouxe efeitos contraditórios no relacionamento entre a sociedade e a ciência e a tecnologia. A importância da ciência se tornou evidente para amplos setores e a colaboração entre pesquisadores de todo o mundo está sendo valorizada, mesmo com severas restrições à mobilidade internacional. A troca de informações tem sido facilitada por pré-prints e meios digitais. Por outro lado, em alguns países, e no Brasil, acontecem movimentos isolacionistas ou ligados a ideias negacionistas sobre a ciência e seus consensos.
A tendência de valorização da ciência é forte no Brasil. Cabe cautela especial sobre como a sociedade pode reagir em situações nas quais a ciência não traga, em tempo desejado ou em tempo algum, as soluções esperadas com previsível ansiedade. Por buscar compreender o desconhecido, a ciência e os cientistas não podem garantir sucesso sempre, muito menos na primeira tentativa. O que a sociedade aprendeu ao longo de alguns séculos de convivência com a ciência e a tecnologia é que, em geral, avança-se mais e sofre-se menos quando se presta atenção à ciência. Usamos aqui a expressão “prestar atenção” para evitar o vezo autoritário de impor à política obediência cega às recomendações da ciência. A ciência oferece alternativas baseadas em evidências, e a responsabilidade pelas decisões políticas deve ser assumida por quem tem o mandato democrático para tomá-las.
A urgência imposta pela disseminação do Sars-CoV-2 afastou a ciência da rotina de trabalho tradicional. Resultados passaram a ser comentados nas redes sociais antes mesmo da avaliação formal pelos pares, que seria o procedimento tradicional da ciência. O próprio sistema de avaliação foi pressionado, pela urgência e por uma elevada taxa de submissões à publicação, e expôs suas vulnerabilidades aos olhos de todos.
Os consensos científicos são estabelecidos arduamente, algo familiar ao pesquisador experimentado. Isto está visível no processo atual, pois a atenção dos meios de comunicação ao debate científico mostra à sociedade que a ciência não é feita de certezas, que parte essencial do método científico embute um sistema para correção de erros. Essas revelações serão instrutivas para alguns, mas os negacionistas da ciência proclamarão ter encontrado provas incontestes da inutilidade dos resultados científicos.
Adicionalmente, a escassez de recursos devido à recessão econômica afeta as fontes públicas de recursos para apoio à pesquisa e afeta também a capacidade de pesquisa em empresas. Além disso, interação e colaboração internacional em pesquisa enfrentam sérios obstáculos à mobilidade.

Três fatores determinantes: mais confiança na ciência, expectativa por aplicações a curto prazo, e a crise de financiamento
O debate sobre políticas para C&T e inovação no Brasil, desde já, é afetado por três fatores fundamentais, com intensidade bem superior à que costumavam ter:
1) Aumento do interesse por – e do reconhecimento sobre a relevância da – C&T pela sociedade.
2) Aumento da expectativa de que se dirija a pesquisa a tratar de problemas urgentes e se ofereça benefícios em prazos mais curtos do que o de costume.
3) Restrição do financiamento público à C&T, inclusive do financiamento a universidades de pesquisa, ao lado de um potencial para o crescimento de P&D no setor empresarial.
Manter diretrizes e ações equilibradas será um desafio fundamental e gigantesco.
Outro desafio será estruturar o sistema de pesquisa para responder, concretamente, a questões como as que a emergiram com a Covid-19. Não se pode esquecer que a resposta da comunidade científica à pandemia foi possível graças ao investimento anterior em pesquisa fundamental e no treinamento de pessoal.
Parece-nos razoável supor que a sociedade demandará mais resultados para encarar dificuldades emergenciais. O desafio será associar pesquisa fundamental à pesquisa aplicada, para que ambas possam atender à demanda social. Redirecionar bruscamente os recursos de projetos fundamentais para projetos aplicados seria um caminho simplista e equivocado, que poderá levar à escassez de ideias novas mais adiante, quando os desafios mudarem, dando lugar a emergências imprevistas – como quase sempre são. Tal redirecionamento resultaria em conflitos e desestruturação de um complexo de pesquisa que se beneficia do conhecimento fundamental. Como se tem visto, a relevante contribuição da ciência brasileira à mitigação da pandemia se deve à existência de pesquisadores treinados em ciência fundamental relacionada aos temas relevantes. Muitos dos desafios sociais atuais, bem como problemas futuros ainda desconhecidos, vão exigir que, ao lado de projetos aplicados, o investimento em ciência fundamental mundialmente competitiva seja mantido. O desafio é achar como.
Nos últimos 200 anos, vários exemplos demonstraram que a aplicação criteriosa dos métodos da ciência a problema práticos pode conduzir a resultados fundamentais proeminentes. Para se tratar tais problemas os cientistas precisam trabalhar com médicos, engenheiros ou outros pesquisadores com vocação tecnológica. A busca pela solução minimiza barreiras disciplinares. Por exemplo, os revezes na luta contra a disseminação da Covid-19 nas regiões metropolitanas mais pobres mostraram que a ausência de planejamento com a participação de ideias e conhecimentos vindos das humanidades e ciências sociais empobrece e desarticula o trabalho.
A multidisciplinaridade acontece de forma muito mais efetiva quando há um problema específico a ser resolvido, ou minimizado. Com lideranças adequadas e condições favoráveis, grupos de pesquisa poderão colaborar para estudar problemas que afetam a sociedade. O bom resultado exigirá conhecimento fundamental que sustente avanços rumo à solução aplicada.
O uso mais frequente da ideia de “pesquisa orientada a problemas” pode, de forma natural, reduzir três antíteses artificialmente colocadas no planejamento sobre C&T no Brasil: uma é a oposição estéril entre pesquisa fundamental e pesquisa aplicada; a outra é a contraposição equivocada entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanidades; e a terceira é o confronto artificial entre mono e multidisciplinaridade. Além disso, a busca dos problemas a serem focalizados criará um interessante e, se bem conduzido, educativo debate na sociedade sobre como C&T podem contribuir para criar mais bem-estar para os brasileiros.
Muito mais difícil será fazer frente à restrição no financiamento à pesquisa, devido à queda de receita nas esferas de governos federal e estaduais. Serão necessárias ações criativas para mitigar esse problema.
No setor público, caso não se possa evitar a restrição no financiamento geral, serão necessárias estratégias que protejam o investimento em C&T, aumentando a qualificação do sistema e, ao mesmo tempo, diminuindo temporariamente a sua velocidade de expansão. Não cabe dúvida que o sistema precisa crescer, mas tal crescimento, em razão da crise, pode precisar ser mais lento por alguns anos.

Pesquisa em C&T na maioria dos países é financiada pelo Estado
No debate sobre as ações governamentais, será preciso deixar de lado uma ideia mitológica que frequenta o debate sobre financiamento à C&T no Brasil, qual seja, a de que o financiamento pelo setor privado pode substituir o do setor público. Sempre é bom lembrar que a pesquisa em universidades e institutos de pesquisa em praticamente todos os países que têm um sólido sistema de C&T é financiada pelo Estado, recebendo no máximo 10% de contribuição do setor empresarial. Nos EUA, por exemplo, o percentual de financiamento da pesquisa em universidades e institutos públicos, feito com recursos de empresas, nunca foi superior a 8%.
Por outro lado, um dos objetivos da política para C&T no Brasil tem sido, há muitos anos, o de instigar as empresas a aplicarem mais de seus recursos em seus próprios centros (ou departamentos ou grupos) de P&D. Em 2017, o dispêndio de empresas em P&D foi de quase R$ 40 bilhões, ou 0,6% do PIB. Nos países que criam mais riqueza com tecnologia o percentual do PIB aplicado por empresas em P&D está, em geral, bem acima de 1% do PIB: Coreia do Sul, 3,62%, Japão, 2,52%, Alemanha, 2,09%, EUA, 2,04%, China, 1,65%, França, 1,42%, Reino Unido, 1,12% (valores de 2017, Main Science and Technology Indicators, OECD). Seria o momento para uma iniciativa agressiva criando as condições para que, em alguns anos, empresas nacionais e estrangeiras no Brasil tripliquem o dispêndio interno em P&D.
Os desafios para a C&T no Brasil pós-pandemia não serão poucos. O financiamento público à pesquisa precisará ser gradualmente retomado para que os enormes ganhos adquiridos ao longo das últimas décadas não sejam perdidos. Será essencial também criar as condições macroeconômicas para que as empresas no país possam aumentar seus esforços em P&D e participarem de cadeias globais. O futuro da C&T do Brasil deverá estar mais conectado à sociedade, contribuindo para o desenvolvimento econômico e social, a redução da desigualdade e a maior inserção do Brasil no mundo.

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ - é engenheiro de Eletrônica (ITA) e doutor em Física (Unicamp). É professor titular no Instituto de Física da Unicamp. HERNAN CHAIMOVICH - é bioquímico pela Universidade do Chile. Professor emérito no Instituto de Química da USP. LUIZ NUNES DE OLIVEIRA - é professor titular na Universidade de São Paulo. Atua em Física da Matéria Condensada. RENATO H. L. PEDROSA - é engenheiro de Eletrônica (ITA) e doutor em Matemática (UC Berkeley). É professor no Instituto de Geociências da Unicamp. ROBERTO GOMES DE SOUZA BERLINCK - graduou-se em Química pela Unicamp. É membro da Coordenação do Programa Biota-Fapesp.

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