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Interesse Nacional
10 outubro 2018

Novo Ciclo Eleitoral?

Em 2018, o Brasil realiza o oitavo pleito presidencial sucessivo desde o retorno das eleições diretas (1989), sem representar, necessariamente, a reafirmação das bases democráticas inscritas pela Constituição Federal de três décadas atrás. Isso porque na eleição presidencial passada (2014), quando parcela dos partidos derrotados não aceitou, pela primeira vez, o resultado final do pleito, as normas eleitorais foram rompidas com a instalação de processo golpista jurídico-parlamentar responsável pela retirada da presidente democraticamente eleita e por uma sucessão de arbitrariedades constitucionais.
Em função disso, o país voltou a conviver, mais significativamente desde 2016, com inegável incerteza a respeito da continuidade democrática, contando, inclusive, com dúvidas crescentes a respeito da realização de eleição presidencial em 2018, bem como do seu possível desfecho final. Perspectiva preocupante em se tratando de uma nação sem tradição democrática, ademais por se constatar que o ciclo recente de eleições presidenciais havia se constituído no mais longevo da experiência histórica de contida via não autoritária do país.
O que não seria pouco, considerando ainda a fase anterior de 29 anos em que perdurou a ausência da soberania popular na escolha do primeiro posto do poder executivo federal, por força restritiva da Ditadura Militar (1964-1985). Durante a República Velha (1889-1930), os 12 pleitos presidenciais realizados não poderiam ser efetivamente identificados como democráticos, uma vez que as fraudes eram inequívocas e comuns, acompanhadas da inexistência de justiça eleitoral, do voto secreto e da universalidade na participação.
No período de democracia prevalecente no segundo pós-guerra (1945-1964), somente quatro eleições presidenciais foram realizadas. Além disso, os pleitos eleitorais aconteceram permeados por ampla instabilidade política e ameaças antidemocráticas generalizadas.
Diante disso, o presente artigo desenvolve análise que especula a respeito da possibilidade de abertura de um novo ciclo eleitoral a partir da hipótese do comprometimento democrático imposto às bases políticas geradoras do período político da Nova República (1985-2016). Também se considera que, diante da desagregação da ordem democrática, assaltada que foi desde 2016 pela imposição de política autoritária, econômica neoliberal e conservadora nos costumes, coube ao Partido dos Trabalhadores impulsionar seu reposicionamento estratégico de maior importância como  maior agremiação do espectro de esquerda nacional.

Esgotamento do ciclo político da Nova República
O ciclo político denominado Nova República (1985-2016) foi responsável pela efetivação de sete eleições presidenciais que tinham por pressupostos a liberdade de competição interpartidária e aceitação dos seus resultados finais pelos partidos. Em suas três décadas de existência, esse ciclo eleitoral compreendeu três fases principais caracterizadas por peculiaridades presentes desde o seu início (1985 – 1988), o desenvolvimento (1989 – 2014) e a finalização (2015 – 2016).
Pela autocracia da Ditadura Militar, por exemplo, o retorno ao regime democrático foi entendido pela literatura especializada como uma “transição política transada” [1], pois longamente tramada pelo alto, com a exclusão da soberania popular. Desde o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), a abertura democrática começou a ser ensaiada pelos parâmetros da lentidão, gradualidade e segurança por parte dos militares.
Em síntese, contabiliza-se mais uma década de preparação para a transição do período de abertura democrática concedida pela Ditadura Militar.
Com isso, por exemplo, a determinação dos termos de anistia política (1979) não foi geral e irrestrita, pois jamais abriu possibilidade de questionamentos aos anos de autoritarismo (assassinatos, torturas, corrupções). Ao mesmo tempo, conferiu passagem do sistema bipartidário para o pluripartidário, repleto de casuísmos autoritários, como o retorno de eleições para governador de Estado estabelecido em 1982 e de presidente da República, somente em 1989 (29 anos após a última, em 1960).
De toda forma, o fato central para o melhor entendimento do início da Nova República e que conformou todo o do ciclo eleitoral terminou sendo a derrota da Emenda Constitucional Dante de Oliveira que estabelecia as eleições gerais para o exercício da soberania popular em 1985. Mesmo com intensa e significativa campanha de mobilização nacional, o regime autoritário somente aceitou encerrar o seu término após firmar os seus interesses no colégio eleitoral que havia sido palco das anteriores sucessões dos generais presidentes.
Nesta primeira fase do ciclo político, a Nova República teve o seu início constituído por via indireta e a fatalidade da morte de Tancredo Neves (1910-1985) anterior à posse como presidente da República. Assim, o primeiro mandatário civil que abriu o ciclo da Nova República, após 21 anos de presidentes militares, foi José Sarney, que havia sido filiado e foi presidente da Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação da Ditadura Militar por mais de duas décadas.
De características conservadoras, o primeiro governo da Nova República, que durou cinco anos (1985-1990), esteve marcado pela determinação das bases pelas quais se efetivou o ciclo de sete eleições presidenciais seguidas a partir de 1989. Dessa forma, o início da Nova República, que contou com a realização de nova Constituição Federal, em 1988, estabeleceu a competição eleitoral demarcada por crescente fragmentação e enfraquecimento partidário, cada vez mais dependente da existência de um centro político de natureza conservadora, incapaz de permitir, pelo presidencialismo de coalizão, a realização de reformas profundas na sociedade[2].
Uma vez constituída a fase inicial da Nova República, percebe-se que a segunda fase, caracterizada pelo desenvolvimento do ciclo eleitoral assentado na soberania popular, transcorreu entre os pleitos presidenciais de 1989 a 2014. Durante esse período, cujo crescimento econômico mal superou os 2% como média anual, indicando desempenho de semiestagnação da renda per capita, o país registrou o maior avanço na implantação das bases do Estado de bem-estar social, com a passagem do gasto social, equivalente a 14% do Produto Interno Bruto (PIB), em 1985, para 24%, em 2014[3].
O aumento do gasto social terminou sendo financiado pela elevação da Carga Tributária Bruta (CTB), que representa a somatória de impostos, taxas e contribuições, uma vez que passou de 24% do PIB, em 1985, para 32%, em 2014. A ampliação da CTB no período ocorreu de forma desigual no interior dos distintos segmentos da sociedade, em prejuízo dos mais pobres.
Enquanto lucros e dividendos foram isentos da tributação desde 1996, os rendimentos do trabalho, especialmente aqueles situados na base da pirâmide social, receberam maior sobrecarga de impostos, taxas e contribuições. Além disso, setores econômicos terminaram sendo beneficiados por renúncias, isenções, subsídios e desonerações fiscais, o que contribuiu para a maior desigualdade e regressividade do sistema tributário brasileiro.
Além disso, nos 25 anos de duração da fase de desenvolvimento do ciclo político da Nova República, os primeiros 12 anos serviram de experimentação para as políticas de corte neoliberal e os 12 anos seguintes foram voltados às políticas públicas de natureza desenvolvimentista. Nos anos neoliberais, por exemplo, a CTB em relação ao PIB aumentou 34,9% (de 27,3%, em 1989, para 32%, em 2002), enquanto o gasto social cresceu de 16% do PIB para 19% (elevação de 18,7%) e a dívida do conjunto do setor público saltou de 63% para 76% do PIB no mesmo período de tempo (elevação de 20,6%).

Gasto social
Nos anos desenvolvimentistas, a CTB decresceu 0,4% entre 2002 (32% do PIB) e 2014 (31,9% do PIB), ao passo que o gasto social subiu 26,3% (de 19% do PIB, em 2002, para 24% do PIB, em 2014). Para o mesmo período de tempo, a dívida agregada do setor público decresceu de 76% para 63% do PIB (redução acumulada de 17,1%).
Outra diferença importante durante o desenvolvimento do ciclo político da Nova República (1989 – 2014) pode ser percebida pelos presidentes eleitos nos anos de neoliberalismo (Collor, 1990-1992, e FHC, 1995-2003) pela inserção passiva e subordinada na globalização desde 1990 e pela estabilidade monetária desde 1994 (governo Itamar Franco, 1992 – 1994) ancorada na elevada taxa de juros e no câmbio valorizado. No caso dos governos desenvolvimentistas (Lula, 2002 e 2006, e Dilma, 2010), o destaque foi a ênfase na defesa da soberania nacional e da expansão acelerada do mercado interno com inclusão social.
A finalização do ciclo político da Nova República entre os anos de 2015 e 2016 decorreu do fato de o resultado da sétima eleição presidencial (2014) deixar de ser aceito por parte importante dos partidos derrotados. Também o esfacelamento do centro político conservador em linha com a fragmentação dos próprios partidos mostrou-se decisivo para que as normas eleitorais fossem rompidas.
A instalação de processo golpista jurídico-parlamentar se mostrou suficiente para a arbitrária retirada da presidente democraticamente eleita, compreendida por uma sucessão de arbitrariedades constitucionais. Por conta disso, o país voltou a conviver, sobretudo a partir de 2016, com inegável incerteza a respeito da continuidade democrática, contando, inclusive, com dúvidas crescentes a respeito da realização de eleição presidencial em 2018, bem como do seu possível desfecho final.
O encerramento do ciclo eleitoral da Nova República foi demarcado nos anos de 2015 e 2016 por significativa inflexão na trajetória dos governos desenvolvimentistas, sem agravamento, contudo, das questões econômica, social e de soberania nacional. Mas, a prevalência do impasse de natureza política permitiu a reunião de forças parlamentares e jurídicas suficientes para interromper o pacto de poder construído em torno da Constituição Federal de 1988.
O esvaziamento do centro político foi acompanhado pela polarização entre, de um lado, o exercício da presidência da República e, de outro, a ação de oposição por parte da maioria dos parlamentares, com apoio dos meios de comunicação e do poder judiciário. Em função disso, o avanço da paralisia governamental terminou sendo expresso em relação ao PIB por leve elevação da Carga Tributária Bruta de 1,4%, entre 2014 e 2016, pela estagnação do gasto social e pelo aumento do endividamento do setor público em 15,9%.

Dúvidas sobre novo ciclo eleitoral
A partir de junho de 2016, com a ascensão de um governo de natureza golpista comandado por Michel Temer, até então vice-presidente de Dilma Rousseff, houve significativa recomposição governamental em sintonia com a maioria do parlamento e apoio midiático e do judiciário. Para tanto, o receituário político, econômico e social de corte neoliberal foi recuperado e protagonizado por todos os partidos que haviam sido derrotados nas quatro últimas eleições presidenciais (2002, 2006, 2010 e 2014).
Desde então, o Brasil encontra-se diante de um cenário político de horizontes em aberto. O caráter golpista ao regime democrático concebido com as normas do ciclo eleitoral da Nova República pode ter continuidade, assim como pode ser interrompido, a depender do desfecho das eleições de 2018.
De todo modo, parece muito mais prevalecerem dúvidas a fundamentar a existência de um novo ciclo eleitoral. Desde 2016, com o golpe jurídico-parlamentar, sabe-se que as bases democráticas estabelecidas pelo acordo político gerador da Nova República têm sido dissipadas.

Reposicionamento do Partido dos Trabalhadores
Desde a sua constituição, ainda no início da década de 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT) aponta para a identificação de pelo menos três trajetórias importantes. A primeira transcorreu entre os anos de 1980 e 1994, enquanto a segunda prevaleceu no período de 1995 e 2015, ano em que o PT foi forçado a ingressar em sua terceira trajetória de realinhamento estratégico.
Nos primeiros 14 anos de sua existência, o PT se protagonizou como partido fora da ordem política autoritária, o que o levou a não participar, por exemplo, da sucessão presidencial de 1985, transcorrida pela via indireta no colégio seletivo de eleitores da Ditadura Militar. Por ter sido um dos principais motivadores do movimento pelas eleições diretas em 1984, o PT boicotou a participação no Colégio Eleitoral, entendendo que se tratava de eleição ilegítima, mesmo tendo perdido quase 40% da bancada federal que apoiou a eleição indireta de Tancredo/Sarney.
Da mesma forma em relação à Constituição Federal de 1988, a posição do PT diferenciou-se dos demais partidos. Em defesa de uma Constituição mais radical e em crítica à força da direita representada pelo centro político conservador, o PT votou contra o texto final, embora os parlamentares do partido tenham assinado a Constituição, tendo assumido, então, o novo ordenamento institucional do país.
Por fim, destaca-se a distinta posição assumida pelo PT em virtude do chamamento do governo Itamar Franco (1992 – 1995) em nome da unidade nacional, uma vez superado o processo de impedimento do presidente Collor (1990 – 1992). Apesar de ter sido um dos principais protagonistas da campanha contra o governo Color, o PT decidiu não participar do governo Itamar, tendo, inclusive, suspendido os direitos políticos de Luísa Erundina (prefeita de São Paulo entre 1989-1992), por ter assumido o posto de ministra-chefe da Secretaria da Administração Federal entre 1993 – 1994.
Nessa primeira fase, a trajetória do PT se assemelhava à do PCI (Partido Comunista Italiano), que indicava avançar nos resultados eleitorais, como de saltar de 1,7% do total de parlamentares, em 1982, para 7%, em 1994, porém sem conseguir alcançar a maioria necessária dos eleitores para se tornar governo. Detinha inegável oposição à ordem política estabelecida, exercendo papel fundamental no aprofundamento do regime democrático, com uma diversidade de interpenetração no movimento social e organização política nacional[4].
Mas, a partir de 1995, com a realização do 10º Encontro Nacional, o PT passou a se reposicionar para, ao se inserir na ordem política prevalecente, buscar modificá-la a partir do seu interior. Com isso, o PT, que até então contava com cerca de 1/10 de preferência partidária pelo eleitorado nacional, passou a crescer continuamente até alcançar ¼ do total, em 2010, e a quase 1/5 do parlamento nacional na legislatura de 2011 – 2014.
Ao mesmo tempo, o crescimento nas administrações de prefeituras e de governos estaduais permitiu experimentar o ineditismo de políticas públicas, bem como reforçar a participação popular no interior das esferas do poder executivo nas diversas unidades subnacionais. Também a formação de quadros administrativos e de gestores de políticas públicas possibilitou ampliar a presença programática no modo petista de governar e legislar no Brasil.
Para isso, contudo, uma espécie de máquina eleitoral foi sendo aperfeiçoada, com elite partidária dirigente constituída. Com a expansão legal das formas de financiamento empresarial das campanhas eleitorais, o PT conseguiu obter resultados inegáveis, ainda que isso significasse o distanciamento do tradicional modo de organização partidária.
Núcleos de base e envolvimento integrado na diversidade dos movimentos sociais foram perdendo protagonismo na influência organizativa, com sinais não desprezíveis de burocratização do formato eleitoral. Dessa forma, o PT se tornou a maior organização partidária, com avanços na filiação e simpatizantes, acompanhados por resultados eleitorais significativos e enorme efetividade e êxito governamental.
A razão do sucesso trouxe consigo, em simultâneo à convicção de partidos de oposição que a máquina eleitoral petista deveria ser barrada, a convergência de interesses dos poderosos em torno da interrupção arbitrária do segundo governo Dilma. A não aceitação do resultado eleitoral de 2014 abriu caminho para o abandono das bases democráticas organizadoras da ordem institucional estabelecida pela Constituição Federal de 1988.
Da mesma forma, parte de segmentos sociais e políticos em oposição ao sucesso do PT foram se distanciando das eleições presidenciais para assumir maior protagonismo concentrado nas eleições legislativas. Um exemplo disso foi o segmento do agronegócio, que desde as eleições de 1989 não mais apresentou candidatura presidencial, tendo focado na eleição legislativa e permitido constituir a maior bancada no Congresso Nacional.
Aliás, essa estratégia política terminou sendo seguida por outros segmentos econômicos e sociais. Tanto assim que grupos de parlamentares se organizam não mais por partidos, mas por bancadas de interesses específicos, como da bala, do boi, da bola, entre outras.
Mesmo sem alcançar o sucesso na sucessão presidencial, a dominação do Congresso Nacional se mostrou importante para enquadrar governos petistas, cada vez mais dependentes da agregação de siglas partidárias, crescentemente fragmentadas. Com isso, o golpe jurídico-parlamentar de 2016 tornou-se o mais efetivo bloqueio possível à trajetória exitosa de modificação interna da ordem política prevalente pelo PT.

Não aceitação da prevalência do PT
Por fim, o curso da terceira trajetória instaurada a partir do golpe jurídico-parlamentar de 2016, quando se torna evidente que a própria ordem política existente não mais aceita a prevalência própria do PT. Isso, de alguma forma, remonta oportunidades históricas anteriores em que projetos de inclusão tinham sido experimentados e sofrido forte imposição da ordem previamente estabelecida.
Inicialmente, durante o projeto de industrialização nacional, quando os empregados passaram a deter o contrato de trabalho formal como modo de inserção pela via da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em pleno autoritarismo do Estado Novo (1937-1945), a CLT conseguiu ser implementada, em 1943, somente para os empregados assalariados urbanos, o que excluía, contudo, quase 90% dos trabalhadores que se encontravam no meio rural por força da forte oposição do velho agrarismo.
Após uma década, quando a população avançou rápida e consideravelmente para as cidades em concomitância com a expansão do emprego assalariado urbano, a reação liberal-conservadora ao governo democraticamente eleito de Getúlio Vargas (1951-1954) se fez predominante. Sem o seu suicídio, o governo Vargas seria impedido em 1954, possivelmente deposto e aprisionado pela chamada República do Galeão (espécie de operação Lava Jato da época).
Na sequência, registra-se a ascensão do movimento dos trabalhadores rurais, reivindicando reformas, como a fundiária e a inclusão no sistema de proteção social e trabalhista. Desde o final da década de 1950, por exemplo, o governo de João Goulart (1961-1964) conseguiu aprovar, em 1963, o estatuto do trabalhador rural, que iniciou a inclusão dos ocupados no meio rural em praticamente os mesmos direitos sociais e trabalhistas vigentes entre os empregados urbanos com contrato regular e formal.
Mas, a generalização da CLT para o meio rural terminou desencadeando violenta reação por parte do patronato, capaz de aglutinar insatisfações pontuais no movimento que desencadeou o golpe civil-militar de 1964. O abandono do regime democrático se instalou por 21 anos após a deposição de Jango, aprofundando a desigualdade no mesmo sentido que a exclusão apartava a maior parte dos ganhos do crescimento econômico.
Com a redemocratização nacional, no período mais recente, a Constituição Federal de 1988 teve destaque fundamental no estabelecimento, ainda que tardio, das bases do estado de bem-estar social no Brasil. Contra isso, por exemplo, o presidente Sarney (1985-1990) declarou, em 1987, que a nova Constituição tornaria o país ingovernável, vindo a inaugurar o movimento liberal-conservador no período democrático, responsável pela sustentação do receituário neoliberal ao longo da era dos Fernandos (Collor, 1990-92, e Cardoso, 1995-2002).

Insegurança e indefinição prevalecem
Somente com a vitória eleitoral de 2002, a inclusão social se tornou a marca dos governos liderados pelo PT ao longo do período de 2003 a 2016. O enfrentamento da desigualdade, com a busca da justiça através da generalização de oportunidades em diversas áreas das políticas públicas (educação, saúde, trabalho, renda e outras) concedeu êxito inquestionável à combinação do aprofundamento do regime democrático com o crescimento econômico, pleno emprego e distribuição de renda.
Tudo isso, entretanto, sofreu enorme retrocesso após o golpe de Estado que possibilitou a ascensão do governo Temer, seguida da deposição da presidente Dilma (2011-2016), da perseguição ao Partido dos Trabalhadores e da prisão política de Lula, candidato a presidente nas eleições de 2018.
O golpe implantado em 2016 impôs novos elementos desestabilizadores à sustentação democrática da nação. No período prévio das eleições gerais, a insegurança e a indefinição prevalecem, esvaziando os poderes executivo e legislativo e enaltecendo o poder judiciário, que segue destituído de transparência e algum lastro de registro da presença de soberania popular.
Diante dessa situação inimaginável até então, considera-se cada vez mais a emergência de outra fase na política nacional impulsionada pela arbitrária ascensão do governo Temer. Este cenário se apresenta, inicialmente, pela composição classista patronal que se estabeleceu, com um repleto arsenal de políticas contra a classe dos que vivem do trabalho, políticas traduzidas por medidas de retirada dos direitos trabalhistas e da asfixia do próprio sindicalismo.
Simultaneamente, a exclusiva composição dos endinheirados no governo Temer apontou para a preferência de ações de políticas governamentais voltadas à exclusão de pobres e da classe média do orçamento público. A emenda constitucional 95, que estabeleceu o congelamento dos gastos públicos não financeiros ao pagamento dos juros da dívida pública, serve de exemplo como uma ação contrária à reorientação do gasto público em políticas de saúde, educação, habitação, transporte, entre outros.
Rapidamente, os efeitos do atual governo fizeram-se apresentar. Na saúde, houve a volta de doenças definidas até então como superadas (sarampo, poliomielite e outras) e a inflexão da mortalidade infantil. Na habitação, vimos a correlação positiva entre a elevação de imóveis fechados e o aumento de moradores de rua, assim como a queda significativa nas atividades da construção civil em todo o país.
No transporte, são frequentes os aumentos nos preços dos combustíveis; a elevação do gás de cozinha enfrentada com maior uso de carvão e lenha pela população de baixa renda. Na educação, o esvaziamento dos financiamentos ao ensino superior e a desistência na garantia do ensino médio para todos os jovens encontram-se diretamente relacionados com o crescimento do desemprego nos segmentos populacionais de maior escolaridade e com a queda na renda média familiar.
Não bastasse isso, constata-se que após mais de dois anos de políticas de austeridade fiscal conduzidas pelo receituário neoliberal de Temer, focado na entrega do patrimônio nacional, há maior desajuste fiscal, ausência do crescimento econômico e generalização do desemprego e da pobreza. Cerca de 40 milhões de brasileiros deixaram a esfera produtiva; quase 28 milhões de trabalhadores precarizados estão em busca permanente de emprego, eles foram rebaixados à condição de miséria e de vida informal e clandestina.

Segmentos exportador e rentista
Fundamentalmente, dois setores foram favorecidos pelo governo Temer. Pelo lado econômico, o segmento exportador, diante do rebaixamento do custo do trabalho e a da inviabilização do consumo no mercado interno. Também o setor rentista, protagonizado pelos bancos, cuja lucratividade assenta-se no aprisionamento do Estado aos interesses da gestão do endividamento público.
Pelo lado socioeconômico, a força do crime organizado e das igrejas serve como rede de atendimento para a nova safra de desvalidos produzida pelo processo acelerado de desmontagem das políticas públicas e de desconstituição do sistema produtivo nacional. O protagonismo anterior do setor de petróleo e gás, da infraestrutura composta pelas grandes empresas de engenharia nacional, da indústria naval e outras foi abandonado, aprofundando ainda mais a dependência do país de interesses internacionais.
O resultado da maior concentração de riqueza, renda e poder combina com a aceleração da desigualdade entre uma minoria privilegiada e a maioria de trabalhadores precarizados, bem como empobrecidos pela exclusão das políticas públicas. Sem o retorno à soberania popular, com a consequente e necessária reafirmação da soberania nacional, a desestabilização da democracia dificilmente será contida.

Considerações finais
Após dois anos de governo, Temer já antecipa a herança que ficará para a próxima administração federal a ser iniciada em janeiro de 2019: o empobrecimento da população e o enfraquecimento do setor produtivo nacional. A situação não se encontra ainda mais grave devido à política econômica anteriormente conduzida pelos governos liderados pelo PT, como uma espécie de “colchão de proteção” protagonizado pelas reservas externas em mais de US$ 370 bilhões.
Sem isso, o Brasil estaria caminhando pela “hora da morte”, conforme atualmente ocorre na economia da Argentina. Depois de mais de dois anos do governo Macri apostando no receituário neoliberal, com corte nos gastos públicos elevando a taxa de pobreza a mais de ¼ da população, houve a volta da fuga de dólares, da inflação e do desespero de o país ter de recorrer ao FMI. Com tudo isso, sobra mais desânimo para a sustentação do crescimento econômico.
O Brasil também enfrenta problemas equivalentes, cujos resultados não são tão dramáticos em função de o Banco Central dispor de amplas reservas internacionais para ofertar a moeda estadunidense em quantidade mais do que suficiente para evitar uma corrida intensa contra o real. Isso não alivia, contudo, a problemática do setor produtivo, após a divulgação pelo IBGE da Pesquisa Industrial Anual (PIA) referente ao ano de 2016.
Diante da investigação sobre 3,4 mil produtos das empresas industriais com 30 ou mais pessoas ocupadas, constata-se que o sistema produtivo brasileiro teve como principal receita de vendas o óleo diesel, os óleos brutos de petróleo, o álcool etílico desnaturado para fins carburantes e as carnes frescas ou refrigeradas. Na dimensão das grandes regiões, percebe-se que no Nordeste prevalece o óleo diesel como o principal produto industrial vendido, enquanto a região Norte destaca-se com as vendas da produção de minério de ferro.
Para as regiões Centro-Oeste e Sul, por exemplo, a carne foi a principal receita obtida entre as vendas de toda a produção industrial. As carnes de bovinos frescas ou refrigeradas destacaram-se na região Centro-Oeste, ao passo que no Sul, os mais importantes produtos industriais vendidos foram as carnes e miudezas de aves congeladas.
O empobrecimento das cadeias industriais é visível, resultado da aplicação contínua de uma política neoliberal que levou à recessão e segue se mostrando incapaz de fazer com que o Brasil volte a crescer de forma sustentada. Somente no ano de 2016, por exemplo, os principais produtos industriais que decaíram de importância foram a massa de concreto para a construção civil, os computadores pessoais portáteis, os caminhões e os medicamentos.
Em síntese, a indústria nacional se empobrece cada vez mais ao se especializar em produtos com menor valor agregado, fortemente associado a recursos naturais disponíveis e ao custo rebaixado da força de trabalho. Com isso, o mercado interno esvazia o seu potencial de expansão, sendo cada vez mais atendido pela importação de produtos com maior valor agregado e elevado conteúdo tecnológico.
O avanço do precoce processo de desindustrialização no Brasil resulta de erros de várias políticas governamentais, mas fundamentalmente do neoliberalismo, que parte do conceito de que o setor produtivo depende espontaneamente de sua própria capacidade de competir no mundo, onde as medidas de proteção nacional são cada vez maiores. O desastre nacional se acentua já antecipado como principal herança do governo Temer ao próximo governo a ser eleito em outubro vindouro.
Diante desse contexto de esgotamento do ciclo político da Nova República em meio ao processo golpista, coube ao PT o seu mais novo reposicionamento. A constituição do Plano de Governo Lula presidente mais audacioso para as eleições de 2018 impõe tanto a revisão das medidas institucionais tomadas pelo governo golpista como a instalação de uma constituinte soberana para a efetivação do conjunto de reformas, como a tributária, a político-eleitoral, a dos meios de comunicação, a do sistema bancário, entre outras.


Notas:
Para maiores detalhes, ver: DINIZ, E.; BOSCHI, R. & LESSA, R. (orgs.) Modernização e consolidação democrática no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989; COUTO, C. A agenda constituinte e a difícil governabilidade. Lua Nova, 39, 1997; SALLUM JR, B. Transição política e crise de Estado. Lua Nova, 32, 1994.
No documento Esperança em Mudança lançado em 1982, pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), um conjunto de reformas encontrava-se estabelecido como requisito necessário para a transição do regime autoritário para o democrático. Nenhuma das reformas terminou sendo realizada, em mais uma demonstração do reformismo postergável, sempre contido no interior do capitalismo brasileiro. Ver também em: ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalizão. Rio de Janeiro, Dados, 1988; SANTOS, F.; Almeida, A. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Editora Appris, 2011; LIMONGI, F. ; FIGUEIREDO, A. Bases Institucionais do Presidencialismo de Coalizão. Lua Nova, 1998.
Informações empíricas apresentadas tem como fontes primárias o IBGE, Bacen e SRF/MF.
Para mais considerações, ver: FERNANDES, F. A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez, 1990; FERNANDES, F. O PT em movimento. São Paulo: Cortez, 1991; FERNANDES, F. Lula e a transformação do Brasil contemporâneo. Práxis, nº 2, Belo Horizonte, setembro de 1994.
[1]
Para maiores detalhes, ver: DINIZ, E.; BOSCHI, R. & LESSA, R. (orgs.) Modernização e consolidação democrática no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989; COUTO, C. A agenda constituinte e a difícil governabilidade. Lua Nova, 39, 1997; SALLUM JR, B. Transição política e crise de Estado. Lua Nova, 32, 1994.
[2]
No documento Esperança em Mudança lançado em 1982, pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), um conjunto de reformas encontrava-se estabelecido como requisito necessário para a transição do regime autoritário para o democrático. Nenhuma das reformas terminou sendo realizada, em mais uma demonstração do reformismo postergável, sempre contido no interior do capitalismo brasileiro. Ver também em: ABRANCHES, S. Presidencialismo de Coalizão. Rio de Janeiro, Dados, 1988; SANTOS, F.; Almeida, A. Fundamentos Informacionais do Presidencialismo de Coalizão. Editora Appris, 2011; LIMONGI, F. ; FIGUEIREDO, A. Bases Institucionais do Presidencialismo de Coalizão. Lua Nova, 1998.
[3]
Informações empíricas apresentadas tem como fontes primárias o IBGE, Bacen e SRF/MF.
[4]
Para mais considerações, ver: FERNANDES, F. A transição prolongada: o período pós-constitucional. São Paulo: Cortez, 1990; FERNANDES, F. O PT em movimento. São Paulo: Cortez, 1991; FERNANDES, F. Lula e a transformação do Brasil contemporâneo. Práxis, nº 2, Belo Horizonte, setembro de 1994.

Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, ambos pertencentes à Universidade Estadual de Campinas. É presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-presidente do IPEA.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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