Novo Presidente Enfrentará Desordem Global
Não bastasse a crise doméstica que herdará, o novo ocupante do Palácio do Planalto enfrentará o mais imprevisível e turbulento cenário internacional já encontrado por um líder no Brasil – e no mundo – desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Os pilares da ordem mundial construída desde então estão sob ataque sem precedentes da própria nave-mãe desse sistema, os Estados Unidos, o que levanta dúvidas sobre o futuro da globalização e do multilateralismo. A chegada de Donald Trump ao comando da maior economia do mundo deu início a transformações geopolíticas tectônicas, cujo desfecho ainda é incerto. A mais consequente delas é a elevação da hostilidade em relação à China. Apesar de ter se expressado na forma de uma guerra comercial, a disputa vai muito além de desequilíbrios entre exportações e importações e envolve a guerra pela supremacia tecnológica e global no século 21.
Entre os grandes desafios de longo prazo do novo ocupante do Palácio do Planalto – e dos que vão sucedê-lo – estará navegar o oceano raivoso da rivalidade entre as duas maiores economias do mundo. Ambas ocupam os primeiros lugares no ranking dos maiores parceiros comerciais do Brasil. Tradicionais investidores externos no país, os americanos veem os chineses também avançar rapidamente nesse terreno, principalmente no setor de infraestrutura.
Sobre o pano de fundo dessa revolução global, o novo presidente brasileiro enfrentará no curto prazo um cenário econômico internacional hostil aos emergentes. Os últimos meses demostraram que países como o Brasil ainda estão sujeitos ao purgatório do qual pareciam ter se libertado. Brutais desvalorizações de moedas, pedidos de socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e contágio voltaram a frequentar o léxico dos emergentes, como ficou evidente nas crises da Turquia e da Argentina. Ambas provocaram efeitos colaterais negativos sobre economias que exibem fragilidades externas ou fiscais – o Brasil se encaixa na segunda categoria.
A possibilidade de aceleração do ritmo de alta da taxa de juros nos Estados Unidos agrega mais um fator de incerteza e volatilidade ao cenário que o novo governo terá de navegar, com o inevitável aumento da aversão ao risco entre investidores internacionais.
As guerras comerciais, o protecionismo e o ataque à Organização Mundial do Comércio patrocinados por Trump antecipam um recuo no processo de integração econômica internacional, no momento em que o Brasil está longe de ter colhido os frutos da participação em cadeias globais de produção e da utilização do comércio externo como ferramenta eficaz de crescimento doméstico.
A transformação na ordem mundial é marcada pelo fortalecimento de movimentos nacional-populistas em países desenvolvidos, nos quais parte da população expressa nas urnas sua rejeição aos efeitos negativos da globalização, ao fluxo de imigrantes e à percepção da perda de status entre a maioria branca. A reação vem principalmente de áreas que estão longe dos grandes centros urbanos que mais se beneficiaram da integração econômica global.
A expressão mais evidente desse fenômeno foi a vitória de Trump, em novembro de 2016, poucos meses depois de a maioria dos ingleses ter votado pelo Brexit.
O ressurgimento de partidos de extrema direita na Europa e a emergência de Trump nos EUA, acompanhada da competição entre Wahington e Pequim, levaram alguns intelectuais a traçarem paralelos entre o momento atual e o vivido pela Europa nos anos 1930, com o espetáculo tenebroso do extremismo e do fascismo que levaram à Segunda Guerra Mundial. O título do mais recente livro da ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright é “Fascism: a Warning”. Nele, ela alerta para o risco do retorno ao passado, depois de décadas de expansão de regimes democráticos no período pós-Guerra Fria. E uma das razões para a apreensão, segundo ela, é a eleição de Trump.
“Se nós pensamos no fascismo como uma ferida do passado que foi quase curada, colocar Trump na Casa Branca foi como rasgar o curativo e cutucar sua casca”, escreveu Albright, que é democrata e votou em Hillary Clinton. “Nós nunca tivemos um chefe do Executivo na era moderna cujas declarações e ações estivessem tão em desacordo com ideais democráticos.”[1]
O debate geopolítico em torno da China também encontra ecos no início do século 20. A grande dúvida é se a ascensão do país asiático repetirá a trajetória dos Estados Unidos ou da Alemanha. No primeiro caso, a potência hegemônica – o Império Britânico – acomodou a expansão da potência emergente. No segundo, a Alemanha optou pelo confronto para desafiar Londres, o que jogou o mundo em duas guerras de efeitos devastadores. Os dirigentes de Pequim não têm nenhum interesse em um conflito armado com os EUA, mas a hostilidade de Trump deve tornar a relação bilateral cada vez mais difícil.
Este artigo foi escrito antes que as urnas revelassem quem estaria no comando do Brasil a partir de 1º de janeiro de 2019. Mas, quem quer que ele ou ela seja, certas tendências do cenário internacional parecem inescapáveis. Algumas delas estão analisadas a seguir.
O curto prazo
O desafio mais imediato do novo presidente será administrar os efeitos de uma possível aceleração do aumento da taxa de juros nos EUA, em um contexto de aversão ao risco e crise em mercados emergentes. “Isso influencia o Brasil mais do que qualquer coisa que aconteça em outra parte do mundo”, diz a economista Monica De Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e senior fellow do Peterson Institute for International Economics.
Segundo ela, é possível que os EUA comecem a sofrer pressões inflacionárias em 2019, em consequência da injeção de estímulos em uma economia aquecida e da alta de preços decorrente da imposição de tarifas sobre produtos importados. “Nesse cenário, será necessário aumentar mais rapidamente as taxas de juros para conter a inflação, o que terá repercussão negativa sobre o crescimento.”
Dado o tamanho do PIB dos EUA, o impacto do movimento será global. Mas, o efeito tende a ser mais acentudado em países emergentes, que correm o risco de ver uma saída ainda mais rápida de capital de seus mercados, na direção do porto seguro americano. De Bolle acredita que a crise que atingiu a Argentina e a Turquia no ano passado não se dissipará tão cedo. “O quadro internacional que o Brasil enfrentará em 2019 é mais complicado do que o quadro que a Dilma (Rousseff) enfrentou em 2011 e 2014”, prevê a economista.
Presidente emérito do Interamerican Dialogue, Peter Hakim sustenta que a mais efetiva política externa do novo presidente será doméstica: colocar a casa em ordem e implementar uma agenda de reformas econômicas que dinamizem a economia. “O Brasil aumentou sua influência no mundo nos períodos em que estava crescendo”, observa. Hakim diz que o novo presidente terá de realizar progressos em outras áreas se quiser elevar o status internacional do Brasil: combate à corrupção, redução da desigualdade, aumento da segurança e melhoria do sistema educacional.
O desmonte da Pax Americana
A ordem internacional que manteve relativa estabilidade e previsibilidade global nas últimas sete décadas não existe mais. A Pax Americana estruturada em torno da Organização das Nações Unidas (ONU), das instituições de Bretton Woods, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de um sistema de alianças internacionais está sob ataque do país que liderou sua criação, os Estados Unidos.
A eleição de Trump representou uma radical ruptura com a tradicional política externa da nação mais poderosa do mundo. “A Pax Americana acabou”, diz o fundador e CEO da Eurasia, Ian Bremmer. Uma nova ordem mundial surgirá em seu lugar, mas seus contornos mal começaram a ser definidos.
O atual ocupante da Casa Branca despreza o multilateralismo e privilegia uma abordagem belicosa das relações internacionais. À frente do maior PIB e do mais vasto poderio militar do planeta, sua aposta é a de que o mundo se curvará à política da “América em Primeiro Lugar”. Mas, sua agressividade pode levar a ganhos de curto prazo à custa da supremacia dos EUA no longo prazo.
A visão de Trump das relações internacionais é a de soma zero, na qual os Estados Unidos só ganham se alguém perder. Cooperação e acomodação parecem estar ausentes de seu repertório, o que terá efeitos nefastos sobre a liderança global americana nos próximos anos. Para alguns analistas, a política externa do presidente dos EUA vai além do binômio engajamento ou isolacionismo. Robert Kagan, do Brookings Institution, diz que a melhor descrição para a posição de Trump é “a América não se importa”. Segundo ele, o princípio reflete a extrema indiferença em relação ao restante do mundo, o que se traduzirá de maneira inevitável em redução do apelo da liderança de Washington. “Em meses recentes, em relação ao comércio, Irã, gastos de defesa da Otan e talvez Coreia do Norte, o presidente Trump demonstrou que um presidente disposto a descartar os constrangimentos morais, ideológicos e estratégicos que limitaram a ação dos EUA no passado pode curvar esse mundo intratável à sua vontade, pelo menos por um período”, escreveu em sua coluna no Washington Post.[2]
Neoconservador e integrante do establishment de teóricos da política externa de Washington, Kagan avalia que as políticas de Trump afetarão a imagem e a posição de seu país no cenário internacional. “Os sucessos que ele está conseguindo – se eles podem ser chamados de sucessos – provêm de sua disposição de fazer o que presidentes anteriores se recusaram a fazer: explorar as grandes disparidades de poder construídas na ordem pós-guerra, à custa dos aliados e parceiros dos Estados Unidos.”
Enquanto a ordem internacional liberal é desmontada, o mundo continua a enfrentar incertezas geradas por focos de instabilidade. A possibilidade de qualquer acordo de paz entre Israel e Palestina parece ter sido enterrada de vez com a política de Trump de apoio irrestrito a Benjamin Netanyahu e a demonização de grupos que representam os palestinos. O potencial de turbulência no Oriente Médio é agravado pelo confronto entre Washington e Teerã, que subiu de tom depois de os EUA abandonarem o acordo em torno do programa nuclear iraniano.
Na Ásia, a Coreia do Norte e seu arsenal nuclear tiram o sono de vizinhos. Apesar das declarações de autocongratulação de Trump, não está claro qual será o desfecho de sua negociação com Kim Jong-un. A maioria dos analistas não acredita que o regime do país mais fechado do mundo abrirá mão de sua capacidade nuclear. A grande questão é como os EUA responderão na hipótese de as negociações iniciadas por Trump fracassarem.
EUA x China
Trump e seus principais assessores estão convencidos de que a China é a maior ameaça à supremacia global dos EUA. O diagnóstico não é muito diferente do realizado pela administração Barack Obama, mas a estratégia para enfrentar o desafio é radicalmente distinta. A relativa acomodação e a tentativa de contenção política e econômica da China com a Parceria Transpacífico (TPP) deu lugar ao confronto aberto. Sua face mais visível é a guerra comercial desencadeada pela imposição de tarifas do governo Trump, respondidas com anúncios de retaliação da China. O objetivo declarado dos EUA é forçar o Partido Comunista a abandonar o Made in China 2025, o programa estratégico pelo qual Pequim pretende assumir a liderança ou ter um papel global relevante em dez setores de alta tecnologia até 2025.
Do outro lado dessa queda de braço, o presidente Xi Jinping não parece estar disposto a ceder. Fortalecido pela decisão do Partido Comunista de acabar com limites a seu mandato, Xi está reforçando os traços da economia chinesa que provocam inquietação e desconfiança nos EUA e em outras partes do mundo. O ímpeto reformista deu lugar ao fortalecimento do papel do Estado, acompanhado do endurecimento político do regime. As gigantescas estatais conhecidas pela sigla SOEs (State-Owned Enterprises) foram vitaminadas e ganharam peso ainda maior na ofensiva doméstica e internacional da China. Algumas delas estão presentes no Brasil, com investimentos em setores estratégicos, como a geração e a distribuição de energia.
Pequim também adotou uma postura muito mais agressiva em relação às suas demandas territoriais na Ásia e impulsionou suas ambições globais em uma série de fronts. No ano passado, a China instalou sua primeira base militar no exterior. O local escolhido foi Djibouti, na África, continente dominado pelo comércio e pelos investimentos chineses. Em 2013, Xi lançou a iniciativa “Um Cinturão, Uma Estrada”, pelo qual pretende criar uma versão contemporânea da Rota da Seda por meio de investimentos em projetos de infraestrutura que conectem a Ásia à Europa.
Apesar da retórica em defesa da atual ordem global, Pequim trabalha na construção de novas instituições multilaterais que atuam sob sua liderança. A mais proeminente delas é o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, criado no fim de 2015. Vista como uma potencial rival do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial – pilares financeiros da Pax Americana – a instituição tem 87 membros, entre os quais países europeus como Inglaterra, França, Alemanha e Itália. Os EUA não aderiram à iniciativa.
A China também participa do Novo Banco de Desenvolvimento, o organismo financeiro sediado em Xangai e criado em parceria com seus sócios do Brics: Brasil, Rússia, Índia e África do Sul.
Com o agravamento das tensões com os EUA, os chineses investiram no adensamento dos laços com outros países. Em setembro, Xi e Vladimir Putin vestiram aventais azuis e cozinharam blini, típicos crepes russos, durante uma conferência econômica realizada em Vladivostok. Os dois líderes cobriram suas criações com caviar e as devoraram embalados por doses de vodka.
Além da gastronomia, ambos fortaleceram o relacionamento bilateral com a participação de tropas chinesas no maior exercício militar realizado por Moscou desde o fim da Guerra Fria. Foi a primeira vez em que os vizinhos, cujo relacionamento é marcado pela desconfiança mútua, se uniram em uma desmonstração de força. Em comum, Xi e Putin enfrentam o agravamento da tensão com os Estados Unidos – o primeiro, na forma da guerra commercial, e o segundo, em consequência de sanções impostas por Washington.
“A grande questão atual parece ser se a esfera de influência chinesa pode se ampliar sem a derrubada da ordem internacional criada e dominada pelos EUA. Mas, esse barco já partiu: a esfera da China se expandiu de maneira extraordinária e continua a se expandir”, escreve o acadêmico americano Stephen Kotkin, professor de Relações Internacionais da Universidade de Princeton.[3] “As questões reais, portanto, são se a China vai passar por cima de outros países, porque ela pode – ou se os Estados Unidos vão compartilhar a liderança global, porque eles precisam.”
Nova doutrina Monroe?
Conter a influência da China na América do Sul foi um dos objetivos da visita que o secretário de Defesa americano, James Mattis, fez ao Brasil, à Argentina, ao Chile e à Colômbia em agosto. Em entrevista ao jornal O Globo, o ministro da Defesa brasileiro, Joaquim Silva e Luna, disse que Mattis começou a conversa entre ambos ressaltando a importância da escolha de parcerias globais e as ameaças que algumas delas podem trazer à soberania nacional. “Uma delas é criando a dependência tecnológica, e até uma dependência econômica com países que não têm um alinhamento com a nossa forma democrática de proceder.”[4]
Em conversa com jornalistas no fim da visita, Mattis foi ainda mais explícito em suas posições. “Há preocupações a respeito de qual plano a China tem em mente para o hemisfério. Por exemplo, o único propósito da estação espacial é pesquisa ou algo mais?”, perguntou o secretário, em referência à base de monitoramento de satélites que os chineses construíram na Argentina. “Seguiremos trabalhando com nossos amigos da região, tentando fazer com que qualquer influência que chegue a este hemisfério (ocidental, como os americanos se referem à totalidade das Américas) seja benigna.”[5]
A declaração ecoa o espírito da Doutrina Monroe, elaborada no século 19, pela qual os EUA se opuseram a qualquer presença colonial europeia no continente. Mas, Washington ocupa uma posição muito mais frágil para ditar os destinos da região. A China está entre os principais parceiros comerciais de vários países da América do Sul, nos quais também aumentou seus investimentos em anos recentes.
Em 2017, o país asiático foi destino de US$ 47,49 bilhões das exportações do Brasil. A cifra correspondeu a 21,81% do total dos embarques e representou aumento de 35,17% em relação ao ano anterior. Os EUA vieram em segundo lugar, com pouco mais da metade do que foi enviado à China: US$ 26,87 bilhões ou 12,34% do total. A expansão em relação a 2016 também ficou aquém: 16,05%.
O aprofundamento dos laços econômicos com a China e a vizinhança com os Estados Unidos colocam a América do Sul no fogo cruzado da disputa entre os dois países. Aos poucos, a região sente os respingos do confronto. “Eu sei que os EUA querem a redução do ritmo de abertura do Brasil para a China”, ressalta Hakim, do Interamerican Dialogue. “Mas, os EUA não oferecem nada em troca.”
Com o poder de alinhar interesses corporativos, diplomáticos, acadêmicos e militares atrás de suas decisões estratégicas, a China tem vantagem nessa disputa, acredita Bremmer, da Eurasia. “Vários países na América Latina querem desesperadamente que os Estados Unidos façam muito mais (na região)”, observa. “Mas, qual é o custo econômico se eles não escutarem a América? Se não escutarem a China, isso custa turismo, infraestrutura, investimentos. Os chineses vêm com um pacote fechado.”[6]
O apelo dos EUA também sofreu o golpe da chegada de Trump ao poder. Desde o lançamento de sua campanha, em 2015, o presidente adota uma retórica que denigre imigrantes latinos, especialmente do México, aos quais acusa de serem estupradores, assassinos e traficantes. Além disso, seu impulso protecionista atingiu exportações da região, com a imposição de tarifas sobre aço, um dos principais produtos dos embarques brasileiros para o mercado americano.
Apesar da retórica de Trump, Bremmer acredita que os EUA ainda têm o apelo de seu soft power. “Não creio que a elite brasileira começará a enviar seus filhos para estudar em universidades chinesas ou venderá seus imóveis em Miami para comprar propriedades em Xangai”, ressalta. “As comunidades de negócios, especialmente a financeira, estão alinhadas com Wall Street e o Ocidente e isso leva gerações para ser desmontado. Os americanos ainda têm muitas cartas a seu favor.”
Coordenadora do Grupo China do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), a diplomata Tatiana Rosito afirma que o Brasil deve continuar neutro na disputa entre EUA e China e buscar aprofundar parcerias com os dois países. “Não queremos depender nem de um nem do outro.” Rosito defende a elaboração de modelos regulatórios mais estáveis, que possam atrair o capital americano para investimentos na área de infraestrutura, onde os chineses ampliaram sua presença de maneira considerável. A diplomata também propõe a busca de parcerias com os EUA em áreas como biocombustíveis e energias renováveis.
Em relação a Pequim, Rosito acredita que é possível estabelecer cooperação de longo prazo no setor agroalimentar, que leve à ampliação do acesso de produtos brasileiros ao mercado chinês.
A influência de Pequim na América Latina vai além do comércio e de investimentos. Desde 2005, o Banco de Desenvolvimento da China e o Banco de Exportação-Importação da China emprestaram US$ 150 bilhões a países da região, de acordo com o China-Latin America Finance Database, do Interamerican Dialogue.[7] O valor é superior aos créditos concedidos no mesmo período pelo Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Corporação Andina de Fomento.
A Venezuela ocupa o topo do ranking dos destinatários de financiamentos chineses, com US$ 62,2 bilhões. O Brasil aparece em seguida, com US$ 42,1 bilhões. O entusiasmo de Pequim com o governo de Nicolás Maduro esfriou a partir de 2016, com o agravamento da crise e as dificuldades crescentes do país caribenho para pagar suas dívidas. Naquele ano, Caracas recebeu apenas US$ 2,2 bilhões de crédito chinês. Em 2017, a cifra foi zero.[8]
Mas, depois de um período de distanciamento, a relação entre os dois países voltou a se aquecer com a visita que Maduro fez a Pequim em setembro, quando foi recebido com honras de chefe de Estado por Xi. Entre os potenciais resultados do encontro estava a liberação de US$ 5 bilhões em novos recursos para Caracas, que deixou de pagar grande parte de sua dívida com credores externos.
A China lançou seu salva-vidas à Venezuela no momento em que sua relação com o Estados Unidos continuava a se deteriorar. O gesto demonstrou a disposição de Pequim de desafiar os interesses de Trump nas Américas, assim como Washington tenta conter a influência da China na Ásia. O presidente americano defende a saída de Maduro do poder e declarou em 2017 que não descartava uma “opção militar” para resolver a crise no país, o que foi interpretado como uma ameaça de invasão.
Poucos dias antes da visita de Maduro a Pequim, o The New York Times publicou reportagem segundo a qual integrantes da administração Trump se encontraram no ano passado com militares rebeldes da Venezuela que planejavam um golpe contra Maduro e buscavam apoio dos EUA. De acordo com o jornal, o governo americano acabou rejeitando o apelo de cooperação.[9] Ainda assim, a posição antagônica em relação a Caracas deve contribuir para o esgarçamento dos laços entre as duas maiores economias do mundo, com potenciais impactos para a região.
O retrocesso na globalização
A guerra comercial desencadeada por Trump gera abalos sísmicos de alcance global. Seu principal alvo é a China, mas Europa, Canadá, México, Brasil, Argentina, Coreia do Sul e Japão estão entre os países atingidos pela elevação de tarifas destinada a proteger setores da indústria americana. A ofensiva protecionista e as retaliações às barreiras impostas por Trump ameaçam desmontar cadeias globais de produção e provocar retrocessos na globalização. Além do aumento de tarifas, o ocupante da Casa Branca parece disposto a acabar com o sistema de regulação do comércio mundial construído ao redor da OMC, sob a liderança de Washington. Os EUA têm se recusado a aprovar a nomeação de juízes para o órgão de apelação da entidade, que corre o risco de total paralisia no fim de 2019.
A incerteza sobre as normas e os mecanismos para solução de disputas devem desestimular investimentos externos, com efeitos negativos sobre a globalização e o crescimento mundial. “Nesse contexto, o comércio não será uma atividade de alto nível baseada em regras, mas uma atividade limitada, que depende de negociações bilaterais entre governos, nas quais empresas tentam convencer autoridades a dar a elas vantagens especiais. Isso significa que o nível de comércio será muito mais baixo que o atual. Foram necessários 70 anos para a construção da OMC, mas não serão necessários muitos meses para destruí-la”, diz Peter Petri, especialista em comércio internacional da Universidade Brandeis e consultor de inúmeras organizações multilaterais.[10]
“A reversão parcial da globalização é inevitável e nós já estamos começando a ver esse movimento. No comércio e nos investimentos já há efeitos da retórica nacionalista e protecionista”, afirma De Bolle, da Universidade Johns Hopkins.
Antes de desencadear uma guerra comercial em escala global, Trump desferiu golpes mortais contra o multilateralismo. Uma de suas primeiras decisões como presidente foi a retirada dos Estados Unidos do TPP, o megatratado comercial costurado por seu antecessor, Obama, como uma estratégia de contenção econômica e política da China. Em seguida, vieram o abandono do Acordo de Paris sobre Mudança Climática e do acordo em torno do programa nuclear do Irã, assinado por mais seis países.
O populismo nacionalista de Trump não é um fenômeno isolado. Menos de quatro meses antes de sua eleição, a maioria dos britânicos votou pela saída da União Europeia. Desde então, partidos eurocéticos de extrema direita ampliaram sua fatia do eleitorado em vários países da região. Os que perderam o bonde da globalização ou viram a desigualdade aumentar de maneira brutal começaram a se rebelar e a optar por líderes que identificam o mundo exterior e os fluxos migratórios como ameaças à segurança econômica e à identidade de seus países.
Mesmo sem os EUA, as 11 nações remanescentes do TPP tentam manter o acordo comercial, que agora é conhecido como CPTPP, graças à adição das palavras Comprehensive and Progressive. “Ainda há muitos países que defendem o consenso anterior, mas ele está sendo corroído pelas bordas, porque vemos a ascensão de partidos nacionalistas em toda a parte, o que preocupa”, observa De Bolle.
O Brasil no mundo que encolhe
O retrocesso na globalização vai reduzir a possibilidade de o novo governo brasileiro usar a integração econômica como mola propulsora do crescimento doméstico. “Nós vamos de novo perder a oportunidade de transformar nossa economia por meio da inserção internacional, que é algo que alguns países latino-americanos fizeram com sucesso”, ressalta De Bolle. Segundo ela, uma das possibilidades que ainda existem é um acordo entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico, grupo integrado por Chile, Colômbia, México e Peru – com exceção da Colômbia, todos estão no CPTPP.
O eventual tratado abriria as portas do Pacífico para o Brasil e seus vizinhos, afirma De Bolle. Mas, a negociação demanda tempo e dedicação de parte da burocracia governamental. “Dos países do Mercosul, dois não terão espaço para pensar em nada a não ser a estabilidade doméstica: Brasil e Argentina.”
Rosito, do Cebri, defende que o novo governo seja ativo no front multilateral e desempenhe um papel de liderança na América Latina. “Por ser um país em desenvolvimento, o Brasil sempre atuou para fortalecer o multilateralismo. E os grandes temas globais, como mudança climática, migração e comércio, continuam a exigir uma ação coordenada dos Estados”, observa. “Os problemas internos nos deixaram com uma atitude mais acanhada (no cenário internacional). É o momento de voltarmos. Não podemos nos dar por vencidos.”
Mas, a eventual volta se dará em um ambiente extremamente desafiador, no qual emergências de curto prazo – como a alta de juros nos EUA – terão de ser administradas ao lado da elaboração de estratégias de longo prazo em um cenário internacional nebuloso e sujeito a chuvas e trovoadas. Kotkin, da Universidade de Princeton, diz que o passado não é um bom guia para o que virá: “A história não nos diz nada sobre o futuro, exceto que ele nos surpreenderá”.[11]
[1]
Albright, Madeleine, Fascism: a Warning (Harper Collins, 2018), 4-5
[2]
Kagan, Robert, Trump’s America does not care, Washington Post, 14 de junho de 2018
[3]
Kotkin, Stephen, Realist World, Foreign Affairs, Julho/Agosto, 2018
[4]
Entrevista a Henrique Gomes Batista, Ministro da Defesa: EUA pedem ao Brasil liderança na Venezuela e cuidado com China, O Globo, 14 de agosto de 2018
[5]
Gomes Batista, Henrique, Influência chinesa na América do Sul resiste aos Estados Unidos, O Globo, 19 de agosto de 2018
[6]
Declarações dadas em palestra na School of Advanced International Studies da Johns Hopkins University, em setembro
[7]
China-Latin America Finance Database, https://www.thedialogue.org/map_list/
[8]
Myers Margaret e Gallagher, Kevin, Chinese development finance ‘down but not out’ in Latin America, Global Americas, 30 de março de 2018
[9]
Londoño, Ernesto e Casey, Nicholas, Trump Administration Discussed Coup Plans with Rebel Venezuelan Officers, 8 de setembro de 2018
[10]
Entrevista à autora, ‘Não sabemos para onde essa guerra comercial vai’, O Estado de S.Paulo, 16 de junho de 2018
[11]
Kotkin, Stephen, Realist World, Foreign Affairs, Julho/Agosto, 2018
Cláudia Trevisan é diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China, ex-correspondente do jornal O Estado de S.Paulo nos EUA e na China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império” e mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.
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