09 janeiro 2019

O Brasil depois da eleição de 2018

Fui convidado a falar do futuro da esquerda depois desta última eleição, mas estou convicto de que não se pode falar dela sem falar do Brasil. Os destinos dos partidos democráticos estão de tal forma entrelaçados com o futuro de nosso País que separá-los é ocioso.

Fui convidado a falar do futuro da esquerda depois desta última eleição, mas estou convicto de que não se pode falar dela sem falar do Brasil. Os destinos dos partidos democráticos estão de tal forma entrelaçados com o futuro de nosso País que separá-los é ocioso. Vou dar um tom um tanto otimista a esta análise, considerando uma tese que sustento em meu livro A boa política [1]: que o mundo caminha desde a proto-Renascença para um respeito maior do Direito, inicialmente, e, a partir do século XVIII, dos direitos, no caso, civis, políticos, trabalhistas, sociais e ambientais. Nesta trajetória, há avanços e longas estases ou mesmo recuos, mas o avanço sempre foi retomado.
Mais que isso: lembro-me de uma frase de Paul Singer, economista de esquerda, numa reunião em 2003 – “Hoje todos os economistas, de direita ou de esquerda, querem a redução da miséria e da pobreza. O que os distingue são os meios”. Penso que essa frase é o que distingue direita e esquerda democráticas. Na verdade, a vitória quase esmagadora da extrema-direita nas eleições brasileiras de 2018, levando a presidência da República e os principais estados, torna muito difícil separar o destino, pelo menos nos próximos anos, da esquerda e da direita democráticas e o do Brasil. Ficamos mutuamente implicados. Pautas diferentes (nos meios, sobretudo – lembro Singer) e mesmo os ódios nos dividiram, mas será muito difícil avançar sem uma recomposição do quadro político, o que não significa necessariamente uma reestruturação dos partidos. Talvez seja mais necessário do que partidos: talvez seja preciso uma pauta que tenha a sociedade, mais que os estamentos políticos, como sujeito condutor.

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Depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, em 2016, passamos de duas para três forças políticas principais em nosso país. Durante 20 anos, nosso espaço político foi comandado por PSDB e PT, que enquadravam os partidos menores e garantiam que nenhum aventureiro ou extremista chegasse ao poder. Isso, além de assegurar uma certa governabilidade, uma vez que os governos de um e outro partido conseguiram no Congresso os três quintos necessários para aprovar emendas constitucionais, que no sistema brasileiro são essenciais para o Executivo Federal governar (nem sempre aprovaram tudo, mas aprovaram a maior parte do que quiseram). Esse equilíbrio entre centro-esquerda e centro-direita foi vital para o Brasil. Ele evoca o período de consolidação da III República Francesa, quando, após a derrota para a Prússia e a guerra civil de 1870, o regime republicano acabou se firmando, no centro do espectro político.
2018: surge uma extrema-direita perigosa
Contudo, desde 2016, as duas forças se tornaram três. O impeachment foi um divisor de águas, uma espécie de deicídio à Dostoievski (“se Deus – no caso, as regras constitucionais – não existe, tudo é permitido”). Partidos de centro-esquerda se conservaram, mas um tanto divididos, como se viu no racha entre PT e Ciro Gomes, nas eleições de 2018. Partidos de centro-direita, antes comandados pelo PSDB, deslizaram para a direita, viram diminuir a relevância de seus nomes mais comprometidos com os direitos humanos e se racharam em várias candidaturas. E – principal mudança – surgiu uma extrema-direita poderosa, com mais da metade dos votos válidos no segundo turno, em sua maior parte fruto da decepção com os partidos de centro-direita, no qual muitos votavam.
A vitória de Bolsonaro representa, em termos maquiavelianos, um triunfo da virtù somente comparável ao de Collor em 1989. Nos dois casos, tratou-se de outsiders, com suas vitórias significando uma derrota significativa dos partidos existentes e, aparentemente, consolidados. Ambos insistiram em termos como a força da vontade (Collor) ou a vontade da força (Bolsonaro). A própria composição das equipes ministeriais marcou, nos dois casos, um triunfo do voluntarismo sobre a competência. É difícil prever o que poderá sair de positivo desse governo, embora os empresários e mesmo os partidos de direita tenham esperança em algum sucesso seu no plano econômico.
É neste quadro que se pode discutir o que será o futuro dos grupos mais à esquerda nos próximos anos. De esquerda propriamente dita, temos hoje apenas o PSOL como uma agremiação presente, que não chega a ser forte, mas é pelo menos muito ativa. Em vários pontos, desde sua fundação a partir de uma ruptura com o PT então recém-eleito para a presidência, o PSOL parece querer retomar a trajetória do partido-mãe, especialmente preferindo defender os valores progressistas a compor-se com grupos retrógrados ou corruptos. Os fins não justificam de forma alguma os meios, entende o PSOL. Com isso não estou dizendo que os demais partidos sejam desonestos – apenas, que o jogo político brasileiro, conduzido por qualquer partido que seja, até mesmo nos regimes ditatoriais, sempre passou por acordos pouco republicanos para garantir a governabilidade. Nisso, o PSOL é exceção.
Mas, a força importante do lado progressista não é a esquerda, é a centro-esquerda. (O nome “esquerda” não me parece apropriado nem para o entorno de Ciro Gomes, que chegou a namorar com o chamado “Centrão” – que eu chamei de “direita sem ideologia” – nem para o próprio Partido dos Trabalhadores, que se moderou nos seus anos de governo).
Temos aqui um paradoxo. A direita, que se autointitula centro, embora seja mais conservadora do que os partidos clássicos da direita europeia, como a CDU de Angela Merkel, despencou em termos de votos, enquanto os partidos de centro-esquerda conseguiram 45% dos sufrágios válidos no segundo turno. Portanto, esse lado do espectro político conserva uma popularidade significativa. Contudo, e esse é o grande problema, essa votação lhes deu poucos cargos no poder. Das dez unidades federadas com o PIB mais elevado, apenas Bahia e Pernambuco (respectivamente, sexto e décimo no PIB) elegeram candidatos de centro-esquerda. Se considerarmos o PIB per capita, a situação é ainda pior, porque Pernambuco ficará em 17º lugar e a Bahia, em 20º.
Em termos de comparação, a extrema-direita elegeu o presidente da República e, independentemente do nome do partido, mas considerando suas declarações e programas, entre os dez maiores PIBs, elegeu também os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Distrito Federal e Goiás. Embora alguns desses eleitos pertençam ao PSDB, partido que foi do centro-direita, esses nomes fizeram sua campanha com valores próximos aos do candidato Bolsonaro, de modo que assistimos a um enorme esvaziamento não só dos partidos de centro-esquerda, com dois governadores, como da direita tradicional, democrática. À direita, o que resta é optar pelo apoio ao governo eleito, o que ela fará se sua principal pauta for econômica, ou então definir novos projetos democráticos, se valorizar a educação.
Mas, se os partidos de centro-esquerda tiveram votação nitidamente superior aos da direita, sua situação não é muito melhor no quadro político geral. Sim, o Nordeste inteiro escolheu governadores nesta família política, mas apenas ele, o que pode resultar num isolamento de uma região tradicionalmente pobre (embora se tenha desenvolvido bastante estes anos). Sim, o PT é o partido mais votado para a Câmara, mas o ímã do poder fará a agremiação de Bolsonaro, o antes quase inexistente PSL, superá-lo em pouco tempo pelo mecanismo de adesões. Pior, os partidos de centro-esquerda ficaram isolados. Tem a mídia contra eles, os grandes partidos de direita, que apoiaram o impeachment, o empresariado. Sua travessia do deserto é pior do que na década de 1990, quando também mal tinha cargos executivos eleitos de alguma importância, mas não era alvo de tanto ódio quanto se tornou estes anos.
Para o Brasil, essa é uma situação delicada, para não dizer coisa pior. Não é ruim apenas para a esquerda ou centro-esquerda, mas para a representatividade das forças políticas. Quando 45% dos votantes não têm força politicamente em quase nenhuma nas instituições eleitas, isso torna difícil a tradução em termos políticos de seu descontentamento ou de seus anseios. Num regime democrático, é essencial que haja vias institucionais para a expressão das principais vontades. Se levarmos em conta, ademais, que essas vontades ocuparam a presidência da República durante 13 anos, sua exclusão da cena de decisões se torna traumática. Tal condição, somada à disposição dos eleitos a utilizar a força para o enfrentamento de conflitos, pode criar situações de confronto difíceis de administrar.

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Já do ângulo de centro-esquerda, neste momento, as questões principais dizem respeito ao futuro do PT e do movimento cirista, as duas forças mais votadas em 2018. O mais grave é possivelmente o ambiente de rancor que se criou entre um lado e outro. Para Ciro Gomes, a recusa do PT a apoiá-lo deu vitória a Bolsonaro. É difícil perdoar isso. Já para o PT, o fato de Ciro viajar para o exterior durante o segundo turno, em vez de entrar em sua campanha, ajudou a extrema-direita a ganhar a eleição. É difícil relevar isso.
Some-se a isso que nenhum dos lados está disposto a uma reavaliação de suas estratégias. Não me refiro à constante cobrança, pela direita, de uma autocrítica do PT. Se a própria direita não faz sua autocrítica (e foi por subordinar-se à extrema-direita, no anseio de obter o impeachment, que o PSDB praticamente se liquidou – ao contrário do PT, que perdeu o poder, mas continuou popular). Quem não reconhece seus próprios erros não tem legitimidade para cobrar autocrítica dos outros. Mas, a prioridade para a esquerda e  a centro-esquerda me parece ser a necessidade de pensar um novo projeto progressista para o País. Penso que isso é mais importante do que a discussão de nomes próprios.
O Brasil está hoje com recursos econômicos escassos. Uma política social como a petista, que melhorava a vida dos mais pobres sem necessitar, graças a uma economia favorável, tirar dos ricos hoje é bem difícil. O que propor? O que discutir como projeto político?
Tenho insistido em que o Brasil precisa de três vetores principais de ação do governo. É necessário retomar o crescimento econômico, lema de Aécio Neves na eleição de 2014 e tema constante dos setores mais conservadores. Mas, não é porque a direita insiste mais neste ponto que ele não deveria ser prioridade do lado progressista.
É preciso, também, que essa retomada se dê dentro do mais amplo respeito ao meio ambiente, não só para que nossos produtos obtenham a certificação que lhes dará acesso aos mercados mais ricos do mundo desenvolvido, mas também para evitar que no futuro tenhamos que pagar, caríssimo, o descaso com a natureza. Deveríamos ter aprendido com uma experiência histórica desastrosa o quanto custa essa economia porca, que consiste em deixar, por exemplo, dejetos se acumularem numa barragem malcuidada como a de Mariana (MG), para depois sua destruição acarretar a extinção da vida ao longo de 660 km do Rio Doce. Esse foi um tema no qual muito insistiu Marina Silva, provindo do ambientalismo, mas ao qual nem o governo Temer, de direita, deu importância, nem parece que vá dá-la o governo Bolsonaro, pelo menos levando em conta suas declarações insistentes contra o acordo de Paris. (A rigor, o governo Dilma também não lhe conferiu destaque especial).
Terceiro ponto necessário, a marca registrada do PT: a inclusão social. Não é apenas injusto que o Brasil permaneça, após cinco séculos de existência, com níveis tão preocupantes de pobreza e tão negativos na educação e na saúde. É ruim para a economia. Hoje, qualquer analista sério do Banco Mundial ou de The Economist apontará o quanto esse panorama ruim prejudica o desenvolvimento econômico.
O que quero dizer com isso: em que pesem os momentos difíceis, em que, em nome de factoides, como o da escola supostamente sem partido, um presidente eleito descarta o consenso construído ao longo de anos por educadores do PT ao PSDB e ao DEM no diagnóstico e nas medidas recomendadas para a educação, em que pese o retrocesso civilizacional a que assistimos hoje aqui e em outros países, o fato é que o capitalismo avançado e a democracia consolidada chegaram a acordos sobre a convergência entre medidas socialmente benéficas e economicamente positivas. A oposição histórica entre a pauta da economia e a das políticas sociais pode ser superada. Exemplo feliz disso é a questão da licença-paternidade. Sua adoção, na Constituinte de 1987-88, causou zombaria daqueles que consideravam ridículo um homem deixar de trabalhar, ainda que fosse por poucos dias, ao lhe nascer um filho. Hoje, na Escandinávia, licenças bem mais longas de maternidade e paternidade têm sido apontadas como reduzindo problemas de criminalidade e de saúde, física e mental, bem como aumentando a qualidade da educação e a produtividade econômica. Penso que esse é um dos caminhos a trilhar no debate entre os setores progressistas.
Pautas do futuro são as da inteligência
Também há que assumir as pautas do desenvolvimento econômico, em especial aquele que requer grande investimento da inteligência, isto é, o que diz respeito à ciência e à tecnologia. Evidentemente, o que será distintivo da esquerda nesta pauta serão exigências quanto a níveis e qualidade de emprego. A discussão da previdência social não pode continuar, mediocremente, limitada à do seu financiamento. Precisamos incluir na pauta o que se fará no tempo crescente pós-trabalho, que inicialmente não passava de zero a cinco anos de vida após a aposentadoria, mas foi aumentando e provavelmente chegará a várias décadas. Antes de perguntar quem pagará isso, precisamos discutir o que será isso? Cada vez mais vai ficando nítido que este tempo deve ser dedicado à cultura e à atividade física – que, além de fornecerem novos sentidos para a vida, também geram novas oportunidades econômicas. A tese do ócio criativo, que na voz de Domenico De Masi tanto público atraiu na década de 1990, tem hoje condições de realmente ser implantada para um número cada vez maior de pessoas.
Na verdade, as grandes pautas do futuro são as da inteligência. Foram a ciência e a tecnologia que expandiram a expectativa de vida, permitindo assim um aumento da parcela da vida dedicada ao lazer; são elas que nos capacitam a viver esse lazer sob uma forma criativa; deve-se a elas a possibilidade de uma nova harmonia com a natureza; não por acaso, num tempo em que muitos brasileiros veem com pessimismo o retrocesso civilizacional fortalecido nas urnas, é à educação – assim como à pesquisa – que se dedicam cada vez mais jovens, que querem uma utopia viável, uma sociedade justa, com igualdade de oportunidades e respeito intenso à diferença e à diversidade. Quando a evocação do fascismo e do nazismo fica forte, dado o retrocesso nos valores que começa com o Brexit e a eleição de Trump, quando no Brasil pela primeira vez na história se elege um presidente cujo plano de governo apresenta a educação não como promessa, mas como ameaça, não como algo em que ter esperança, mas como algo de quem ele tem medo, torna-se importante lembrar que, nos tempos em que o fascismo se aprestava a triunfar, não havia nada dessa atividade otimista, promissora de um mundo melhor, que hoje enxergamos entre os jovens, entre os educadores, os sanitaristas, os defensores da inclusão social, empenhados em promover uma sociedade melhor. É nisso que a esquerda deve, mesmo sem ter o monopólio destas pautas, apostar. Deve lutar por um consenso dos setores democráticos, incluindo quem não é de esquerda, mas deve também assinalar que a característica essencial da esquerda é a boa distribuição das bênçãos do desenvolvimento. E, embora seja essencial organizar ligas e partidos, entendo que pensar este mundo cada vez mais novo em que estamos exige rever projetos, métodos, militâncias. Quanto mais cedo pensarmos as oportunidades à nossa frente, mais rápido superaremos os dramas do presente.
[1] São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

É professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de S. Paulo (USP). Professor visitante na Universidade Federal de S. Paulo (Unifesp). Foi ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff (2015).

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