01 janeiro 2010

O Brasil Desponta como um Player Global

Há mais ou menos uma década, o Brasil despontou como um competidor global (global player), embora não essencial, nos negócios mundiais. Várias questões convergiram para tornar possível esta nova realidade. A primeira – e muito importante – foi a administração de oito anos de Fernando Henrique Cardoso (1994–2002), que, com o estabelecimento do plano de estabilização monetária conhecido como Plano Real, preparou o terreno para seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010). O governo Fernando Henrique Cardoso também implementou com sucesso um programa de estabilização fiscal que enfrentou o constante excesso de gastos acima do orçamento, em todos os níveis de governo. Embora não os tenha consolidado, sua administração deu início aos programas de transferência de renda que, unificados, dominariam a imagem da agenda social de Lula, com o nome de Bolsa Família.

O Brasil de Lula expandiu estas importantes iniciativas. A expansão viu o Brasil despontar como um gigante energético potencial. Viu o Brasil assumir um papel assertivo de liderança nos dois G-20s – de comércio e de finanças. Muitas dessas iniciativas são vistas no exterior no contexto do bric – Brasil, Rússia, Índia e China. Cunhado pelo banco de investimentos Goldman Sachs há cerca de uma década, o acrônimo refere-se aos novos players influentes no século xxi. Dentro de casa, ou seja, na América do Sul, Brasília desenvolveu um papel regional relativamente sofisticado. Resta uma ressalva a ser tratada – estes desenvolvimentos muito positivos são contrabalançados pelo que muitos consideram uma política externa cada vez mais ideológica, que em geral parece ser mais dirigida por políticas domésticas e eleitorais que por bom senso.

Liderança Regional

Talvez a iniciativa mais significativa de política empreendida em anos recentes tenha sido a criação da Unasul – a União das Nações Sul-americanas. O processo tem por objetivo integrar o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Comunidade Andina de Nações em uma única unidade política e econômica. Em dezembro de 2004, sob a tutela de Brasília, os líderes da América do Sul assinaram a Declaração de Cusco, um documento de duas páginas que estabelece em moção a criação da Comunidade Sul-americana de Nações (csn). A Declaração de Cusco conclamou a nova organização a criar uma moeda única, um mercado comum livre de taxas e um parlamento regional.

Em sua primeira reunião de cúpula, em Brasília, em setembro de 2005, os chefes de Estado da csn pactuaram as etapas para formalizar o acordo. Doze nações assinaram o tratado constitutivo da Unasul, que substituiu a csn, na terceira reunião de cúpula dos chefes de Estado, cujo anfitrião foi o presidente Lula, em maio de 2008. A expectativa dos membros é que a Unasul se transforme ao longo do tempo em uma União Europeia Sul-americana. O tratado estabelece as metas para a integração das redes regionais de energia e transportes, das políticas de imigração e matérias relacionadas. A meta é estabelecer um parlamento da Unasul em Cochabamba, na Bolívia.

Em reunião posterior, convocada pelo presidente Lula em dezembro de 2008, os chefes de Estado aderiram à proposta brasileira de formar um Conselho de Defesa Sul-Americano com o objetivo de consolidar “a América do Sul como uma zona de paz, uma base para a estabilidade democrática e o desenvolvimento integral dos povos, como contribuição para a paz mundial”. O Conselho reuniu-se pela primeira vez em Santiago, no Chile, em março de 2009. A meta é adotar um método padronizado para medir as compras de armas de cada país, coordenar a atividade de seus exércitos em missões de paz e humanitárias e fortalecer a capacidade regional de produzir sistemas de defesa e tecnologia militar, em parte promovendo os investimentos bilaterais e multilaterais nas indústrias regionais de defesa. Além disso, existem planos para unir as academias de treinamento militar na região e estabelecer um Centro Sul-americano de Estudos Estratégicos.

Lula também presidiu a primeira Reunião de Cúpula da América Latina e do Caribe para a Integração e o Desenvolvimento (calc), que reuniu 33 líderes no resort brasileiro da Costa do Sauípe, na Bahia, em dezembro de 2008. Simbolicamente, os Estados Unidos, o Canadá e a União Europeia não foram convidados a participar dessa reunião. Raul Castro, de Cuba, participou. A reunião regional foi precedida por uma série de minirreuniões de cúpula envolvendo o Mercosul, a Unasul e o Grupo do Rio, e foram anunciados planos para integrar a calc e o Grupo do Rio em novo corpo regional permanente.


O papel desempenhado pelo Brasil na liderança de novas iniciativas reflete a nova realidade da América do Sul. O Mercosul parece estar paralisado. A Comunidade Andina está profundamente dividida politicamente. O presidente Fernando Henrique Cardoso convocou a primeira reunião dos chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, em 2000. O conceito era muito claro: marcar a diferença entre o continente sul-americano e a América Central, o Caribe e o México, referidos genericamente como “América do Norte”. A inferência é clara. Esses países recaem sob a liderança e influência dos Estados Unidos.

Há muitos obstáculos a superar. Alguns paí¬ses, como Equador, Bolívia, Venezuela e, até certo ponto, Argentina e Paraguai, têm governos neopopulistas e contrários ao mercado. Os governantes de Brasil, Colômbia, Chile, Peru e Uruguai são mais voltados para o mercado. Persistem velhas rivalidades. Questões como a guerra de guerrilhas, ainda em curso na Colômbia, dividem a região. Além disso, os vizinhos menores do Brasil não hesitaram em desafiar o “grande irmão” local. Em 2006, Evo Morales, da Bolívia, nacionalizou as operações do gigante energético brasileiro, a Petrobras, assim como de outras holdings de petróleo. Em setembro de 2008, o presidente do Equador, Rafael Correa, expulsou os administradores da empresa brasileira de engenharia Odebrecht, sob a alegação de falhas na construção de uma usina, que estaria abaixo dos padrões. E amea¬çou não pagar empréstimos concedidos pelo bndes, o banco brasileiro de fomento, para a realização da obra. No mesmo ano, o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, exigiu do Brasil a renegociação do tratado de abastecimento de energia de Itaipu.

Brasília administrou com habilidade estas disputas. Lula e Lugo resolveram as diferenças depois de uma reunião em Brasília. O forte apoio do Brasil ao governo de Evo Morales se mantém, apesar da divergência circunstancial sobre a Petrobras. O papel de liderança do Brasil na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) demonstra a preocupação da América do Sul com uma estabilidade mais ampla no hemisfério. Essas iniciativas estão em desenvolvimento, mas indicam que a presidência brasileira está engajada em uma política externa regional mais ativa. A pergunta é se isso vai continuar depois da posse do próximo presidente em janeiro de 2011.

Os G-20s: comércio e finanças

O mais importante Grupo dos 20 (G-20) é o que trata das negociações sobre o comércio mundial. A Rodada de Desenvolvimento de Doha começou como uma reunião ministerial em Doha, no Catar, em novembro de 2001. Todos os países se comprometeram com uma nova rodada de negociações sobre a abertura de mercados agrícolas e manufatureiros, bem como sobre o comércio de serviços (gats), e com a expansão da regulação sobre a propriedade intelectual (trips). A intenção da Rodada era de elaborar regras de comércio mais justas para as nações em desenvolvimento. Em reunião ministerial realizada em Cancun, no México, em setembro de 2003, fracassou o esforço para se conseguir uma agenda comum aos países em desenvolvimento e aos países industrializados do Norte. Graves divergências sobre “as questões de Cingapura” – transparência nas compras governamentais, facilitação do comércio (questões alfandegárias), comércio e investimento, e comércio e concorrência –, herdadas de conversações comerciais anteriores, pareciam insolúveis.

Piorando as questões, a boa-fé de alguns participantes foi questionada, com críticas que acusavam o Norte de ter comparecido a Cancun não para negociar, mas para repetir velhas demandas. Na esteira de Cancun, sob a liderança do Brasil, da Índia e da China, um grupo de vinte países começou a formar uma agenda agressiva “do Sul”. Brasil e Índia conduziram uma nova rodada de conversações em Genebra, em 2004, enfatizando a necessidade de encontrar uma solução para os subsídios agrícolas onerosos praticados pelos Estados Unidos e pela Europa. As negociações foram inconclusivas. Os dois grupos reuniram-se novamente, mas sem chegar a um acordo. Foi feito um esforço “final”, em Genebra, em julho de 2008. Depois de vários dias de conversações, o governo indiano decidiu que a inflexibilidade do Norte em relação às tarifas agrícolas tornava impossível continuar. Nesse caso, o Brasil rompeu com seus parceiros bric e optou por apoiar uma proposta apresentada pelo diretor-geral da omc, Pascal Lamy, de limitar os subsídios agrícolas norte-americanos a US$ 14,5 bilhões em troca de cortes nas tarifas alfandegárias dos países em desenvolvimento. O esforço fracassou.


A imprensa comentou que as negociações em Genebra demonstraram a emergência do Brasil, da China e da Índia como “usinas de comércio”. Ficou claro que os termos de negociação estavam mudando. Nenhum acordo mundial é possível sem que se considerem as preocupações desses três países e de seus colaboradores no G-20. Ao longo da última década, o Brasil tornou-se um competidor importante no comércio de commodities, por exemplo. É o segundo maior exportador mundial de soja e o líder na exportação de carne bovina, frango, açúcar e café. Os preços ascendentes das commodities em 2008 deram ao Brasil e a seus aliados um novo poder nas negociações comerciais. Mantendo-se firme em sua demanda por mais justiça na área dos subsídios agrícolas, o Brasil ganhou prestígio por seu papel de liderança em Genebra e consolidou sua reputação de negociador duro, mas pragmático.

O segundo Grupo dos 20 é dedicado à reorganização dos procedimentos financeiros mundiais. O G-20 (formalmente, o Grupo dos 20 Ministros das Finanças e dos Dirigentes de Bancos Centrais) foi criado em 1999 para reunir as maiores economias do mundo. Mas, nos anos seguintes, os países industriais (tanto o G-7 como o G-8, quando a Rússia foi incluída) continuaram a dominar a agenda financeira internacional. Com a crise que teve início nos Estados Unidos em 2008, os países industriais decidiram expandir o escopo e a responsabilidade do G-20. Os líderes europeus, principalmente, exigiram que se “repensassem” as velhas regras e estruturas financeiras. No final da administração de George W. Bush, foi realizada uma reunião do G-20 em Washington, em novembro de 2008. O Brasil foi um crítico franco da má administração dos negócios financeiros mundiais pelos países industrializados e convocou uma cúpula em São Paulo, pouco antes da cúpula de Washington. No quadro dessa reunião, os ministros das finanças do bric apresentaram uma posição conjunta que exigia a reforma de instituições, como o fmi (Fundo Monetário Internacional), para refletir a crescente importância das economias em desenvolvimento. Os ministros do bric pediram a reforma das instituições multilaterais com o objetivo de refletir as mudanças estruturais na economia mundial e o crescente papel central que os países de mercados emergentes desempenham atualmente.

A reunião de cúpula de Washington estabeleceu as bases para a reunião de Londres, em abril de 2009. O presidente Barack Obama foi eleito em novembro de 2008, mas não compareceu à Reunião de Cúpula de Bush. Esperava-se que a nova administração dos Estados Unidos desempenhasse um papel ativo na reunião de 2009 – o que efetivamente ocorreu. Com o apoio dos principais países em desenvolvimento, a Reunião de Cúpula de Londres lançou o “Plano Global para Recuperação e Reforma”. Entre a reunião de Londres e a realizada pelo presidente Obama em Pittsburgh, na Pensilvânia, em setembro de 2009, o presidente Lula responsabilizou os países industrializados pela crise financeira e afirmou com indignação que a crise não era culpa dos países de mercados emergentes – como havia sido no passado. E ele clamou por maior responsabilidade e resposta do antigo G-7/G-8 às demandas do mais amplo G-20.

O papel de liderança do Brasil nas conversações sobre as finanças globais foi muito acentuado pela decisão das principais agências de classificação de risco que deram ao Brasil o status de “grau de investimento” (“investment grade”). Esta decisão de agências como a Moody’s e a Standard & Poor’s refletiu a cuidadosa administração macroeconômica e a probidade fiscal do governo sob a liderança de Lula. Apesar de muitas reformas estruturais pendentes – a tributária, a trabalhista, a do sistema de aposentadoria e as pressões sociais por maiores gastos em saúde e educação – o Brasil deu uma guinada positiva aos olhos dos investidores. O grau de investimento possibilitará que novos e importantes fundos de pensão e outras entidades invistam na economia brasileira. A decisão veio ao mesmo tempo em que outro desenvolvimento importante impulsionou a reputação do Brasil como um player mundial emergente – energia.

A Bonança Energética

Em 2007–2008, a Petrobras anunciou a descoberta de grandes reservas de gás natural e petróleo na costa sudeste. Com nomes expressivos como “Tupi” e “Júpiter”, o país subitamente passou a ser um player energético em escala global. O país atingiu a autossuficiência energética em 2006, e as novas descobertas sustentam a possibilidade de o Brasil tornar-se importante exportador de combustíveis fósseis na próxima década. De acordo com estimativa recente, o campo de petróleo de Tupi tem reservas para produzir de cinco a oito bilhões de barris de óleo recuperável e gás natural. Esta descoberta pode aumentar as reservas brasileiras comprovadas de 12,2 bilhões de barris em pelo menos dois terços, colocando o Brasil à frente do Canadá (17,1 bilhões de barris) e do México (12,9 bilhões de barris). As descobertas, que continuam, fazem do Brasil um dos cinco ou seis países com as mais altas reservas estimadas de petróleo, situando-se entre a China e a Nigéria em escala mundial.

Um segundo programa energético importante que atualmente atrai a atenção do mundo é o programa nacional de etanol. O combustível derivado da cana-de-açúcar representa a possibilidade de uma significativa redução da necessidade de petróleo no futuro. O Brasil é, hoje, o segundo maior produtor e o maior exportador de etanol do mundo. Muitos observadores consideram que o país tem a primeira economia mundial sustentável de biocombustível. Seu programa de etanol utiliza a tecnologia de cultivo de cana-de-açúcar mais eficiente do mundo. Além disso, emprega equipamentos modernos, usa cana-de-açúcar barata como insumo para produtos manufaturados (químicos) e utiliza o bagaço residual para produzir energia a preço muito competitivo e de modo muito equilibrado (uso de energia/produção de energia).

Uma ressalva

Embora o Brasil tenha-se tornado um porta-voz cada vez mais importante das economias emergentes de mercado, como discutimos, ele também deve examinar sua política externa para se assegurar de que ela representa a nova realidade econômica e de investimento. Por exemplo, a recente visita do presidente iraniano a Brasília indica o tipo de política que precisa de revisão. Apesar de o Brasil ter, com certeza, o direito de engajar-se em questões globais, ele precisa fazer isso de maneira responsável e positiva. Uma postura grandiloquente não é boa política externa. Uma posição cooperativa, complementar às Nações Unidas e a outros atores com influência na situação do Oriente Médio, seria mais sábia. Com a criação da Unasul, o Brasil tem uma nova base para a liderança regional. Mas esta liderança precisa refletir uma agenda positiva para a região. A utilização recente da Unasul para criticar a decisão do presidente Álvaro Uribe de permitir que mais militares das Nações Unidas operem nas bases militares colombianas representa uma reação automática às preferências altamente ideológicas de indivíduos como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela. E a aparente inabilidade de Brasília de encontrar um papel mediador na crise de Honduras novamente desperta uma questão legítima sobre como o Brasil considera suas responsabilidades regionais no longo prazo.

Conclusão

Em um período de tempo relativamente curto, o Brasil tornou-se um competidor cada vez mais importante em numerosas arenas internacionais, destacando-se energia, comércio e finanças. Empreendeu-se um importante conjunto de iniciativas organizacionais regionais que são jovens ainda, mas espera-se que amadureçam nos próximos anos. Com esses desenvolvimentos vem a responsabilidade de agir positiva e pragmaticamente em questões mais amplas, de importância global. A crescente influência econômica e comercial precisa ser combinada com uma política externa madura e responsável. Essa combinação servirá bem ao Brasil no momento em que sua trajetória ganha crescente atenção e respeito.


É Professor e diretor do Programa sobre Hemisfério Ocidental da Johns Hopkins School of International Studies, em Washinton DC. Tradução do original em inglês por Micheline Christophe

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