01 outubro 2009

O Brasil e o Governo no Pós-Crise

Os programas de transferência de renda podem produzir efeitos benéficos, mas não são um substituto para as políticas econômicas e sociais clássicas, na área do emprego, do seguro social, da educação, da qualificação profissional, e do atendimento à saúde. Para o autor, estas são as únicas que podem efetivamente produzir resultados mais significativos a médio e longo prazo.

Carlos Mussi e José Roberto Afonso
Qual o impacto da crise sobre o Brasil? Como o País sairá dela? Como será o mundo pós-crise e como nele vamos competir? Ou, em resumo: dadas as respostas do governo brasileiro à crise, o Brasil sairá dela apto para crescer em um novo ambiente internacional?


É muita pretensão, confessadamente, achar que se terá resposta precisa, diante de um fenômeno de tamanhas dimensões e que mal começa a terminar – aliás, o economista Nouriel Roubini, por exemplo, acha que a recuperação não está consolidada e vê riscos de nova recessão. Se falar sobre futuro já é um exercício sobre incertezas (para não dizer especulação), fazê-lo, depois de uma das mais graves crises financeiras da história, é um grande risco (para não dizer uma temeridade). Por isso, é melhor considerar este texto um conjunto de reflexões ainda em aberto.

Poucos meses depois de irromper a crise financeira internacional, a agenda nacional de debates mudou rapidamente. É interessante notar que a discussão sobre as causas da crise e sobre as medidas anticíclicas cedeu rapidamente lugar à discussão sobre as saídas da crise. A questão deixou de ser se e quando o Brasil voltará a crescer, mas, sim, a que ritmo retomará o crescimento, se mais ou menos intenso, em especial em comparação com as economias mais ricas. Do cenário sombrio passou-se rapidamente para o mais otimista, ao menos quando se consideram as expectativas do mercado financeiro, alentadas pela entrada crescente de recursos externos e por forte expansão da bolsa de valores nacional. Em face dessa brusca mudança de humores, torna-se ainda mais importante recuperar uma perspectiva de médio prazo sobre os rumos da economia brasileira.

A crise e o nó maior: falta uma estratégia de desenvolvimento

A estabilidade de preços, arduamente alcançada com o Plano Real, a tímida retomada do crescimento econômico nos últimos anos e, principalmente, a melhoria nos indicadores sociais e de distribuição de renda indicavam uma nova trajetória de desenvolvimento para o Brasil. A crise nos colocou o desafio óbvio de enfrentá-la e, maior ainda, de retomar a trajetória anterior em condições internacionais bem diferentes das que prevaleciam antes: menor disponibilidade de capitais; maior participação das economias emergentes, em particular a China, na definição dos fluxos de comércio; fragilidade financeira das economias desenvolvidas e crescente pressão para uma internacionalização política dos temas econômicos e sociais mundiais, como aquecimento global, direitos humanos e segurança.

Se acelerar e sustentar um crescimento econômico num ritmo compatível com uma economia emergente já era um desafio para o País antes da crise global, ele só aumentou depois da crise. Na última década e meia, o Brasil finalmente se saiu – e muito bem – da tarefa de estabilizar e manter preços sob controle, mas não teve o mesmo sucesso quando o quesito foi o crescimento. Há que se considerar que, na segunda metade da década passada e início desta, o País atravessou condições externas muito adversas. Quando estas se dissiparam e teve início o melhor período da economia mundial no pós-guerra, o País cresceu a taxas inferiores às logradas pela média dos emergentes e mesmo pelo conjunto dos demais paí¬ses da América Latina. Justamente quando a economia brasileira alcançava a sua melhor fase de expansão, no terceiro trimestre de 2008, o movimento foi súbita e drasticamente abortado pelos efeitos sobre o crédito da quebra do Lehman Brothers.

O desafio maior de sair da crise e retomar o crescimento, que tivemos dificuldade de superar inteiramente nas últimas várias décadas, exigirá, ainda mais do que antes, equacionar e conciliar políticas econômicas e sociais. Já não é mais possível (muito menos desejável) repetir o paradoxo do “milagre brasileiro”, na virada dos anos de 1960 para os anos de 1970, quando éramos um dos países com as maiores taxas médias de crescimento no mundo, porém, ao mesmo tempo, tínhamos os indicadores sociais, inclusive de pobreza, entre os piores do mundo, e não éramos capazes de melhorá-los significativamente.

Desde a década passada, o Brasil adotou políticas públicas ativas e inegavelmente conseguiu melhorar, em muito, os seus indicadores sociais (até mesmo a desigualdade), mas décadas foram perdidas no quesito do crescimento econômico. Este, mesmo quando retomado, ficou aquém das economias emergentes. Como conciliar as duas políticas, ou, melhor, os dois resultados?

Essa dicotomia entre política econômica e social não tem sido objeto de um debate nacional amplo e explícito. Ela acaba ficando implícita nas questões que marcam a política fiscal. A melhoria da proteção social significou elevação dos gastos públicos. Para estabilizar a dívida pública, os superávits primários tiveram que ser ampliados (a meta subiu a partir de 2003). Esses fatos exigiram um aumento da carga tributária sem precedentes históricos e sem paralelo em outros países. Pior que quantidade (carga), a qualidade da tributação (centrada em tributos indiretos) inegavelmente prejudica exportações, investimentos produtivos e o próprio crescimento. Como ter um sistema tributário que não distorça a alocação de recursos na economia, mas gere receita num volume expressivo e suficiente para custear um nível elevado de despesa pública, inclusive para a área social?

Para enfrentar esses desafios estruturais, é inegável que será necessária uma nova estraté¬gia, não apenas econômica, mas política. A crise só ampliou a necessidade e a premência de debater e acordar um projeto de desenvolvimento para o Brasil. Infelizmente, pouco mudou na gestão governamental em relação a esse propósito. Ainda faltam diagnósticos realistas, planos formulados e efetiva coordenação para propor e realizar essa transformação estrutural.

Para não dizer que nada foi feito, cabe destacar uma mudança de postura na inserção inter¬nacional do País, que passou a ser mais agressiva e explorar a inegável popularidade, agora internacional, do atual presidente da Repú¬blica. A nova projeção internacional do País incentivou o governo brasileiro a buscar oportunidades e consolidar posições nos fóruns mundiais, com a expectativa de se tornar também ator importante no período pós-crise. No entanto, e talvez não seja claro para muitos, a eventual maior contribuição brasileira nessa nova “ordem” está altamente vinculada ao nosso desempenho interno.

Estamos passando pela crise com razoável “espaço” para estimular a economia e assim mitigar os danos imediatos da crise. Porém, essa mitigação não significa que estejamos efetivamente realizando uma ampla política anticíclica e muito menos que tenhamos adotado ações estruturais para consolidar nossa competitividade e capacidade de crescer e dar melhores condições de vida para a nossa população (como bem mostraram, em estudo recente sobre a América Latina e a atual crise, José Fanelli e Juan Pablo Jimenez).

Nessa perspectiva, é preciso discutir como o Estado brasileiro e suas finanças estão absorvendo o impacto da crise e como ele poderá se posicionar no futuro pós-crise. Afinal, se há um agente perpétuo com influência entre gerações é o Estado. As opções possíveis e as decisões tomadas darão um rumo à ação do Estado brasileiro, com consequentes desdobramentos sobre a trajetória de crescimento e desenvolvimento do país.

A crise e a resposta do governo brasileiro

Como já identificado em várias análises sobre a atual crise, o seu surgimento não se deveu a políticas domésticas brasileiras. A crise tem sua origem na expansão desordenada do crédito internacional nos últimos anos, conjugada com uma falsa segurança sobre a qualidade de várias das operações que ensejaram aquela expansão. Ao se constatarem a incapacidade de pagamento de vários empréstimos e a falta de garantias para seu cumprimento, iniciou-se, movido pela incerteza, o processo de restrição do crédito em geral.

Para o Brasil, o canal inicial de transmissão da crise foi financeiro, com a diminuição do valor e a elevação dos custos das nossas operações de financiamento ao comércio exterior. Em seguida, a maior incerteza e a menor liquidez fizeram com que a crise penetrasse por outros canais financeiros, levando à venda de ações e de outros títulos brasileiros por parte dos investidores estrangeiros. Houve também, por esse mesmo canal, o incremento nas remessas de lucros e dividendos por parte das empresas multinacionais operando no país. Os bancos brasileiros não eram tão dependentes de crédito externo, como já foram no passado e agora o são os do Leste Europeu, os coreanos e os russos, mas frente à magnitude da crise internacional, os maiores bancos privados brasileiros adotaram um comportamento de mais cautela, restringiram as suas operações com bancos menores e com os setores mais vulneráveis à crise, especialmente aqueles que estavam em acelerado crescimento, como os de bens de consumo duráveis.

Política monetária e de crédito

O governo reagiu prontamente a esses impactos. Inicialmente, o Banco Central disponibilizou linhas de crédito para o exportador e até para empresas devedoras no exterior. Adotou também a posição de não segurar a taxa de câmbio, fazendo intervenções limitadas, como se estivesse não “subsidiando” a saída de capitais. Nas operações internas, o Banco Central reduziu o compulsório, facilitou a compra de carteiras e buscou recuperar a confiança nas operações entre os bancos.

Na mesma direção, para fazer frente à restrição de crédito, foram acionados os bancos federais, BNDES, Banco do Brasil, Caixa, e bancos regionais e, em alguns estados, como São Paulo, foram usadas agências de fomento. Houve uma diretriz clara dos governantes para que esses bancos mantivessem suas linhas de crédito e aplicassem as menores taxas possíveis em suas operações de empréstimo. Ademais, para viabilizar essa diretriz, o Tesouro Nacional aportou recursos para seus bancos e até mudou a direção de um deles. Ao longo do último ano, vários setores conseguiram linhas especiais dessas instituições financeiras, ampliando os mecanismos de acesso e garantias para as suas operações financeiras. O resultado desse movimento, até junho de 2009, foi um significativo diferencial entre as taxas de crescimento dos créditos dos bancos públicos em relação às dos bancos privados. Entre agosto do ano passado e junho de 2009, o crescimento das operações de crédito dos bancos públicos foi de quase 30%, ao passo que, nos bancos privados, não passou de 7,5%.

A expansão do tamanho dos bancos públicos, porém, requer atenção e precaução. Primeiro, as maiores operações de crédito realizadas depois da crise beneficiaram empresas estatais – ou, mais especificamente, o grupo Petrobras, inicialmente para capital de giro (para o que a empresa não recorreu ao setor privado, mesmo sendo a maior empresa do País) e, mais recentemente, para financiar a expansão de seus projetos de investimento. Para tanto, as autoridades monetárias flexibilizaram as atuais regras de prudência bancária e permitiram forte exposição a um só cliente, sob a alegação de interesses de Estado – referimo-nos, em particular, à exposição do BNDES à Petrobras. Segundo, muito da expansão do crédito público envolveu operações estruturadas – as mais notórias, para sanear as finanças de grandes empresas nacionais que muito perderam com as apostas no mercado de deri¬vativos cambiais. Se não fossem essas operações estruturadas, é provável que tais empresas até falissem. É preciso cuidado, porém, para não confundir essas operações de salvamento com aportes para investimentos produtivos. Mais importante, ainda, é saber até que ponto os bancos privados não aproveitaram a oportunidade para reduzir ou zerar a exposição a empresas ou seto¬res com grandes dificuldades e nos quais tinha concentrado crédito, e até mesmo capital, antes da crise. De certa forma, não há muita diferença entre o socorro prestado pelos bancos públicos brasileiros, diretamente direcionado às empresas, e aquele prestado pelos Tesouros e/ou pelos Bancos Centrais dos países mais ricos, destinados diretamente a instituições financeiras, para salvá-las.

Política fiscal: keynesianismo distorcido

Do lado da política fiscal, o Estado brasileiro utilizou vários instrumentos que deveriam compor uma estratégia anticíclica. Acompanhou o esforço dos outros países, porém com uma particularidade. Em sua maioria, as economias ricas europeias e as maiores emergentes, como a China, optaram por privilegiar a expansão das despesas públicas nos investimentos em infraestrutura – seguindo o que seria o receituário keynesiano mais tradicional. Economias ricas e com tradição liberal, caso típico da norte-americana, também utilizaram amplamente medidas para reduzir a tributação como meio de incentivar a economia. Qual foi o caminho escolhido pelo governo brasileiro? Vários podem imaginar que foi a expansão dos investimentos públicos, anunciada como prioridade do governo federal antes mesmo da crise (com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento – o PAC). No entanto, efetivamente, o gasto com investimento subiu menos que o anunciado e a despesa que disparou foi com o custeio da máquina pública.

A política fiscal pela via da tributação, reduzindo-a para alguns setores, mostrou-se mais eficaz que pela via do gasto. Com a redução de impostos, os setores de bens de consumo duráveis e material de construção puderam oferecer, quase na forma de liquidações, descontos para a colocação de seus produtos. Em vários casos, a vigência dessas medidas tem sido estendida. Isso tem criado movimentos de antecipação de consumo e, por essa razão, possibilitado a manutenção de níveis de produção superiores aos dos primeiros instantes da crise, embora ainda inferiores aos do período que a antecedeu. A produção de automóveis, por exemplo, atingiu em julho patamar 193% mais elevado que o observado em dezembro do ano passado, o pior mês da crise. No entanto, o resultado dos primeiros sete meses de 2009 ainda é inferior em 12% ao do mesmo período do ano passado.

Pelo lado do gasto, como dissemos acima, ao contrário do recomendado pela teoria e pelas experiências internacionais, a expansão não foi liderada pelos investimentos públicos, especialmente em infraestrutura. Parece que os governos do País perderam a capacidade de investir – ou ao menos na esfera federal, uma vez que, em 2008, os governos estaduais e municipais executaram diretamente três quartos dos investimentos fixos do setor público consolidado. Já o gasto de custeio do governo federal, que já vinha crescendo antes da crise, continua a crescer agora, apesar de uma certa desaceleração. O gasto da União com pessoal, em específico, manteve uma expansão real superior a 20% nos últimos doze meses até junho de 2009, enquanto os chamados “outros gastos em custeio e capital” cresceram 7%. Para o aumento do gasto de custeio em seu conjunto, contribuíram, ainda, o aumento do salário-mínimo, do número de prestações do seguro-desemprego e dos valores básicos do Bolsa Família.

O investimento privado não respondeu totalmente aos incentivos que a ação estatal ofereceu. O orçamento do BNDES foi ampliado e reforçado com um impressionante aporte direto do Tesouro Nacional – um crédito de R$ 100 bilhões, custeado por emissão de títulos (coincidentemente, o aporte direto foi decidido quando o Tesouro recebia R$ 183 bilhões do Banco Central pelo lucro obtido por este, no segundo semestre de 2008, com a desvalorização cambial). Uma parcela significativa desses recursos do BNDES foi aplicada na reestruturação das empresas privadas e na Petrobras – com o objetivo contratual de financiar seus projetos de investimento, mas, na prática, para cobrir possíveis insuficiências de caixa.

No campo tributário, pouco se avançou além das desonerações temporárias. Nem mesmo se aproveitou a crise para finalmente implantar a desoneração definitiva de bens de capital em relação ao IPI, ao COFINS/PIS e ao ICMS estadual. Essas medidas não precisariam de emenda constitucional (no caso dos tributos federais, poderiam ser adotadas por lei ordinária). Com o investimento fixo despencando no País, muito do consumo nacional foi atendido por um brutal movimento de queima de estoque.


A resposta estatal certamente contribuiu para evitar uma deterioração maior da renda, ao estimular vendas extraordinárias em certos setores, ao manter a renda tanto de grupos mais vulneráveis quanto de grupos de assalariados de maior renda, a exemplo do servidor público, e ao evitar a quebra de algumas importantes empresas nacionais.

No entanto, se o Brasil conseguiu sustentar e retomar o consumo, privado e público, o mesmo não se pode dizer da recuperação do investimento. Sem maior e melhor estímulo governamental para tal fim, o empresário não recuperou plenamente a confiança no futuro da economia, ao passo que o investimento estatal, que deveria liderar o início de novos projetos, obras e construções, permaneceu travado.

Em busca de uma nova trajetória de crescimento

Depois de quase um ano de enfrentamento da crise internacional, fica a questão: é possível identificar alguma mudança que favoreça a rota futura do desenvolvimento brasileiro?

O Brasil enfrentou a crise sem nenhuma reforma institucional. Destoamos do nosso passado e de outros países.

A década passada foi pródiga em crises, desde a superinflação até as sucessivas crises externas, e também em mudanças estruturais, desde a abertura da economia e a desestatização até a adoção do regime de câmbio flutuante, de metas de inflação e da lei de responsabilidade fiscal, fora a descentralização da educação e da saúde. O governo brasileiro, incluindo o atual, em 2003, valeu-se de cada onda de crise para aprovar no Congresso várias reformas institucionais, resultando em várias emendas constitucionais. Nos últimos anos, a bonança externa e o crescimento um pouco maior não estimularam a adoção de qualquer reforma digna de ser chamada de estrutural – ou seria o caso de dar esse nome à consolidação dos diferentes programas de transferência de renda no Bolsa Família? Nem com o estouro de uma crise global, das mais graves a que o capitalismo já assistiu, mudou-se tal tendência ao conservadorismo da inércia.

Não se vê aqui nada parecido com a estratégia do governo Obama, por exemplo, que eleva o gasto público norte-americano, mas, ao mesmo tempo, propõe reformas estruturais na educação, na inovação, no meio ambiente e na saúde – este último caso, uma questão política tão delicada quanto seria reformar a previdência brasileira. A China, por outro lado, implantou um programa ambicioso de investimentos em infraestrutura, cuja envergadura empalidece o PAC brasileiro.

Voltando à política macroeconômica, vale comentar a evolução de duas variáveis-chave, que concentram as críticas à resposta do governo à crise: a taxa de juros e a taxa de câmbio. A crise já tinha um trimestre quando o Banco Central iniciou o processo de redução da taxa de juros. E tinha seis meses quando o processo se tornou mais agressivo. Em julho, a taxa ¬SELIC chegou a seu menor valor nominal desde o Plano Real, de 8,25% ao ano. Permanecemos, porém, entre os países com as maiores taxas de juros reais do mundo, pois os demais países realizaram políticas de redução de juros muito mais agressivas. Manteve-se, de certa forma, a semente para as operações de arbitragem entre a taxa de juros brasileira e as dos demais países. Ao mesmo tempo, ainda que no menor nível real em termos históricos, a dívida pública brasileira teve o seu custo reduzido abaixo da redução observada em outros países, o que diminui o nosso espaço fiscal para atender aos gastos anticrise. Na taxa de câmbio, o Banco Central caracterizou-se por presença cautelosa tanto na subida da taxa, nos primeiros meses da crise, quanto na valorização recente do real. Um ano após a quebra do Lehman Brothers, a taxa de câmbio está praticamente no mesmo valor em que estava na época (R$ 1,86), depois de haver atingido R$ 2,50, no início de dezembro de 2008. Essa volatilidade mostra que ainda subsiste certa vulnerabilidade em nossas contas externas, apesar da manutenção, em valores quase constantes, de nossas reservas internacionais ao longo de todo este ano.


O que mudou na economia brasileira desde o início da crise? Evidente que houve uma ampliação da presença das políticas públicas, tanto por ações diretas do Banco Central e do Tesouro quanto por meio dos bancos públicos, que constituem o principal instrumento do Estado para o financiamento de reestruturações e novos investimentos. Por outro lado, o setor privado tem demonstrado muita cautela. De início, buscou ajustar-se e reavaliar a sua capacidade produtiva. O ritmo e o perfil setorial da retomada dos investimentos privados, que mal se esboçou, será crucial para a evolução do emprego e dos salários no futuro. E afetará, também, a trajetória futura da receita pública, já que ela é sensível ao perfil da produção doméstica.

O futuro do setor produtivo

O setor-chave para analisar possíveis mudanças na trajetória brasileira é a indústria. Depois de um tombo da produção e do emprego industriais ao primeiro impacto da crise (12% no mês de dezembro de 2008, em termos dessazonalizados), assiste-se a uma recuperação lenta e desigualmente distribuída entre os segmentos do setor (mais intensa em bens de consumo, menos em bens de capital), além da persistência de grandes dificuldades para as exportações industriais. Simultaneamente, a entrada de produtos importados tem-se ampliado. Se o Brasil vier a crescer mais, como se espera, do que o resto do mundo, dada a atual direção da taxa de câmbio, esta tendência deverá continuar, pois seremos alvo de muitos produtores buscando mercados e oferecendo preços competitivos.

O desafio que se desenha é semelhante ao que a indústria brasileira enfrentou tanto na abertura da economia, no final dos anos 1980, como nos anos iniciais do Plano Real. A resposta do setor foi reagrupar-se, racionalizando linhas e buscando ganhos de produtividade, que foram cruciais para atravessar os períodos de valorização da taxa de câmbio. Ocorre que agora, à diferença dos dois episódios citados, a reação se impõe em tempo mais curto – o que se contava em anos agora se conta em meses – e o ajuste tem de ser feito sem o apoio das matrizes, no caso das empresas multinacionais, pois foi em seus países-sede que a crise se instalou de forma mais grave. Assim, a nova trajetória da indústria terá que ser traçada pelas unidades locais e num ambiente de maior disputa por mercados com as filiais em outros países.


Por sua vez, o setor de commodities, tanto agrícolas quanto minerais, volta lentamente a despontar como o mais dinâmico na economia brasileira, com o aumento gradual dos volumes de produção e dos preços internacionais. Essa tendência não deverá alterar-se, especialmente se o ritmo de crescimento chinês se mantiver em patamares razoáveis. O setor sairá bem da crise, embora alguns grupos nacionais tenham sido atingidos por operações financeiras desastrosas, com derivativos, e não se projete rentabilidade comparável à obtida nos anos prévios à crise.

Outra característica do cenário pós-crise é o reconhecimento do mercado interno como componente principal para o crescimento da economia brasileira. Esse era um fato óbvio, mas antes as análises e recomendações privilegiavam o setor externo, como indicador da qualidade do crescimento. O mercado interno já vinha demonstrando a sua relevância, pela incorporação de novos consumidores, bem como pelo aumento do poder de compra dos que nele já estavam incorporados, ambos os processos resultando em estímulo ao investimento. Na crise, por vários mecanismos, os consumidores conseguiram resistir a ajustes em seus orçamentos. E, a julgar pelo comportamento das compras, continuam a apostar na recuperação da economia e na manutenção e crescimento de sua renda. Os dados parecem corroborar essa aposta: em que pesem a menor geração de empregos e mesmo o aumento inicial do desemprego, os reajustes salariais no primeiro semestre de 2009 foram superiores à inflação em 77% das negociações realizadas, um percentual superior aos 72% do mesmo período de 2008.

A possível crise do governo pós-crise

As finanças públicas brasileiras fragilizaram-se com a crise. A queda na receita e o aumento dos gastos implicam uma maior necessidade de endividamento público. A dívida mobiliária emitida aumentou 11,6% entre setembro de 2008 e junho de 2009, ou cerca de R$ 190 bilhões. Desse incremento, 59% foram absorvidos pela carteira do Banco Central para lastrear as operações compromissadas, que são operações de curtíssimo prazo voltadas a retirar ou injetar liquidez no mercado (estas aumentaram 43% no mesmo período, alcançando, em junho de 2009, uma média diária de R$ 397 bilhões e um total equivalente a 22% de todos os títulos emitidos). Esse valor indica que os financiadores da dívida pública ainda se mantêm em posição de cautela em relação a operações de maior prazo, dando preferência a uma liquidez maior.

Nos gastos públicos, cresce a rigidez de seus valores e de sua estrutura como consequência do incremento dos gastos correntes (aqui não entraremos no debate sobre a eficiência de programas de investimento como o PAC). O gasto com pessoal aumentou 19% nos primeiros sete meses de 2009 em comparação com igual perío¬do de 2008. E a tendência para 2010 é de nova expansão, por força da entrada em vigor de novas etapas dos acordos salariais firmados com categoriais do funcionalismo público. Há quem preveja novos aumentos também em 2011, como reflexo desses acordos. Ademais, o governo manteve grande parte dos concursos programados e não completou a regulamentação da reforma da previdência do setor público, aprovada há cinco anos. O gasto com pessoal terá, assim, uma trajetória crescente, absorvendo parte importante de qualquer recuperação da arrecadação e/ou impondo limitações ou cortes em outras áreas, como os investimentos ou mesmo os programas sociais. O atual governo tem uma proposta que limita a expansão do gasto com pessoal. Ela, porém, está em lenta tramitação no Congresso Nacional, em busca de estímulos para avançar. Essa evolução do gasto com pessoal lembra a inflexão ocorrida em 1995, quando uma série de decisões, tomadas sob a hipótese de que a inflação corroeria os aumentos nominais de salários, levou a uma mudança significativa no patamar dos gastos com pessoal, exigindo um rigoroso controle dessa despesa nos anos posteriores.

Com relação a outros gastos correntes, pode-se dizer que estão com suas trajetórias predeterminadas. É o caso de despesas com benefícios da previdência, sobre os quais há a aplicação da regra do aumento do salário-mínimo, dos programas de transferência de renda, com seu histórico de indexação, dos programas de saúde e
de educação superior etc. Além desse conjunto de pressões, deve-se levar em consideração, ainda, que os gastos programados em investimentos atingirão um pico nos próximos anos, gerando um enorme desafio para a gestão das contas públicas.


Com grande probabilidade, os gestores fiscais nos próximos anos deverão confrontar-se com a responsabilidade de controlar os gastos e recuperar a receita. As experiências de ajuste fiscal no Brasil podem ilustrar as opções futuras. A primeira é apresentar um conjunto de ações ou um pacote visando maior arrecadação e corte de gastos. Por exemplo, no final de 1997, quando da crise asiática, foi lançado o conjunto de 51 medidas fiscais com vista ao controle do gasto. A melhoria do cenário exterior, mesmo tênue, e o pouco interesse político logo levaram quase todas as medidas de controle do gasto ao esquecimento. Foi necessário um quadro de crise externa e interna, ainda mais grave, um ano depois, para que o governo tivesse condições políticas de adotar uma política fiscal voltada à geração dos superávits fiscais necessários para o controle do endividamento público.

A segunda opção é fazer um controle direto na boca do caixa do Tesouro, revivendo os “Mr. No”, se houver apoio irrestrito do ministro da Fazenda e do próprio presidente da República. Os resultados fiscais na virada do Plano Real e no primeiro ano do governo Lula são exemplos dessa opção, mas há um requisito para o sucesso dessa estratégia, qual seja, a ocorrência de uma taxa de inflação suficiente para corroer o valor nominal das dotações orçamentárias. Por último, a opção mais amigável é o rápido crescimento das receitas conjugado com uma posição de austeridade no lado dos gastos. A gestão fiscal recente em vários estados adotou essa opção para melhorar os resultados orçamentários e financeiros.

Há um ponto que distingue o momento atual das situações anteriores, no que toca ao ajuste ou controle fiscal: a rolagem e o custo da dívida pública. A virada fiscal do final dos anos 1990 deu-se num cenário em que estavam em xeque o financiamento do balanço de pagamentos e da dívida pública. Exigiam-se, pois, uma elevação da taxa de juros doméstica, para conter pressões sobre a taxa de câmbio, e um maior superávit fiscal primário, para estabilizar a relação dívida/PIB, uma combinação de políticas vista como necessária para restabelecer a confiança nas contas externas e públicas do País. Hoje, a pressão que havia já não existe mais. O financiamento externo encontra-se respaldado por elevadas reservas em divisas e a dívida pública não está em trajetória explosiva. Mas, como apontamos, ainda há fragilidades nas finanças públicas, especialmente com a queda da receita e a importante presença de operações de curtíssimo prazo nos títulos.

Uma incógnita é se o reconhecimento da necessidade do controle só ocorrerá se e quando atingirmos situações críticas, como é parte da tradição brasileira, ou se acontecerá antes. O fortalecimento institucional de várias áreas governamentais consolidou corpos técnicos competentes para identificar com antecedência ameaças às contas públicas, bem como alertar sobre elas e propor medidas que mitiguem os seus danos. Porém a decisão final é sempre política. E a aproximação de um ano eleitoral não estimula posições mais ousadas. No curto prazo, há propostas em andamento, mas elas se restringem ao aumento da carga tributária, como a tentativa de ressuscitar a CPMF.

A “volta” do conflito distributivo

Em meados de 2009, a economia voltou a crescer puxada pela demanda doméstica, especificamente o consumo (porque o investimento ainda não se recuperou). Os consumidores brasileiros estão mantendo seus planos de compras utilizando as possibilidades de financiamento e as vantagens de preços oferecidas, o que se aplica tanto a produtos produzidos internamente quanto a importados. O crédito dos bancos públicos mostrou-se decisivo para sustentar esse comportamento do consumidor – inclusive para aquisição de veículos e moradias. O governo, por sua vez, tem mantido uma política fiscal expansionista, com aumento do gasto público, especialmente o gasto corrente, e diminuição do superávit primário. Em tese, impulsionada pelo crédito e pelas promessas de novos programas governamentais, a construção civil para habitação sustenta praticamente sozinha o investimento, já que a produção interna e a importação de bens de capital ainda não se recuperaram das drásticas perdas sofridas com a crise. As exportações se ressentiram da queda na demanda externa, mas as commodities conseguiram ganhar fôlego.

Olhando o futuro imediato e de prazo mais longo, volta a ganhar destaque uma questão que esteve no centro do debate no período da inflação alta e que ficou esmaecida nos últimos quatro anos de bonança externa. Trata-se da disputa entre os vários setores da sociedade por fatias do “bolo” econômico, especialmente sobre o “excedente” gerado. Falamos do conflito distributivo.

Numa economia com crescimento mais restrito e sem uma ampla liquidez internacional para acomodar novas demandas, a disputa sobre a alocação do excedente (consumo ou investimento) e sobre quem vai gerir a alocação do excedente (Estado ou setor privado) tornar-se-á cada vez mais evidente. O retorno a um quadro inflacionário parece pouco provável, o que elimina a possibilidade de o “mercado” alocar perdas entre os setores.

Nesse cenário, serão as denominadas variá¬veis reais (emprego, produção, produtividade etc.), além dos instrumentos básicos da política econômica (tributação, taxa de câmbio e taxa de juros), que decidirão quais serão os grupos e setores que poderão desfrutar dos ganhos. Será um bom teste para a nossa democracia realizar essa arbitragem. E para o governo pós-crise, administrá-la.


É economista do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a serviço do Senado Federal.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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