01 abril 2009

O Brasil Frente à Crise Global

Para discutir as possíveis trajetórias da economia brasileira, analisa-se, inicialmente, a posição do Brasil na geografia econômica contemporânea. Em seguida, destacam-se alguns aspectos particulares da inserção brasileira em comparação com outros países asiáticos e latinoamericanos. Por fim, discutem-se as características do crescimento recente e da crise atual e as possibilidades e limites de realização de uma política anticíclica de envergadura.

À medida em que se aprofunda a crise global, o tema da sua natureza e das medidas para combatê-la ganha cada vez mais urgência. Já não restam dúvidas a respeito da sua intensidade, pois ela é de longe a maior crise do capitalismo na era da globalização. As perdas dela decorrentes – medidas pela desvalorização de ativos – já alcançam o valor de us$ 2,2 trilhões. Em paralelo, a trajetória de economias particulares, em especial das emergentes, também tem-se convertido em questão relevante. Após um primeiro momento no qual se imaginou, equivocadamente, que essas economias poderiam descolar-se da evolução das economias desenvolvidas, o debate se centrou com mais propriedade nas possíveis trajetórias diferenciadas dessas economias a partir de suas especificidades. Esse artigo se preocupa em examinar essa questão com ênfase no caso brasileiro. 


Para discutir as possíveis trajetórias da economia brasileira, analisa-se, inicialmente, a posição do Brasil na geografia econômica contemporânea, entendida esta última como a estruturação de elos dinâmicos a partir da economia mais importante, a americana. Em seguida, destacam-se alguns aspectos particulares da inserção brasileira comparativamente a outros países asiáticos e latino-americanos. Por fim, discutem-se aspectos conjunturais da economia brasileira com ênfase no ciclo recente, destacando as características desse crescimento e as possibilidades e limites de realização de uma política anticíclica de envergadura.


Os elos dinâmicos

A constatação de que a economia e o comércio mundiais cresceram a taxas significativas no período da globalização, e com mais vigor ainda entre 2003 e 2008, não deve obscurecer o fato de esse crescimento ter sido, ao contrário do período de Bretton Woods, um crescimento divergente. Ou seja, ele não atinge com intensidade semelhante todas as regiões e países. Por exemplo, os Estados Unidos crescem muito mais rápido do que a Europa Ocidental e o Japão, respectivamente 3,5%, 2,5% e 2% ao ano no período de 1980 a 2006. Na periferia, a Ásia em desenvolvimento cresce a mais do que o triplo da taxa da América Latina, ou seja, 8,2% ao ano, contra 2,5% ao ano no mesmo período . Subjacente a esses dados está a constituição de relações dinâmicas e hierarquizadas da economia global, cujo primeiro elo esteve constituído pelas economias americana e chinesa; o segundo, pela articulação intrarregional na Ásia; e o terceiro, pelos vínculos entre essa última região e aquelas produtoras de matérias-primas, entre elas a América Latina.
A desregulação do sistema financeiro americano e a crescente importância dos mercados de ativos negociáveis engendraram um padrão particular de crescimento da economia dos Estados Unidos, no qual o gasto privado, de consumo e investimento, perdeu as conexões imediatas com os rendimentos, adquirindo uma crescente correlação com o valor dos patrimônios formados pela riqueza mobiliária e imobiliária. O ciclo de preços desses ativos, ancorado na expansão do crédito e na liquidez desses mercados, permitiu essa desconexão. Foi o aumento da riqueza que estimulou o endividamento das famílias e empresas para realizar esses gastos, ao criar a ilusão de ganhos patrimoniais permanentes mesmo com endividamento crescente.


Os dados da Tabela 1 ilustram o processo: observa-se, até meados de 2007, um crescimento significativo dos ativos e das obrigações das famílias, resultando num acréscimo da sua riqueza líquida. O processo se detém a partir do terceiro trimestre de 2007, quando se constata a manutenção do montante do endividamento com queda do valor dos ativos e, portanto, uma redução da riqueza líquida. Para as corporações não financeiras o processo é semelhante, embora atenuado.


O crescimento da demanda nominal resultante dessa forma de operação da economia foi um dos mais rápidos da história americana e, por não ser acompanhado de um ritmo equivalente de aumento da oferta, engendrou elevados e recorrentes déficits em transações correntes. Ancorados nos privilégios da moeda reserva, os Estados Unidos puderam crescer recorrendo a permanentes e elevados déficits externos. Ademais, a ampliação da demanda nominal nos EUA serviu de estímulo para um grande número de países. O Gráfico 1 ilustra esse movimento. Destes países, o que provavelmente mais se beneficiou desse impulso foi a China. Não só por suas altíssimas taxas de crescimento, acima de 10% ao ano, mas também pela capacidade de realizar uma transformação na sua estrutura produtiva num movimento de catching up.


Dificilmente os EUA conseguirão recuperar o ritmo de crescimento pregresso a despeito da ação governamental anticíclica de grande envergadura cujo valor está estimado em 8% do PIB. Esta terá de dar conta de dois problemas simultâneos: evitar uma desvalorização ainda mais radical da riqueza financeira, o que ampliaria os desequilíbrios patrimoniais de famílias e empresas, tendo para isso que substituir títulos privados por títulos públicos no portfólio dos agentes relevantes e assegurar, via déficit público, um patamar de gasto capaz de manter um nível mínimo do crescimento da renda. Dada a desproporção entre os componentes da demanda agregada e o peso decisivo do consumo, numa hipótese otimista é possível imaginar uma perda mais duradoura do dinamismo sem a ocorrência de uma grande depressão.


Diante da desaceleração do crescimento americano a China terá de buscar na demanda doméstica e no segundo elo dinâmico, a integração asiática, os estímulos para manutenção do crescimento. As modificações recentes, como, por exemplo, a valorização do yuan, a mudança na legislação trabalhista e previdenciária e o programa anticíclico fundado no investimento vão nessa direção. Contudo, o baixo nível de renda per capita da China é um fator estrutural limitante dessa substituição. Quanto à integração asiática, para que ela se torne fator dinâmico para o crescimento, a China terá de compensar, pelo menos em parte, a perda de superávit chinês com os EUA por meio da redução do seu déficit com o restante da Ásia. Para minimizar os desestímulos sobre os demais países da região, teria que haver um aprofundamento da integração com aumento substancial da corrente de comércio intrarregional.


É necessário ressaltar que poucos países têm hoje, no mundo, tanto raio de manobra para realizar uma política de manutenção de crescimento quanto a China. Seu saldo em transações correntes está em torno de us$ 400 bilhões e possui reservas internacionais da ordem de us$ 2 trilhões, configurando uma sólida posição de balanço de pagamentos. A capacidade de direcionar gastos produtivos e financiamentos por meio de uma rede de empresas e bancos públicos e semipúblicos também constitui, no atual momento, uma inegável vantagem.


As prováveis dificuldades de preservação do crescimento no primeiro e segundo elos dinâmicos terão implicações significativas para a situação da periferia produtora de matérias-primas, em particular para a América Latina, que se defrontará com menor crescimento da demanda e um patamar de preços inferior das commodities. A situação pode ser amenizada pela manutenção de um crescimento substancial na Ásia. Isso quer dizer que tanto a redução do impulso externo quanto a restrição de divisas voltarão a se colocar com intensidade para essa região. Mesmo que seja possível contar com o maior dinamismo do mercado interno, em países como o Brasil, essa última restrição constituirá um óbice à preservação do crescimento. A contração do financiamento externo resultante do esgotamento do ciclo de liquidez poderá torná-la mais drástica dependendo da posição particular de cada país. Em relação a este último ponto, não há lugar para otimismos infundados: as previsões generalizadas apontam para uma drástica redução dos fluxos líquidos de capitais para a periferia.


Tomem-se como exemplo as previsões do Institute of International Finance, uma associação de instituições financeiras em âmbito global, que são bastante pessimistas, como se pode ver na Tabela 2. Considerados os fluxos líquidos privados nas suas várias formas, a expectativa é de que em 2009 eles retornem para um patamar ligeiramente superior ao ano de 2002, que marca o vale do ciclo de liquidez. E esse patamar só será viável em razão do desempenho do IDE, pois as demais formas terão valores negativos. O cenário torna-se ainda mais dramático se incluirmos os fluxos de capitais de residentes que se dirigem para o exterior. Com essa inclusão, os fluxos totais de capitais líquidos para os emergentes caem a 1⁄10 do seu valor em 2008 e tornam-se negativos em 2009.

Aspectos estruturais da economia brasileira


A economia brasileira possui importantes semelhanças com as demais da América Latina, mas suas diferenças são tão ou mais importantes. Tal qual essas economias, a sua inserção na economia global privilegiou o canal financeiro ao invés do produtivo. Assim, por exemplo, não participou de maneira intensa do processo de outsourcing das grandes empresas multinacionais nos segmentos de maior intensidade tecnológica, como ocorreu na Ásia em desenvolvimento. Apesar disso, o tamanho da economia brasileira fez com que ela recebesse um volume significativo de Investimento Direto Estrangeiro cujo objetivo foi a exploração do mercado local e regional. Localizando-se em setores tradicionais e produtores de bens e serviços não-comercializáveis, o impacto desse último na transformação da estrutura produtiva (catching up) e na mudança da pauta de exportações direcionada ao mercado global foi pouco expressivo.


Como se vê na Tabela 3, a partir da abertura da economia brasileira e das privatizações, nos anos 1990, o IDE dirigiu-se de forma mais significativa para o segmento de serviços com destaque para as Telecomunicações e Intermediação Financeira. Contudo, uma particularidade da economia brasileira quanto ao IDE é o seu ainda significativo peso na indústria e sua contribuição à mudança do padrão de comércio intrarregional. A atração de IDE, por conta do amplo mercado brasileiro, levou a uma ampliação do peso das manufaturas de baixa e média tecnologias direcionadas aos mercados regionais, em particular da América do Sul. Essa característica é importante, pois tornou o mercado regional de manufaturas um mercado crucial para as empresas localizadas no Brasil. Entre 2003 e 2008, o peso da Aladi como destino das exportações brasileiras ampliou-se de 17,7% para 21,7%. Quanto ao Mercosul, o aumento da importância foi ainda maior, passando de 5,5% para 10,5% do total.


A ausência de uma política industrial, combinada com um rápido processo de abertura comercial e recorrentes episódios de apreciação da moeda, levou a uma especialização regressiva da estrutura industrial brasileira, fazendo-a perder, em larga medida, o segmento de alta tecnologia e a indústria de bens de capital. Ou seja, ampliou-se substancialmente o peso das indústrias processadoras de recursos naturais e daquela de baixa tecnologia (ver Gráfico 2). Apesar disso, ao contrário da maioria dos países do Cone Sul, o Brasil logrou manter uma participação razoável da indústria no PIB. No conjunto da indústria, todavia, têm um peso reduzido as indústrias de média e alta intensidade tecnológicas, setores nos quais se observa um crescente déficit comercial.


Um terceiro aspecto diferencial da economia brasileira refere-se ao peso do Estado na economia. O Brasil, tanto quanto os demais latino-americanos, realizou um amplo processo de privatização, mas excluindo alguns setores, ao menos parcialmente. Assim, a área de energia é dominada por duas grandes corporações estatais, a de petróleo pela Petrobrás e a de energia elétrica pela Eletrobrás, essa última com recuperação de seu papel nos anos 2000, após o malogrado processo de privatização. Na área financeira, os bancos públicos detêm uma parcela expressiva dos ativos totais, cerca de 1⁄3 e, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, concentram a quase totalidade dos financiamentos de longo prazo. Há ainda um expressivo direcionamento do crédito do setor privado, por meio das exigibilidades, contemplando os setores agropecuário e imobiliário.


Outra característica estrutural da economia brasileira, compartilhada com a maioria das latino-americanas, refere-se à deterioração da infraestrutura. Dado o peso que o setor público ocupa nesse setor, essa deterioração esteve intimamente associada ao declínio do investimento público na região e no país. No caso brasileiro, há três momentos distintos desse processo de declínio: os anos 1980, marcados pela crise da dívida externa, ao longo dos quais o setor público, em sentido amplo, perde capacidade de investimento em razão dos encargos dessa dívida; os anos 1990, até pelo menos 1998, quando os processos de privatização em vários setores praticamente paralisam o investimento público, sem que venham a ser adequadamente substituídos, exceto pelo segmento de telecomunicações e outros muito particulares, pelo investimento privado (ver Gráfico 3); os anos a partir de 1998, quando um ajuste fiscal de grande magnitude, da ordem de 3,5% a 4% do PIB, impede a retomada dos investimentos públicos, que começam a se recuperar generalizadamente apenas em 2004.


A política anticíclica: possibilidades


Para discutir os contornos e possibilidades da política anticíclica no Brasil convém delinear os principais traços do ciclo recente. A aceleração do crescimento, com taxas próximas aos 5% ao ano no período 2004–2008, ocorreu num contexto internacional extremamente favorável para os países emergentes. Para a grande maioria dos países latino-americanos, a combinação entre o auge do ciclo de preços de commodities – cujo índice geral quadruplica entre 2003 e 2008 – com a queda drástica do premio de risco – cujo valor médio cai de 1400 para 200 pontos-base no mesmo período –, além de estimular o crescimento via demanda externa, praticamente eliminou a restrição externa.


O Brasil se favorece desse contexto de maneira distinta da América Latina. Dada a composição de suas exportações, nas quais produtos básicos e manufaturados têm peso semelhante, obteve ganhos de relações de troca de cerca de 15% entre 2002 e 2008,um pouco inferiores ao valor observado para a região, de 20%. Por outro lado, beneficiou-se indiretamente por ser um exportador de manufaturas para a América Latina, cuja capacidade para importar se ampliou substancialmente no ciclo recente. A Tabela 4 ilustra a importância dos ganhos em termos de troca, bem como seu caráter diferenciado: no topo dos ganhadores, estão os países exportadores de petróleo e de minerais, ao passo que os exportadores de produtos agrícolas (Argentina) ou onde os manufaturados têm mais peso (Brasil e México) apresentam ganhos menores.


A trajetória do comércio exterior brasileiro e a preservação do saldo comercial dependem de vários fatores, como o desempenho da economia global, mas também do crescimento de algumas regiões particulares, como é o caso da Ásia. A manutenção de uma taxa razoável de crescimento nessa região pode sustentar a demanda e os preços de commodities num patamar capaz de transmitir algum dinamismo para as economias latino-americanas produtoras de matérias-primas, favorecendo direta e indiretamente o Brasil.


Um aspecto também decisivo da inserção comercial diz respeito à posição da taxa de câmbio real efetiva. A sua trajetória recente foi muito desfavorável à exportação de manufaturados, pois do início de 2003, quando o real estava mais desvalorizado, ao final de 2007, ela sofreu uma apreciação de cerca de 40%, apenas parcialmente compensada pela desvalorização de aproximadamente 10% no período mais recente. Essa trajetória da taxa de câmbio suscita o tema da absorção de capitais, pois uma parcela expressiva dessa apreciação ocorreu num quadro de déficit em transações correntes, após 2007 (Gráfico 4).


O financiamento externo, para além das necessidades de conta corrente, tem determinantes distintos: uma parte dele, representada pelo IDE, está associada ao ciclo de expansão e representa a forma predominante de absorção de recursos entre 2003 e 2006. A partir de 2007, coincidentemente com a perda do superávit em transações correntes, as formas predominantes passam a ser o Investimento em Carteira e Outros. Nestas duas últimas rubricas, o financiamento externo tem natureza especulativa, pois seus determinantes são as arbitragens com taxa de juros e câmbio e os ganhos patrimoniais na Bolsa de Valores, principalmente em empresas exportadoras de commodities.
A posição do Balanço de Pagamentos suscita duas ordens de questão: a primeira, relativa ao tamanho do déficit em transações correntes e a disponibilidade dos agentes privados em financiá-lo. Diante da expectativa de redução dos fluxos líquidos para os emergentes, haveria duas opções: manter o déficit e obter seu financiamento ao se diferenciar dos demais, ou reduzi-lo. A segunda questão refere-se ao curto prazo. Para fazer frente à volatilidade dos fluxos de capitais especulativos e também às bruscas flutuações dos fluxos de financiamento o Brasil dispõe de um montante razoável de reservas: cerca de us$ 200 bilhões. Em princípio, é possível com esse montante garantir maior estabilidade ao financiamento e à taxa de câmbio diante de problemas de liquidez. Mas, nesse caso, é necessário também atentar para algumas vulnerabilidades particulares do Brasil, como a magnitude do passivo externo bruto (us$ 1 trilhão), e sua parcela de curto prazo, bem como para a hipertrofia do mercado de derivativos.


Os dados da Tabela 5 ilustram a vulnerabilidade externa de curto prazo da economia brasileira por meio da evolução do seu passivo externo. Entre 2005 e 2008, o passivo total dobrou, destacando-se o aumento dos investimentos em carteira cujo montante superou os us$ 500 bilhões. Se somarmos a eles os Outros Investimentos, temos uma expressiva parcela do passivo, de cerca de 2⁄3 do total, com maior mobilidade e que pode pressionar com mais intensidade as contas externas. Embora parte desses investimentos possa ser caracterizada como de longo prazo, não estando sujeitos a saídas abruptas, foi inegável a deterioração da qualidade do passivo externo após 2005.
Do ponto de vista das fontes de crescimento, o Brasil se diferencia do restante da América Latina em razão da importância da demanda doméstica. No ciclo recente, a demanda externa foi perdendo relevância entre 2004 e 2006 e tornou-se negativa em 2007 e 2008, exatamente no período de maior aceleração do crescimento. A razão positiva para este desempenho foi o rápido crescimento do consumo das famílias e das inversões. O aspecto negativo foi o aumento mais rápido das importações ante as exportações num quadro de valorização do real.


Vários fatores alimentaram o aumento do consumo, tais como a duplicação do crédito concedido às famílias – que passou de 5% para 10% do PIB – e o crescimento simultâneo do rendimento real e do emprego, o primeiro muito influenciado pelo aumento real do salário mínimo. No caso dos investimentos, assistiu-se à sua progressiva aceleração – alcançando uma taxa de crescimento anualizada de 20% a.a. nos últimos trimestres de 2008 – num primeiro momento vinculado aos grandes projetos exportadores, mas com crescente disseminação pelo conjunto dos setores produtivos.


Dos fatores que sustentaram o ritmo acelerado de crescimento da demanda agregada nos últimos três anos, é possível prever a desaceleração, mas não necessariamente a queda, do componente doméstico privado, ou seja, do consumo e do investimento. Os fatores de sustentação não são desprezíveis. No caso do consumo, em primeiro lugar, a possibilidade de manutenção do crescimento do crédito, mesmo a um ritmo inferior, para o que os bancos públicos podem desempenhar um papel relevante tanto na concessão direta quanto na indução do setor privado. Outro fator relevante para o consumo será a política salarial consubstanciada na indexação do salário mínimo à variação nominal do PIB do ano anterior, a qual terá efeito bastante expansivo em 2009. Quanto ao investimento, as indivisibilidades dos grandes projetos privados, associadas à disponibilidade de financiamento, ancorada no reforço do orçamento do BNDES, bem como a ampliação do investimento público em infraestrutura, podem garantir se não a continuidade do ritmo anterior, pelo menos a preservação de um ritmo razoável.


Um componente da demanda agregada cujo peso se acentuará inexoravelmente é o superávit primário do setor público. Seu valor nos últimos três anos tem-se mantido por volta dos 4,0% do PIB. A meta do Governo para 2009 é de 3,8% do PIB. Ademais, está prevista a redução de 0,5% do PIB associada à ampliação do investimento pela via do Projeto Piloto de Investimento – PPI. A esses recursos pode ser acrescido o aporte ao fundo soberano, correspondente a 0,5%. No total, portanto, o gasto público pode ampliar-se em cerca de 1,2% do PIB. Essa política expansiva pode ser em parte anulada pela queda cíclica das receitas, exigindo uma redução ainda maior do saldo primário. Cabe assinalar que, comparativamente a países desenvolvidos, a ação fiscal não tem grande envergadura, e pode ser ampliada. Ademais, no caso brasileiro, ao contrário da maioria dos países da América Latina, o gasto público pode ser ampliado com maior qualidade, por meio do investimento público em infraestrutura, em razão da existência do Programa de Aceleração do Investimento (PAC).


A dimensão mais imprevisível e de maior volatilidade na composição da demanda agregada no Brasil se refere ao setor externo. É certo que, se for conseguida uma mudança nas relações entre taxas de crescimento de exportações e importações, o superávit pode-se manter. Um taxa de câmbio mais competitiva, como a que resultou da desvalorização do real no último trimestre de 2008, pode facilitar a tarefa. Mas aqui as incertezas são muitas, como, por exemplo, o ritmo de crescimento global e regional, em especial para a Ásia em desenvolvimento, e sua transmissão para a América Latina.

Conclusões


Se considerarmos que a atual crise imporá como condicionantes para o crescimento, pelo menos num horizonte imediato, uma menor dependência do gasto privado, decidido ou financiado pelos mecanismos de mercado, e ainda, uma menor dependência do comércio internacional, o Brasil possui uma situação peculiar e vantajosa comparativamente a outros países emergentes. De um lado, ainda conta com setores estratégicos nos quais é expressiva a participação do setor público, como, por exemplo, bancos e energia. De outro, depende menos da demanda externa em razão do seu amplo mercado interno e menor grau de abertura.


O somatório de fatores estruturais com aqueles relativos ao quadro macroeconômico indica aspectos positivos e negativos. Em tese tem-se a possibilidade de realização de políticas anticíclicas de envergadura a partir de um superávit primário relativamente alto e um patamar de dívida pública relativamente baixo, ao redor de 35% do PIB. Amplia esse raio de manobra o fato de o Brasil ainda possuir uma taxa nominal de juros elevada – em torno de 13% ao ano – o que permitirá, por sua redução, o aumento do espaço para o gasto público.


No âmbito da inserção externa, o raio de manobra é muito mais limitado. Em primeiro lugar, porque o Brasil já entrou na crise com uma frágil posição em transações correntes – um déficit de 1,5% do PIB – resultante da apreciação significativa da sua moeda no período 2003–2008. Manter a economia crescendo diante da desaceleração global certamente implicará a elevação desse déficit. O seu financiamento, todavia, não está assegurado.
O aspecto mais preocupante da situação externa brasileira diz respeito a seu elevado grau de abertura financeira. Mesmo que não seja realista pensar numa evasão maciça de capitais, uma intensificação da volatilidade dos fluxos pode introduzir na economia brasileira um clima de incerteza radical oriundo de flutuações exacerbadas das taxas de câmbio e de juros, comprometendo o ambiente de crescimento.

Notas

1. Para uma análise abrangente dos processos de convergência e divergência no período da globalização ver A. C. Macedo e Silva, “A Montanha em Movimento: Uma Notícia sobre as Transformações Recentes da Economia Global”, em R. Carneiro,A Supremacia dos Mercados e a Política Econômica do Governo Lula, São Paulo: Editora da Unesp, 2007.



É professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e Coordenador da Cátedra Celso Furtado na Universidade Complutense de Madrid.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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