O Brasil Pós-Eleições: Os Desafios da Macroeconomia
O Brasil que chega às eleições de 2010 é completamente diferente daquele que foi às urnas em 1989, nas primeiras eleições diretas para presidente da República no período pós-regime militar. Naquela ocasião, o País estava às portas da hiperinflação, que era mantida sob controle quase que exclusivamente pela expectativa de que um novo governo fosse capaz de recolocar a economia nos eixos. O Brasil tinha uma economia minuciosamente regulada pelo Estado e em grande medida fechada ao comércio e investimento externos. Sua capacidade de crescimento era tolhida pela queda da produtividade e pela falta de investimentos em setores-chave, dominados por empresas estatais cuja saúde financeira fora comprometida por má gestão e controles burocráticos diversos.
Nesse meio tempo, o Brasil adotou uma ampla gama de reformas, a mais importante das quais o Plano Real, que trouxe a taxa de inflação para patamares civilizados e ali a manteve desde então. Como parte desse processo, promoveu-se uma significativa abertura comercial, eliminando barreiras não-tarifárias e reduzindo-se os impostos sobre as importações; privatizaram-se mais que uma centena de estatais, incluindo os setores de telecomunicações e ferroviário, além de portos, rodovias e empresas de eletricidade; e se fez uma abrangente reforma regulatória, não só pela criação de agências reguladoras, mas também com novas regras no sistema financeiro, mudanças no Código de Processo Civil, a criação da Lei das Falências, etc. Com as reformas vieram a maior estabilidade econômica, um significativo aumento da produtividade e taxas de crescimento mais elevadas. As reformas e a baixa inflação também trouxeram benefícios importantes em termos de melhoras na distribuição de renda.
A crise internacional de 2008-2009 deixou claro o quanto o Brasil mudou e como as reformas dessas duas décadas fortaleceram nossa economia. Em que pese a forte contração do último trimestre de 2008 e do primeiro de 2009, o nível de atividade se recuperou com rapidez, e 2010 deve fechar com crescimento acima de 7%. O mercado de trabalho, que teve um desempenho relativamente bom na crise, vem-se beneficiando desse forte ritmo de expansão, com a taxa de desemprego devendo ficar, em 2010, em patamar historicamente muito baixo. O aumento da massa salarial e a ampliação do crédito alavancam a demanda doméstica, que deve crescer cerca de 9% este ano.
O melhor ano desde 1986, no Plano Cruzado
Será, em termos dessas várias estatísticas, o melhor ano da economia brasileira desde o Plano Cruzado, em 1986. Também como então, porém, esse desempenho esconde desequilíbrios importantes, como o refletido na alta da inflação, que pode ultrapassar o teto da banda com que trabalha o Banco Central (6,5%), e a rápida elevação do déficit em conta corrente. A alta dos preços e do déficit externo é o resultado de um crescimento da demanda doméstica bem acima dos níveis possíveis de aumento da produção nacional. Para corrigir esse desequilíbrio, o Banco Central já começou a subir os juros, mas o ciclo de aperto demorou mais do que deveria para começar, e para trazer a inflação de volta ao centro da meta ainda precisará elevar bastante a Selic. Parte dessa tarefa ficará para o próximo governo.
De certa forma, portanto, o Brasil retorna a uma situação recorrente em sua história nas últimas três décadas: seu potencial de crescimento sustentado foi pouco ampliado pelas reformas, exigindo do Banco Central uma política monetária bastante restritiva, em especial com a manutenção da taxa de juros básicos entre as mais altas do mundo. Atualmente, estima-se o potencial de crescimento do País na faixa de 4%, abaixo, portanto, das aspirações nacionais.
Queda na taxa de investimentos
O crescimento no Brasil tem sido limitado por uma baixa taxa de acumulação de capital, que não conseguiu retomar seu ritmo pré-crise da dívida externa, mesmo após a estabilização de preços e as reformas estruturais discutidas acima. Em especial, a taxa de investimento, a preços constantes de 1980, caiu de 23,1% do pib, em 1970-1979, para 14,3% do pib, em 2000-2009, uma redução de 8,8% do pib. Em grande parte, esse declínio se deve à contração do investimento público, envolvendo a administração direta e as estatais: a taxa de investimento das administrações públicas caiu 2,3% do pib entre 1967-1978 e 2003-2005, enquanto que a das empresas estatais federais caiu 2,9% do pib na mesma comparação.
A principal consequência dessa queda foi a deterioração da qualidade e quantidade de infraestrutura. Depois de atingir 5,4% do pib em 1971-1980 (preços de 1980), a taxa de investimento em infraestrutura caiu um terço na década seguinte, reduzindo-se à metade disso em meados da década de 1990, quando ficou em apenas um terço do nível registrado nos anos 1970. Proporcionalmente, a menor queda ocorreu na área de telecomunicações, enquanto que nas de eletricidade e transportes a taxa de investimento caiu para menos de um quarto do nível dos anos 1970. O investimento em infraestrutura se recuperou um pouco na segunda metade dos anos 1990, mas com diferenças entre setores. Em 1999-2000, essa taxa ficou abaixo do já reduzido nível de 1990-1994 em eletricidade e transportes, aumentou em saneamento e mais do que duplicou no setor de telecomunicações. Os dados mais recentes revelam investimentos médios anuais de 2,05% do pib em infraestrutura em 2005-2006.
O impacto de longo prazo do investimento em infraestrutura supera o obtido por outras formas de investimentos produtivos, pois a disponibilidade e a qualidade da infraestrutura afetam a produtividade do investimento privado. Por exemplo, boas estradas aceleram o transporte de mercadorias, permitindo que o mesmo número de caminhões transporte um maior volume de carga, ao mesmo tempo em que reduz sua depreciação e os custos de manutenção. Boa infraestrutura de telecomunicações permite que as transações se realizem com maior rapidez e confiabilidade e, em vários casos, tornam o contato pessoal desnecessário. O fornecimento de eletricidade é vital para que a maioria das máquinas e equipamentos possa funcionar: quando ela tem de ser gerada pela própria empresa, em vez de fornecida pelas empresas de eletricidade, isso é feito a um custo mais elevado e com menor qualidade.
Estima-se que o declínio no investimento público (em especial, em infraestrutura) diminuiu o crescimento anual do pib em cerca de 0,4 ponto percentual. Na mesma linha, estudos do Banco Mundial concluem que 35% do aumento das disparidades do pib por trabalhador entre o Brasil e o Leste da Ásia, desde a década de 1980, resultaram da lenta acumulação de capital em infraestrutura e que esta é um dos principais determinantes da produtividade total dos fatores (ptf) no Brasil.
A queda do investimento público é atribuída muitas vezes ao processo de ajuste fiscal, em especial à necessidade de gerar grandes superávits primários para impedir que a dívida pública entre em uma trajetória explosiva. Nesse sentido, o esforço para reduzir o déficit fiscal no início de 1980 pode ter levado os governos a diminuir o investimento público, incluindo o das estatais, uma medida politicamente mais palatável do que o corte de salários, especialmente quando o País estava retornando a um regime democrático.
Aumento da carga tributária
No entanto, é mais difícil usar o mesmo argumento para explicar os cortes mais recentes e, certamente, porque o investimento público não voltou aos níveis anteriores. Entre 1992 e 2007, a carga tributária aumentou 9,7% do pib, enquanto o superávit primário subiu 1,8% do pib e o investimento da administração pública caiu 1,4% do pib (até 2006, último dado disponível). Ou seja, o aumento da carga tributária foi de cinco vezes e meia o necessário para aumentar o superávit primário, e ainda assim o investimento público continuou a cair.
O restante dos recursos resultantes da alta dos impostos e da contração do investimento foi usado para financiar o forte aumento do gasto público corrente. Este foi uma constante no período pós-redemocratização. Houve, porém, duas fases distintas. Na primeira, que se estendeu de 1986 a 1995, observou-se uma alta pronunciada no consumo da administração pública, que passou de um patamar bastante estável, do pós-guerra a 1985, em torno de 10% do pib, para uma taxa de 20% do pib, ao redor da qual oscilou, com pequenas flutuações, em 1995-2009. Em certa medida, essa alta esteve associada ao processo de descentralização, com uma ampliação considerável dos gastos de estados e municípios.
Na segunda fase, que ganhou corpo a partir de meados dos anos 1990, o aumento do gasto corrente é puxado principalmente pelas maiores despesas previdenciárias com servidores públicos e aposentados e pensionistas do inss. Em 1991-2005, as despesas primárias do governo federal aumentaram 8% do pib, sendo que aquelas com aposentadorias responderam pela maior parte desse aumento, saltando de 4% do pib, em 1991, para 9% do pib, em 2005. Esses gastos também aumentaram substancialmente para os governos subnacionais. Por sua vez, o gasto de capital por parte do governo federal caiu pela metade, atingindo apenas 0,6% do pib em 2006.
A rápida expansão do gasto público corrente também tem sobrecarregado a política monetária, que nos últimos quinze anos foi usada como instrumento quase único para controlar a inflação e equilibrar a expansão da demanda e da oferta agregadas. Isso ajudou a elevar a carga de juros incidente sobre a dívida pública e desencorajou o investimento e o crescimento, contribuindo dessa forma para aumentar o gasto corrente e o risco de que a dívida pública entrasse numa dinâmica explosiva. Outra consequência foi uma taxa de juros básica muito elevada que, combinada com os altos spreads de juros, encareceram o financiamento para as empresas e os consumidores. Não surpreende, portanto, que em uma pesquisa sobre clima de investimento as empresas brasileiras tenham classificado o elevado custo de financiamento como o segundo obstáculo mais importante ao seu crescimento. Esta combinação desequilibrada de políticas fiscal e monetária também alimentou a instabilidade macro, que as empresas veem como o quarto obstáculo mais importante à sua expansão.
Ampliação dos gastos correntes
A Constituição de 1988 foi um marco nesse processo de ampliação do gasto corrente, na medida em que foi necessário elevar as despesas para financiar os inúmeros direitos legais nela estabelecidos. No entanto, culpar a Constituição como se ela fosse um evento isolado, um descuido cometido por falta de conhecimento econômico, é ignorar o processo mais amplo em que ela se insere. De fato, o aumento do gasto corrente começa antes de a Carta ter sido promulgada. Além disso, a Constituição foi alterada várias vezes ao longo dos anos, sem que a tendência pró-gasto corrente da política econômica fosse alterada. Assim, a Constituição foi apenas o marco mais visível de um processo de transformação político-legal que tem continuamente, com raras exceções, privilegiado a expansão dos gastos correntes.
Em artigo que escrevi com Regis Bonelli e Samuel Pessoa, atribuímos esse processo à interação entre a redemocratização do País, em 1985, e a má distribuição de renda no Brasil. Assim, na ditadura os governos podiam ignorar as preferências dos eleitores, mas com o retorno à democracia os incentivos dos políticos mudaram, passando a refletir o desejo da maioria do eleitorado por mais serviços públicos gratuitos e maiores transferências. Também contribui para o aumento contínuo do gasto corrente a fragmentação do sistema partidário no Brasil, em especial da base de apoio do governo no Congresso. Assim, as repetidas escolhas de política em favor de maiores gastos correntes não são fruto do desconhecimento dos políticos de suas implicações fiscais, mas decisões conscientes que refletem as preferências da maioria do eleitorado.
Nos primeiros anos após a promulgação da nova Constituição, o governo financiou suas crescentes despesas correntes, permitindo que a inflação acelerasse, contando com um efeito Tanzi inverso (dado que as receitas eram mais bem indexadas à inflação do que as despesas) e com aumentos nas receitas de senhoriagem. De fato, as receitas anuais com imposto inflacionário ficaram, na média, em 1,5% do pib em 1989-1994, o dobro do observado em 1951-1980. Quando a inflação caiu, o governo recorreu à expansão da dívida pública, que fechou 2009 em 43% do pib, após um pico em 55% do pib em 2003, ainda bem acima dos 28% observados em 1995.
Quando já não era mais viável expandir a dívida pública, o governo começou a aumentar os impostos. O governo federal, em particular, elevou sua receita por meio da criação de novos tributos e do aumento das alíquotas das contribuições sociais, revertendo o processo de descentralização promovido pela Constituição. O aumento da carga tributária, como discutido acima, foi brutal: ela passou de um patamar relativamente estável de 25% do pib, em 1968-1986, para 28,6% do pib em 1994-1998, 31,7% do pib em 1999-2004, e 34,2% do pib em 2004-2007. Ou seja, a partir de 1993, a carga tributária aumentou em média 0,65% do pib ao ano, o que desincentivou o investimento e, segundo as estimativas de alguns analistas, diminuiu o crescimento anual do pib em cerca de 1½ ponto percentual.
Em 2007, último ano com informações oficiais disponíveis, a carga tributária ficou em 34,7% do pib, um patamar muito elevado para os padrões internacionais. A comparação com uma amostra de países desenvolvidos e em desenvolvimento mostra que, controlando para o nível de pib per capita, a carga tributária no Brasil está muito acima do que seria de esperar. Um país com a renda do Brasil normalmente tem uma carga tributária mais baixa cerca de dez pontos percentuais do pib.
Não surpreende, portanto, que a alta carga tributária seja vista pelas empresas brasileiras como o principal obstáculo ao seu crescimento, um resultado que contrasta com o que se observa em pesquisas semelhantes sobre o clima de investimento em outros países. As pesquisas também mostram que as empresas que identificam a carga tributária como um grande problema cresceram, em média, menos do que as que não expressaram a mesma visão, indicando que, de fato, a alta carga de tributos é um limitante à expansão do setor produtivo.
Existem 68 impostos no Brasil
A qualidade do sistema tributário também piorou. Para não repartir a receita com estados e municípios, ao invés de elevar as alíquotas dos impostos já existentes, a União criou novos tributos, alguns aplicados cumulativamente, outros sobre a mesma base de incidência de impostos já existentes. Além disso, há tributos que variam regionalmente, como o icms, que tem mais de cinquenta alíquotas diferentes, sendo cada estado, dentro de certos limites, livre para determinar suas próprias alíquotas. Segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, existem 68 impostos no Brasil e 3 200 códigos de impostos, incluindo leis, medidas provisórias, decretos, regulamentos e instituições. Há também taxas múltiplas e bases de cálculo, bem como várias agências fiscais.
O resultado é que hoje temos um sistema tributário complexo, instável e caro. Entre outras coisas, ele distorce os preços relativos, aumenta os custos de transação, fomenta a informalidade, desencoraja a acumulação de capital humano e a intermediação financeira, incentiva o rent-seeking e o planejamento tributário e concentra a renda. Ele faz com que os contribuintes tenham de gastar uma quantidade considerável de tempo e esforço para poder cumprir com suas obrigações tributárias, o que é outro fator a desestimular o investimento.
As pesquisas mostram que o tempo que as empresas no Brasil gastam para pagar impostos e cumprir a regulamentação tributária é muito grande em comparação com outros países. Nesse quesito, o Brasil não apenas é o país com pior indicador em toda uma amostra de 173 países, para os quais o Banco Mundial obteve estatísticas a respeito, mas também tem um indicador que supera em mais de sete vezes a média da amostra. Em pesquisa sobre o clima de investimentos no Brasil, as empresas apontaram ser a complexidade tributária o sexto obstáculo mais importante ao seu crescimento.
Além da elevada carga tributária, que reduz os lucros retidos e a capacidade de investir das empresas, e a má qualidade da infraestrutura, que diminui a produtividade do investimento, as empresas brasileiras contam com menos acesso a financiamentos do que gostariam, sendo o preço e o prazo dos empréstimos disponíveis muitas vezes pouco adequados às necessidades de investimento. Em teoria, numa economia aberta como a brasileira, isso não deveria ser um problema, já que as empresas poderiam financiar-se no exterior, como de fato o fazem as maiores companhias brasileiras. Mas esse caminho tem limitações importantes em termos agregados, na medida em que o Brasil conta com uma taxa de poupança interna inferior a 14,6% do pib (2009), o que reduz o espaço para expandir significativamente o investimento sem incorrer em um elevado déficit em conta corrente, arriscando uma nova crise externa no futuro. De fato, para alguns autores, a baixa taxa de poupança é a principal barreira ao aumento do investimento e à aceleração do crescimento no Brasil.
Foi o Brasil um país de poupança elevada durante o período de alto crescimento? Sim, em 1968-1978, quando o pib cresceu em média 9,1% por ano, a poupança doméstica foi de 19,3% do pib. No entanto, houve uma forte contração da poupança doméstica entre 1967-1978 e o perío-do 1995-2002, em grande parte explicada pelo declínio da poupança pública. Assim, enquanto a taxa de investimento diminuiu 4,9% do pib entre 1967-1978 e 2003-2005, a poupança pública caiu 5,2% do pib, a poupança externa contraiu 2,8% do pib e a poupança privada subiu 3,1% do pib. Com isso, a taxa de poupança do Brasil se manteve, nos últimos anos, em patamar bem inferior ao esperado, dado o seu nível de desenvolvimento e estrutura etária, chegando no quarto trimestre de 2009 a meros 12,7% do pib, enquanto países asiáticos com níveis semelhantes de desenvolvimento, como Malásia, Tailândia ou Coreia, poupam mais de 30% do seu pib.
Bom desempenho econômico e taxa de poupança
Embora haja razões para esperar que o bom desempenho econômico expanda a poupança, também as há para acreditar que as transformações em curso no Brasil a reduzam:
Alguns estudos notam que o aumento da renda per capita tende a elevar a taxa de poupança, levando a um círculo virtuoso entre crescimento e poupança que, eventualmente, ajuda a explicar por que a taxa de poupança do Chile aumentou em 12% do pib entre 1986 e 1999, quando o país apresentou taxas de crescimento elevadas.
Por outro lado, uma alta na percentagem de cidadãos idosos na população e um maior grau de urbanização tendem a reduzir a taxa de poupança.
Alguns autores obtêm uma elasticidade juro da poupança maior que zero, de forma que o esperado declínio de médio/longo prazo na taxa de juros pode desincentivar a poupança.
Uma eventual reforma tributária pode ajudar a elevar a poupança, mas a tendência é que seja neutra a esse respeito. Assim, há alguma evidência de que, no caso do Chile, uma tributação mais pesada sobre os lucros distribuídos ajudou a aumentar a poupança corporativa. Outros autores concluem, por outro lado, que em regra os incentivos fiscais dados aos poupadores, geralmente em favor de determinados ativos financeiros, não têm um impacto significativo na poupança, especialmente se o efeito sobre a poupança pública é contabilizado.
As transferências sociais, ainda que importantes do ponto de vista distributivo, reduzem a poupança agregada, ao transferir recursos de agentes com elevada propensão a poupar para outros que tendem a consumir integralmente a sua renda.
O impacto do aprofundamento financeiro sobre a poupança também é incerto. Em teo-ria, o aumento da oferta de crédito a agentes com restrições de liquidez, tais como os consumidores de baixa renda, diminui a poupança, pois esses passam a consumir mais. Este parece ser o caso da expansão do crédito no Brasil, que ajuda a explicar o declínio da poupança privada nesse período. Por outro lado, o aprofundamento financeiro pode aumentar a remuneração da poupança e/ou alavancar outros tipos de poupança, como no mercado imobiliário.
Poupança pública é essencial para alavancar poupança nacional
Assim, a literatura econômica é relativamente consensual em que a forma mais confiável, senão a única, para a política econômica elevar a taxa de poupança nacional é focando no aumento da poupança pública, especialmente quando, como é o caso no Brasil, ela é pequena ou mesmo negativa, como em 2006, último ano para o qual se dispõe de dados oficiais, quando ficou negativa em 2,8% do pib. Esta também parece ser a lição que se retira da composição da poupança total em 1968-1978, em que o alto crescimento do pib ocorreu em um contexto em que o setor público foi um grande poupador.
Agenda de política econômica para o próximo governo A agenda de política econômica que se coloca para o próximo governo é, portanto, tecnicamente simples, apesar de politicamente complexa. Essa agenda deve ter duas partes principais, focadas na questão fiscal, além de um conjunto de outras medidas em outras área-s. O ponto básico é a necessidade de ir além do objetivo de solvência da dívida pública e da manutenção de um superávit primário compatível com esse objetivo. Em especial, é preciso considerar outras dimensões da política fiscal, como a dinâmica e a composição do gasto público.
A primeira medida central diz respeito ao mix de política macroeconômica, em especial à coordenação entre as políticas monetária e fiscal. Da forma como esta vem sendo conduzida desde a implantação do Plano Real, com um pé no acelerador fiscal e outro no freio monetário, a política macroeconômica gera várias das distorções que se costuma criticar na economia brasileira: taxas de juros muito altas, o encurtamento dos prazos de financiamento, a apreciação e a volatilidade cambiais pelo fluxo de capitais financeiros interessados em ganhar com os juros altos, etc.
Se o governo reduzir o ritmo de crescimento do gasto público para um patamar próximo do do pib ou mesmo um pouco inferior, tirará o peso extra que hoje recai sobre a política monetária, permitindo ao Brasil ter taxas de juros mais parecidas com a da maioria dos países. A queda da taxa Selic irá, por sua vez, diminuir as despesas de juros do governo, elevando a poupança pública. Preferencialmente, essa política deveria vir apresentada com metas plurianuais de redução da expansão do gasto, de forma que os agentes econômicos ficassem mais propensos a antecipar os benefícios dessas medidas para o país, na forma de taxas longas de juros mais baixas, maior propensão ao investimento, etc.
Por vezes criticam-se as propostas de contenção de gastos com o argumento de que isso reduzirá a oferta de serviços públicos para a população, mas isso pode e tende a ser evitado. Primeiro, porque uma política como essa vai elevar o potencial de crescimento do País e, com isso, a trajetória de alta da massa salarial, resultando em mais recursos para a aquisição desses serviços. Mais importante, porém, é que há estudos que comprovam haver um amplo espaço para aumentar a eficiência com que os serviços públicos são oferecidos no Brasil, e há experiências no âmbito dos governos estaduais e municipais que mostram o caminho de como isso pode ser feito. Combinando o aumento de eficiência com a redução do ritmo de expansão dos gastos será possível manter a oferta em alta e ao mesmo tempo melhorar o mix da política macroeconômica.
Autonomia do Banco Central
Outra medida que pode contribuir para a redução da taxa de juros básica é a autonomia formal do Banco Central. Isso poderia ser feito dando mandatos fixos, não-coincidentes para os seus diretores, como já ocorre com a maioria das agências reguladoras. Essa autonomia se restringiria à definição da melhor forma de atingir a meta de inflação fixada pelas autoridades, como já ocorre hoje. Seria, portanto, uma autonomia operacional, não política, mas que serviria para tranquilizar os poupadores de que seus recursos estariam protegidos da inclinação dos governantes de promover expansões econômicas artificialmente altas, insustentáveis e inflacionárias em anos de eleição.
A segunda medida central é mudar a composição do gasto público: é preciso reduzir o gasto corrente, para ampliar a poupança e o investimento públicos, de forma a acelerar a acumulação de capital e o nosso potencial de crescimento sustentado. A decisão de quais gastos cortar ou pelo menos congelar deve ser precedida de uma análise cuidadosa, mas há vários candidatos, dos subsídios transferidos a grandes empresas por meio dos bancos públicos, aos benefícios previdenciários concedidos a pessoas relativamente jovens e com longa expectativa de sobrevida.
A discussão acima salientou a importância das despesas previdenciárias para explicar a dinâmica do gasto público na última década e meia, e inevitavelmente esse deve ser um foco importante das medidas de contenção de gastos. Nesse sentido, é importante regular as emendas aprovadas em 2003, reformando a previdência dos servidores públicos, para que essas efetivamente fossem adotadas, e promover nova rodada de mudanças nas regras do inss. Em especial, deve-se adotar uma idade mínima de aposentadoria igual à que hoje rege o regime dos funcionários públicos e passar a corrigir os benefícios do inss exclusivamente pela inflação.
Para ser capaz de crescer a taxas elevadas, o Brasil vai precisar ampliar e melhorar sua infraestrutura de transporte (rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, etc.), inclusive no meio urbano (metrô, ruas asfaltadas, etc.); investir mais na geração, transmissão e distribuição de eletricidade; e expandir o acesso à água potável e instalações sanitárias. De fato, estudo do Banco Mundial estima que a realocação de 1% do pib em gastos públicos de transferências sociais para investimentos em infraestrutura seria capaz de aumentar o crescimento em 0,6 ponto percentual.
A folga criada pelo aumento da poupança pública deve ser utilizada parcialmente para elevar esses investimentos, especialmente em setores em que a cobrança de tarifas é em geral insuficiente para financiar a implantação de novos projetos, como em transportes e saneamento. Isso não significa prescindir do setor privado, seja como investidor, seja como operador. É preciso reviver o instituto das Parcerias Público-Privadas, que foram bem utilizadas pelos estados, mas não tiveram nenhum caso implantado pela União.
Outra parcela da poupança resultante da contenção dos gastos correntes deve ser utilizada para promover a reforma tributária, um tema constante nas discussões de políticas públicas no Brasil, mas no qual poucos avanços têm sido alcançados. Aqui há dois objetivos principais. Um, simplificar o sistema tributário, que como discutido acima é desnecessariamente complexo. Isso envolveria da fusão de tributos distintos incidentes sobre a mesma base à coordenação entre agências para simplificar os trâmites burocráticos. Já há um enorme conju
nto de estudos detalhando como isso pode ser feito. O outro objetivo é diminuir gradualmente a carga tributária, priorizando a redução dos tributos que mais distorcem a atividade econômica.
Definir uma agenda de mudanças na política econômica é necessário, mas não suficiente. Em especial, é preciso combiná-la com uma estratégia política que permita sua implementação. A redemocratização permitiu ao eleitor brasileiro expressar sua preferência por um Estado grande, em especial no que concerne à expansão dos gastos públicos correntes, nomeadamente transferências. Esse processo também é consistente com outra característica do sistema político do Brasil: a elevada fragmentação político-partidária, mormente na base de apoio do governo no Congresso. Problemas de assimetria de informação ajudam a explicar a preferência por um Estado grande, caracterizada pelo fato de que o caráter regressivo do sistema tributário é menos transparente do que o caráter progressivo dos programas sociais mais divulgados. Os eleitores, em geral, enxergam relativamente bem as despesas públicas, para as quais há farta propaganda na tv, mas têm dificuldade para entender o quanto pagam de impostos indiretos.
Um passo importante para viabilizar politicamente essa agenda de política macroeconômica é conseguir mostrar ao eleitor que a política de tributação e gasto público é bem menos progressiva do que se imagina. Uma reforma política que diminua a fragmentação partidária também seria positiva. No limite, deve-se transformar essa agenda em um “projeto nacional”, superpartidário, como ocorre hoje em dia com o mix de câmbio flexível e metas fiscais e de inflação. Em países que têm “projetos nacionais”, ainda que implícitos, como é mais comum, as forças políticas convivem melhor, facilitando ao governo manter um nível alto de poupança e estimulando os pequenos poupadores a fazer o mesmo.
Armando Castelar Pinheiro é analista da Gávea Investimentos e professor do Instituto de Economia da UFRJ. É PhD em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, Mestre em Administração de Empresas (COPPEAD) e Estatística (IMPA), e Engenheiro Eletrônico (ITA). É membro do Conselho Superior de Economia da Fiesp e articulista do Valor Econômico e do Correio Braziliense.
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