O Brasil que saiu das urnas nas eleições de 2024
Nestas eleições, dois fenômenos novos, diferentes e completamente anômalos foram o do município capturado pela crise de identidade do povo brasileiro e o decorrente dos efeitos desagregadores do bolsonarismo. A ideologia personificada por Jair Bolsonaro levou a praticamente todo o território nacional a convicção de que o Brasil está dividido entre os que perfilham os valores e costumes da ordem e os que os rejeitam. Os patriotas e seus adversários, os sem pátria, a esquerda, o vazio. Essa ideia nulificou os seres humanos não identificados com essa premissa antipolítica e reacionária.
Os efeitos dessa concepção amoral e antipolítica da vida social atingiu profundamente o município. Dividiu famílias, tornou inimigos os amigos, lançou filhos contra pais, irmãos contra irmãos. Esses fatores repercutiram no país inteiro e compareceram nos jornais como indícios de uma anomalia social destrutiva. O que veio a ser definido como a cultura do ódio encheu de medo as populações. A fratura teve como coadjuvantes intencionais os evangélicos e o fundamentalismo religioso. Na eleição, o púlpito teve o seu papel.
Como indica João Cezar de Castro Rocha — professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e conhecido estudioso da direita atual no Brasil —, com o protagonismo de Michelle Bolsonaro, evangélica, e a cumplicidade de um pastor convertido em clandestino capelão da República, a política foi satanizada. Os palácios foram exorcizados, a cadeira presidencial foi declarada trono de Deus, e Deus foi reconhecido como o ente que designara Bolsonaro para ocupá-lo. O bolsonarismo tornara-se uma religião. Na preparação dessa ascensão, Bolsonaro, católico pelo batismo de origem, foi batizado de novo por um pastor evangélico — e por outro, uma terceira vez, nas águas do rio Jordão, em Israel. Tratava-se de ungi-lo.
Igrejas evangélicas disseminaram-se pelo Brasil e instalaram-se nos municípios como extensões religiosas do bolsonarismo. Houve a reação dos evangélicos protestantes que recusaram a falsa religiosidade ideológica, do gazofilácio, do dízimo e da fé materialista no poder.
Eleições como expressão de misticismo
Nesse cenário, as eleições municipais de 2024 não foram eleições propriamente políticas, mas expressões de um misticismo propositalmente antipolítico da base eleitoral da ditadura em andamento.
Um segundo fenômeno foi a eleição municipal como antecipação da eleição presidencial de 2026. De vários modos, ela foi pensada como uma eleição de comissários políticos, e não de prefeitos ou vereadores, como os do estalinismo no interior da União Soviética. Uma base partidária para minar e deformar a expressão política do eleitorado daqui a dois anos.
A eleição de agora foi uma tentativa de enquadrar os problemas locais, próprios dos municípios, como se fosse uma disputa entre direita e esquerda, a do destino histórico da nação.
Não foi uma eleição em que o eleitorado fizesse opções políticas motivadas pelos dilemas e problemas locais. Em nossa tradição, o município tem sido, em boa parte do tempo, o lugar da vida cotidiana, da rotina diária e de seus problemas: educação, saúde, mobilidade, abastecimento de água, drenagem dos resíduos domésticos, esgoto, segurança.
O município deixou de ser o lugar e a referência do que foi, desde a origem do município brasileiro, em 1532. A diferença de interesses e de poder entre a comunidade local e a Coroa, isto é, o Estado, é tema de abordagem clássica de Victor Nunes Leal[1].
De certo modo, o município foi a base social de nossa incipiente democracia, ainda que seletiva e excludente, limitada aos valores e concepções estamentais da sociedade colonial e aos que foram chamados de homens bons, os limpos de sangue e de fé. Lugar do poder pessoal dos chamados pais da pátria, sendo a pátria o lugar de nascimento e parentesco. Lugar do oligarquismo, da indistinção entre bens privados e bens públicos. Lugar dos fundamentos sociais de nossa crônica corrupção política, que se estendeu pela sociedade moderna como nossa versão subdesenvolvida de um capitalismo atrasado e rentista[2]. Nossa pós-modernidade.
Nesta eleição de 2024, o município foi eleitoralmente capturado pelas disputas relativas aos dilemas nacionais. O município se tornou um distrito da União, condição já antecipada pela crescente característica da Câmara dos Deputados como câmara municipal de função federal. A linguagem de deputados nas comissões de inquérito e nas plenárias é a linguagem do botequim das localidades, a linguagem grosseira, os temas redutivos do cotidiano anômico, a decadência da política.
Em muitos municípios, política e economicamente aquém do necessário, disputas partidárias municipais estão relacionadas com o afã de tornar cidade só aparentemente aqueles lugares que não o são propriamente.
Os municípios que o senso comum define como cidades, como os das capitais e os das regiões metropolitanas, são, não raro, municípios dominados por uma urbanização patológica, aquém do propriamente urbano, tanto pelas carências quanto pelos excessos derivados de concepções imperfeitas e incompletas de referências ao que é propriamente urbano.
São Paulo está nessa situação e pode o município ser tomado como referência das anomalias que degradam nossas cidades e as afastam do que deveria ser o ideal urbano, o do desenvolvimento social como recurso de superação de insuficiências e limitações sociais e urbanas.
Ausência de questionamentos à urbanização patológica
Nesse sentido, os dois candidatos com maior compreensão social desses problemas, Guilherme Boulos, do PSOL, e Tabata Amaral, do PSB, não lograram pôr em debate e questionar a urbanização patológica que caracteriza a cidade e suas graves insuficiências. Caíram na armadilha da direita que pôs em discussão e deu prioridade à polarização ideológica promovida pelo bolsonarismo e à falsa disputa entre direita e esquerda, sobretudo na antecipação forçada da eleição presidencial de 2026. A direita pôs em julgamento o passado da esquerda e conseguiu isentar de julgamento e questionamento a direita e seus crimes, mesmo os recentes, como o boicote à vacinação contra a Covid-19 e a difusão da cloroquina como medicina apropriada para combater ou evitar a doença. Os 700 mil mortos de Covid não tiveram, até agora, a sua justiça nem a sua visibilidade municipal, já devidamente apurada pela Comissão de Inquérito que disso tratou.
A direita confundiu os cidadãos e criou o vazio de consciência crítica no âmbito dos municípios para impedir o dimensionamento ideológico das disputas locais. Como ficou claro em São Paulo, os eleitores não foram chamados para eleger quem quer que fosse, mas para não eleger, para confirmar a irrelevância do voto e da pluralidade partidária.
Os municípios foram derrotados, excetuados aqueles em que os partidos sociais, que são os partidos de esquerda e de centro-esquerda, venceram os partidos fisiológicos, que são os partidos de direita.
Os resultados destas eleições revelaram um diferente perfil do brasileiro majoritário, menos político do que vinha ocorrendo. Um brasileiro confuso, dominado pela incerteza política. E, nesse sentido, muito propenso a votar em candidatos e partidos que expressam sua confusão.
Essa confusão foi disseminada propositalmente pelo bolsonarismo. Os estudos sociológicos e políticos de João Cezar de Castro Rocha, com sua erudição, consistência e profundidade, decifram a perigosíssima anomalia política personificada por Bolsonaro e pelo bolsonarismo. Mostram que a concepção antissociológica e antidemocrática do poder, difundida por Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo, se apoia no modelo antidemocrático de satanizar o pensamento crítico, demolir as certezas e as possibilidades históricas, sociais e políticas da sociedade, atributos do pensamento de esquerda. Os eleitores têm votado como vítimas da concepção que a sociedade brasileira é agora uma realidade sem alternativa, a não ser a do pensamento único e do direitismo.
Houve, ainda, o aparecimento em São Paulo de um candidato forasteiro e improvisado — Pablo Marçal, hábil na manipulação do disseminado estado de incerteza e de descrença no possível — que conseguiu em pouco tempo se sobrepor nos votos a candidatos de envergadura tradicional.
A eleição revelou que o Brasil político mergulhou num profundo estado de anomia, em que valores e normas propriamente democráticos e políticos perderam a eficácia.
De certo modo, o Brasil que saiu das eleições municipais de 2024 não saiu. Retornou aos resquícios retrógrados do nosso passado municipal antagônico ao Estado nacional. Agarrou-se no suposto salva-vidas do que é de fato uma espécie de rebotalho da decadência, com a exacerbação do poder pessoal e localista, cúmplice da onda autoritária bolsonarista e militarizada.
Nesse sentido, os resultados das eleições são um retrocesso, provavelmente um capítulo decisivo no declínio das funções do Estado e da política entre nós. O Estado a caminho de se tornar apenas a pessoa que manda, a ditadura de um régulo expulso do quartel.
O município brasileiro tem sido o lugar de expressão dos limites inferiores da política, e lugar do minimalismo reivindicativo em nome de necessidades cotidianas e imediatas, extensões de desdobramentos de uma visão política do país que é doméstica e familista e lugar do poder pessoal e oligárquico. Não se deve esperar, pois, que a polarização ideológica direita-esquerda tenha algum sentido para a avaliação dos resultados destas eleições.
No entanto, justamente por isso, o município é aqui, lugar de manifestação do primado dos valores mais rudimentares do conservadorismo popular e próprio de uma sociedade que vê e interpreta o mundo na perspectiva limitante da vida patriarcal e vicinal.
Como disse antes, um fato novo e diferente, porém, ocorreu no período recente e envolveu uma mudança na função política do município: sua captura pelo autoritarismo bolsonarista. A multidão que se acumulou nas portas dos quartéis para pedir golpe de Estado e golpe militar aparentemente nada tem a ver com as carências e demandas políticas dos municípios. Até porque tem sido eles, nas últimas décadas, os clientes da política de distribuição de verbas federais através do clientelismo dos deputados. A representação federal dos municípios e regiões tornou-se cúmplice do governo federal, e o município tornou-se autor da pauta de investimentos federais locais e regionais. Se esse fato indica mudança significativa nas relações políticas entre nação e município, indica, também, uma certa redução da solidão do Estado nacional, da União.
O inquérito sobre a intentona de 8 de janeiro de 2023 tem feito revelações importantes sobre uma nova função do município na estrutura política do Brasil. A grande maioria dos participantes da multidão veio de municípios de diferentes regiões do país. Foram mobilizados justamente os valores comunitários e familistas da sociedade local, com a novidade da função que teve o púlpito das igrejas evangélicas fundamentalistas. Teve-a na difusão do apelo para a romaria sinistra em direção à porta dos quartéis e para o clamor pelo golpe militar.
Concepção tosca de poder no ataque à democracia
Sobretudo as depredações do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso e do Palácio do Planalto indicam uma concepção tosca do que é o poder, ao separar e não reconhecer as diferenças que há entre as instituições dos recintos que as abrigam e os edifícios, instalações e objetos que as compõem. Defecar sobre a cadeira de um ministro da Suprema Corte, para defecar na instituição de que ele é membro, indica que, para os militantes do bolsonarismo municipal totalitário deslocados para Brasília, não há instituições. Tudo é equivalente ao penico. A investigação a que foram submetidos, o processo e o julgamento são decisivos para mostrar-lhes a diferença e educá-los para a civilidade e a democracia.
As eleições deram vitória aparente ao PL, partido de Bolsonaro. Mas revelaram uma fragilidade significativa do ex-presidente e do bolsonarismo. Foi significativo o resultado da soma dos votos de partidos definidos como de direita, mas só fisiologicamente identificados com Bolsonaro. A vitória do PSD de Kassab e a soma de votos dos partidos do chamado Centrão mostram que, de fato, o bolsonarismo foi parasitado e infiltrado pelos parecidos, mas não iguais. Nesse sentido, a direita e o bolsonarismo foram derrotados pela indecisão que semearam.
Aí, também, não se pode falar em derrota da esquerda nem derrota do PT. Os resultados eleitorais, de pequenas diferenças entre os vitoriosos supostamente identificados com Bolsonaro e os identificados com o governo do PT, mais os votos em branco, os votos nulos e as abstenções, sugerem pesada vacilação em relação à polarização ideológica.
Uma grande massa de eleitores está propensa a optar por uma solução político-partidária democrática, à espera de que os propriamente democráticos inventem um novo partido antiautoritário ou consigam fazer uma coalização política pela democracia e pelo crescimento econômico com desenvolvimento social.
De vários modos, com as ocorrências pós-eleitorais, como as das últimas semanas de novembro, com a prisão de altos militares envolvidos em gravíssima conspiração pelo golpe, a responsabilização do próprio Bolsonaro e seu indiciamento com mais 36 conspiradores, na maioria militares de alta patente, revelam que o crescimento, ainda que minúsculo, do bolsonarismo nos municípios dificilmente representou um indicativo do que serão os resultados das eleições de 2026.
[1].
Leal, Victor Nunes. Coronelismo Enxada e Voto (O município e o regime representativo no Brasil). São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1975.
[2].
Martins, José de Souza. O Poder do Atraso – Ensaios de Sociologia da História lenta. São Paulo: Editora Hucitec, 1994, p. 19-51.
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