30 julho 2021

O capital diplomático brasileiro

Durante os dois primeiros anos do atual governo, eminentes ex-ministros, professores de relações internacionais e jornalistas especializados criticaram o rumo da política externa brasileira e argumentaram ter se dissipado o capital diplomático brasileiro formado ao longo da história do país. Com a mudança na chefia da diplomacia brasileira, discutem-se agora as possibilidades de sua recuperação.

Durante os dois primeiros anos do atual governo, eminentes ex-ministros, professores de relações internacionais e jornalistas especializados criticaram o rumo da política externa brasileira e argumentaram ter se dissipado o capital diplomático brasileiro formado ao longo da história do país. Com a mudança na chefia da diplomacia brasileira, discutem-se agora as possibilidades de sua recuperação.

O que seria esse ativo invisível acumulado pelo Brasil? Não parece haver definição clara, mas distinguem-se no seu conceito elementos do soft power, pois o uso da diplomacia se contrapõe ao emprego da força militar ou de sanções econômicas bilaterais para a defesa de interesses nacionais. Além disso, contribui para a formação de uma imagem nacional positiva por meio do exercício de negociações para persuadir outros países, cooptar os que inicialmente se opõem a propostas nacionais ou, ainda, construir consensos em torno de temas de interesse nacional. Seu objetivo, no longo prazo, seria aumentar a credibilidade, a confiabilidade e, portanto, a previsibilidade do país, o que facilitaria o alcance de vários propósitos, tais como o aumento das exportações, a atração de investimentos diretos e a obtenção tanto de créditos financeiros quanto da tecnologia necessária para o desenvolvimento.

O capital diplomático brasileiro se formou gradativamente, numa cronologia pontilhada de momentos de busca de soluções pacíficas, do aumento de parcerias e de participações em grupos de países e organismos internacionais. Tem origens na tradição negociadora de Portugal que permitiu àquele reduzido território do extremo sudoeste europeu obter uma série de êxitos na proteção de seus interesses. Ao legado deixado pelo país colonizador, somar-se-ia a experiência precoce de negociações externas, após ter Lisboa transferido a corte para o Brasil

Após a Independência, o Império desenvolveria atuação externa coesa graças ao papel moderador exercido pelo Conselho de Estado, órgão voltado à manutenção da integridade do território nacional, ameaçada então por instabilidade regional. Na República Velha, Rio Branco realizou feito épico ao resolver as disputas territoriais com os numerosos países vizinhos por meio de negociações bem fundamentadas e eficazes. A habilidade nacional para promover conciliação seria empregada na mediação das questões de fronteiras entre Colômbia e Peru (Letícia) e entre Bolívia e Paraguai (Chaco Boreal).

Multilateralismo mais universalismo

A tais iniciativas, somar-se-ia a colaboração multilateral, após a criação da ONU ao final da II Guerra Mundial, quando o Brasil passou a seguir as decisões tomadas pelo Conselho de Segurança para dirimir os conflitos internacionais. O multilateralismo seria complementado pelo universalismo, conceito formulado quando o país passou a se ver como um “traço de união entre o mundo afro-asiático e as grandes potências ocidentais”. No mesmo período histórico, em meio à preocupação com a possibilidade de Cuba receber armas nucleares da URSS, o Brasil reforçou sua vocação pacífica ao propor, na Conferência do Desarmamento, que fosse a América Latina tornada uma zona livre de armas nucleares. 

A disposição de transigir para atingir interesses maiores seguiria também presente durante o regime militar. Assim, para concretizar projeto de aproveitamento hidrelétrico do Rio Paraná, o Brasil concordou em dividir, em partes iguais com o Paraguai, a energia eventualmente produzida. Para pôr fim às objeções da Argentina a Itaipu, desistiu de duas turbinas que inicialmente pretendera construir. Noutra amostra de habilidade negocial, quando do advento do inesperado conflito entre o Reino Unido e a Argentina sobre as Ilhas Malvinas, a chancelaria brasileira conseguiu manter o bom relacionamento com ambos os contendores, ao longo do conflito bélico.

Após a redemocratização, acelerar-se-iam as atividades da política externa brasileira, muitas das quais voltadas à solução de conflitos internacionais, à defesa da democracia e à integração no plano regional. As ações diplomáticas se dariam por meio de iniciativas e negociações, em vários planos. Os sucessivos governos democráticos dedicar-se-iam também à melhora da imagem brasileira no tocante ao uso da energia nuclear, à proteção dos direitos humanos e do meio ambiente, bem como à promoção do comércio exterior. Ampliariam gradualmente a cooperação a países em desenvolvimento, sobretudo da América Latina e da África.

No plano regional, as ações diplomáticas brasileiras contribuiriam para reduzir antigas suspeitas e rivalidades e permitiriam o incremento do comércio e da cooperação. Trouxeram prestígio ao país quando este liderou os garantes do Tratado do Rio de Janeiro, na mediação do conflito entre Peru e Equador, tendo alcançado paz definitiva para a questão. Elevaram-se de patamar quando se realizou, no território nacional, a I Cúpula Sul-Americana. Reforçaram a influência nacional durante a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, cujo nome mudaria para União de Nações Sul-Americanas (Unasul). A esfera de influência se ampliou após ter o Brasil apoiado foros de países ibero-americanos, lusófonos (CPLP) e de países em desenvolvimento (G-15). Cristalizou-se após o país mostrar-se força motriz para a criação do Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) e culminou com a participação em grupos seletos, em especial, os Brics e o G-20. 

No plano multilateral, o capital diplomático cresceu graças a política coerente de restringir o uso de ação militar e sanções comerciais, aceitando-as somente quando aprovadas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Esse posicionamento se viu respaldado pela participação em inúmeras forças de paz, com destaque para aquelas em Moçambique, Angola, Timor Leste, Haiti e no Líbano. Também contribuíram para a admiração do trabalho diplomático nacional, algumas iniciativas próprias entre as quais a de criação de uma Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul e a inclusão do conceito de “responsabilidade ao proteger” como complemento da “responsabilidade de proteger” civis em casos de conflitos. 

Em matéria de desarmamento e não proliferação nuclear, o Brasil inovou, no plano regional, ao estabelecer cooperação nuclear com a Argentina, monitorada internacionalmente por uma agência binacional de contabilidade e controle de materiais nucleares, órgão aceito, mais tarde, como alternativa à assinatura de Protocolo Adicional aos acordos de salvaguardas da AIEA. Reforçou suas credenciais pacíficas ao assinar o Tratado de Não Proliferação (TNP) e ao declarar a intenção de não produzir, adquirir ou transferir misseis militares de longo alcance. Demonstrou capacidade diplomática em matéria nuclear ao negociar a Declaração de Teerã com a Turquia e o Irã, documento pelo qual o último país concordou com o envio de urânio para enriquecimento no exterior. Agiu também com coerência ao propor na ONU, juntamente com outros cinco países, a convocação de uma conferência internacional para negociar o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares, da qual, uma vez aprovada, seria seu primeiro signatário.

Em matéria de direitos humanos, aderiu aos Pactos Internacionais da ONU, às Convenções contra Tortura da ONU e da OEA e ao Pacto de São José. Reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Manteve convite aberto a todos os mecanismos do Conselho dos Direitos Humanos (CDH) para visita ao país. Reconheceu a competência de o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial receber e analisar denúncias de racismo e/ou discriminação racial ocorridas no Brasil. Anunciou, na ONU, o comprometimento com o acolhimento de refugiados no Brasil e contribuiu para a negociação do Pacto Global sobre Migração Segura, Ordenada e Regular.

No tocante ao meio ambiente, o Brasil surpreendeu positivamente os países industrializados com o oferecimento de sediar a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Realizou, no Rio de Janeiro, este evento que transformaria a visão externa do país nessa matéria por ter se mostrado construtor de consenso entre desenvolvidos e em desenvolvimento. Mostrou-se ativo na preparação da convenção sobre Mudança do Clima e trabalhou com denodo para a entrada em vigor do Protocolo de Quioto. Atuou também no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica para o equilíbrio de posições naquele foro. Em continuidade a duas décadas de trabalho profícuo no tema, realizou no Brasil a reunião Rio+20 durante a qual defendeu o balanceamento entre os pilares ambiental, econômico e social do desenvolvimento sustentável. Assinou o Acordo de Paris sobre Mudança do Clima, documento que considerou constituir “um marco global justo, ambicioso, equilibrado e duradouro”. Lançou, a “Plataforma para o Biofuturo”, empreendimento voltado a acelerar o desenvolvimento e a implantação de biocombustíveis avançados, como alternativa aos combustíveis fósseis.

No plano do comércio regional, concluiu um tratado de integração com a Argentina para a formação de mercado comum entre os dois países, processo que acabaria redundando na criação do Mercosul, entidade que muito tem contribuído para o incremento do comércio regional. No plano multilateral, trabalhou com afinco para a conclusão exitosa da Rodada Uruguai do GATT e para a Conferência de Doha, tendo exercido liderança no âmbito da OMC para a formação de grupo de países em desenvolvimento (G-20) em defesa do fim dos subsídios agrícolas e das barreiras ao comércio da UE e Estados Unidos. Resolveu contenciosos com os Estados Unidos, UE e outros países sobre o patenteamento de produtos farmacêuticos, suco de laranja e algodão, entre outros produtos. No plano birregional, dedicou-se com afinco à negociação de acordos do Mercosul com a UE. Concluiu Acordo de Cooperação com a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com a qual desenvolveria uma parceria de «engajamento ampliado». 

A cooperação concedida a outros países em desenvolvimento tomou impulso após a redemocratização. No início de segundo milênio, cerca de 70% da cooperação concedida pelo Brasil se concentrava na América Latina e Caribe, mais da metade da qual nos setores de agrícola, saúde e educação. O Haiti constituiria o principal país a receber a cooperação, seguido de vizinhos sul-americanos. Na África, a cooperação técnica seria composta por cerca de 300 projetos em 53 países, tendo os países lusófonos recebido atenção especial, pois concentraria cerca de 76 % de toda a cooperação para aquele continente. 

A vocação pacífica brasileira

O acúmulo histórico de capital diplomático pode ser constatado por vários dados, dos quais o mais relevante é a ausência de envolvimento bélico em conflitos internacionais bilaterais há 150 anos, isto é, desde o final da Guerra do Paraguai. A não beligerância se fez acompanhar de uma nítida aversão às alianças militares, a partir da ideia de que a ONU foi criada para substituir guerras por um sistema de segurança coletiva. Esta convicção fomentou o interesse brasileiro por participação ativa no CSNU, foro do qual já ocupou assento não permanente por mais de 18 anos, recorde alcançado apenas pelo Japão. Contribuiu também para a participação em diversas forças de paz, sobretudo a partir do fim da Guerra Fria. Desde então, o Brasil participou de 33 operações das Nações Unidas e contribuiu com tropas de mais de 27.000 integrantes. A vocação pacífica brasileira se marcou também pela renúncia a armas nucleares, decisão que continua a distinguir o país de outros do mesmo porte.

Em conclusão, o capital diplomático brasileiro se formou solidamente ao longo da história da política externa brasileira, para o que muito contribuiu a tradição de continuidade na defesa dos interesses permanentes do país, independentemente da inclinação política de cada governo. Como resultado de seu percurso diplomático produtivo, o Brasil não discerne inimigos no seu horizonte e nem registra o sofrimento de ataques provindos do exterior, sejam terroristas ou outros. Tornou-se membro de inúmeros “clubes” de países, tanto na sua vizinhança, quanto de outros mais distantes, sejam estes compostos de países em desenvolvimento ou de seletos grupos de países industrializados. Alcançou significativo prestígio diplomático pela execução de sucessivas políticas coerentes com seu passado, mas sujeitas a avanços justificados e equilibrados, na busca de consenso e oportunidades para expansão de uma atuação internacional.

Seria prematura uma avaliação completa do impacto da política externa adotada pelo atual governo, em especial neste momento de recente mudança de chefia do Itamaraty. Alguns elementos, apontados adiante, sinalizam a ocorrência, de fato, da redução do capital diplomático nos dois primeiros anos do governo por causas diversas. Outros dados, por outro lado, indicam a permanência de algumas tradições e instituições que ainda preservam a experiência negociadora acumulada.

Do ponto de vista estrito da busca de solução pacífica de litígios, o saldo diplomático continua positivo, pois o atual governo não envolveu o Brasil em qualquer conflito bélico internacional. O país tampouco anunciou qualquer retorno a pretensões de produzir ou adquirir armas nucleares, como, aliás proibido pela Constituição Federal. No tocante, porém, ao tradicional universalismo da política externa, houve uma clara ruptura desta tradição quando do estreito alinhamento às posições do governo Trump nos Estados Unidos. Tal abandono do universalismo, no subperíodo inicial, fez-se acompanhar de demonstrações de desapreço por organismos internacionais, traço igualmente inusitado na política externa desde a criação da ONU. Nesse contexto, o país reduziu drasticamente sua contribuição para forças de paz, contrastando assim com os a Argentina e o Uruguai, que mantêm forças mais numerosas.

Nos principais foros especializados, sobretudo os relativos às questões de proteção do meio ambiente, logo no início do biênio inicial, o Brasil deixou de ser visto como intermediário entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em alguns temas relativos à proteção dos direitos humanos, o Brasil se encontrou muitas vezes, de forma inusitada, na companhia de número reduzido de países menos democráticos. Por outro lado, em matéria de relacionamento econômico no exterior, duas iniciativas apresentariam resultados positivos, a saber, a conclusão do acordo comercial Mercosul-União Europeia e a determinação de ingresso na OCDE, embora nenhuma destas duas iniciativas tenham ainda se concretizado.

No plano das relações bilaterais, muitas das parcerias revelaram claro desgaste como resultado de declarações públicas e de posições isoladas no seio da comunidade internacional expressas na primeira metade do mandato presidencial. O esfriamento nas relações com aliados tradicionais atingiu não apenas vizinhos latino-americanos, mas também outros países relevantes, na Europa e na Ásia. Com a mudança de governo nos Estados Unidos, o bom relacionamento passou a constituir um desafio adicional para a diplomacia brasileira. No centro dos temas objeto de discordância de países desenvolvidos destacou-se a questão do meio ambiente, especificamente o desmatamento amazônico, com o potencial de aqueles países adotarem medidas que venham a dificultar as exportações brasileiras, particularmente as agrícolas.

Graças à qualidade dos diplomatas brasileiros, teve continuidade a defesa de alguns interesses perenes do país, em áreas tais como promoção comercial, difusão cultural ou a prestação de serviços consulares à crescente comunidade brasileira no exterior. Com a exceção da determinação do fechamento de duas embaixadas na África e cinco no Caribe, foi mantido o expressivo número de representações no exterior. Além disso, não foi aumentada a proporção, tradicionalmente mínima, de nomeações políticas para chefia de representações diplomáticas.

Perspectivas futuras

Poderá o Brasil recuperar os níveis anteriores de seu capital diplomático? Embora drásticas e não superficiais, as mudanças efetuadas no início do atual governo, não atingiram o cerne da diplomacia brasileira, caracterizada por seu profissionalismo e preparo. Não tendo ocorrido alterações institucionais no Itamaraty, a recuperação do capital político-diplomático passado parece factível, ainda que venha a ser tarefa árdua e prolongada.

As razões para tal afirmação de esperança residem na manutenção de alguns elementos essenciais da carreira diplomática brasileira. Dada esta preservação, há sempre a possibilidade de reaproveitamento dos melhores valores na recuperação, lenta, mas viável, do prestígio anterior da política externa brasileira. 

Os diplomatas brasileiros, por mais bem qualificados que sejam, não poderão, porém, alterar a qualidade do relacionamento externo, seja este bilateral ou multilateral, sem que haja modificações internas que respaldem uma nova política externa restauradora do nível do capital diplomático anterior. Para tanto, seria essencial o empreendimento de esforços genuínos para mudanças e a apresentação de resultados concretos, em especial melhoras na proteção do meio ambiente. 

Em conclusão, cabe, neste momento, a tarefa de planejar as medidas a serem tomadas nos próximos anos para reaver o capital diplomático acumulado ao longo da história de modo a utilizá-lo para a reinserção brasileira nos principais fluxos de comércio, investimento e tecnologia.   


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