28 junho 2023

O desafio de não repetir Lula 1 e 2

No filme Meia-noite em Paris, o personagem interpretado pelo ator Owen Wilson vive uma epifania ao entrar em um táxi que o transporta do século 21 para a Paris dos anos 1920. Maravilhado pela companhia de Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein, o personagem retorna toda noite ao táxi em direção ao passado, em […]

No filme Meia-noite em Paris, o personagem interpretado pelo ator Owen Wilson vive uma epifania ao entrar em um táxi que o transporta do século 21 para a Paris dos anos 1920. Maravilhado pela companhia de Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Gertrude Stein, o personagem retorna toda noite ao táxi em direção ao passado, em um processo de busca repetitiva pelo período que ele considerava o mais brilhante da história. O longa-metragem dirigido por Woody Allen remete a um sentimento típico: sempre vamos tentar voltar a um momento que consideramos mágico, seja quando tínhamos o vigor da juventude ou chegamos ao ápice da carreira.

Em seu terceiro governo, diante de um problema semelhante ao que já enfrentou, Luiz Inácio Lula da Silva usa a experiência dos primeiros mandatos para decidir. É compreensível, mas os resultados nesses primeiros cinco meses são irregulares. Tentar resolver um problema novo com soluções conhecidas é a principal marca de Lula 3 até aqui. 

O desafio que irá definir o sucesso do governo Lula neste ano é a formação de uma maioria estável no Congresso Nacional. Todo o resto – a polarização na sociedade entre lulistas e bolsonaristas, a provável redução do ritmo da economia no ano que vem, os juros de dois dígitos, o boicote do PT ao ministro Fernando Haddad, a oposição hidrófoba do bolsonarismo, o desafio de preservar a Amazônia, a resistência ao presidente entre os oficiais militares, a escalada na guerra na Ucrânia etc. – são temas graves, mas podem ser contornados se Lula obtiver uma maioria parlamentar. Os três ministros com maior contato com os políticos – Rui Costa, da Casa Civil, Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, e Fernando Haddad, da Fazenda – concordam com esse diagnóstico. Só que é grande a distância entre identificar o problema e saber como resolvê-lo. 

O governo Lula demorou a perceber que o mesmo eleitor que colocou no Planalto um presidente de esquerda elegeu um Congresso de direita. Ambos têm legitimidade popular para defender interesses distintos, mas no sistema personalista da política brasileira é do presidente que os eleitores esperam e cobram as medidas para o país crescer e prosperar. Lula que faz neste terceiro mandato o seu governo mais centralizador e com menos vozes dissonantes no núcleo de poder é quem tem mais a perder no confronto.

O conflito ficou evidente em maio. Ao mesmo tempo que aprovou por 372 votos o relatório do deputado Claudio Cajado para o novo Marco Fiscal, a Câmara embaralhou a medida provisória (MP) da reorganização dos ministérios, retirando funções das pastas de Meio Ambiente, Povos Indígenas e Desenvolvimento Agrário. A MP foi aprovada no último dia possível, deixando o governo sob o risco de perder 17 ministérios apenas para que a Câmara deixasse público a sua insatisfação com a articulação política do governo.

Pressionado, Lula se encontrou com o presidente da Câmara, Arthur Lira, e com o líder do União Brasil, Elmar Nascimento, mas a intervenção foi uma solução emergencial. Montado às pressas em meio às negociações para a aprovação do Orçamento de 2023, o ministério de Lula foi montado na mesma lógica dos anteriores: um acordo com os líderes para indicação dos ministros e a manutenção da base através da distribuição de emendas.

■  Problemas conjunturais e estruturais

A relação do governo Lula com o Congresso tem problemas conjunturais e estruturais. Os conjunturais são os restos a pagar de R$ 1 bilhão em emendas individuais que o governo Bolsonaro deixou de pagar. Entre janeiro e junho, o governo Lula empenhou, ou seja, autorizou o pagamento de cerca de R$ 7 bilhões, mas até este dinheiro realmente sair vai um tempo que pode durar meses. Enquanto as verbas não chegarem nas prefeituras, o humor dos deputados não melhora.

Esta é a ponta do iceberg. Estruturalmente, o Congresso de 2023 tem mais poder do que nos oitos anos dos dois mandatos de Lula e, por isso, a distribuição de ministérios em troca de votos não é mais uma correlação direta.

Desde 2015, os congressistas se deram o direito de distribuir emendas individuais, por bancada e, finalmente, através do famoso Orçamento Secreto. Isso assegurou aos congressistas o direito de distribuir mais de R$ 35 bilhões do orçamento deste ano. No ano passado, os congressistas ligados aos presidentes Arthur Lira e Rodrigo Pacheco chegaram a ter R$ 70 milhões em emendas para dispor como quisessem. Os inimigos tiveram menos de R$ 20 milhões. Sem precisar telefonar de joelhos para nenhum ministro, os congressistas decidiam qual prefeitura iria ganhar quanto para qual obra. É um sistema no qual os deputados se tornaram vereadores federais, interessados em obras paroquiais e não em políticas públicas. 

A decisão do STF de considerar o Orçamento Secreto ilegal impede o esquema de distribuição sigilosa continuar, mas não o desejo dos congressistas de manter o seu poder. Enquanto o governo Lula não criar um sistema substituto de compartilhamento de parte do Orçamento com os congressistas, ele vai seguir acuado.

Existem ainda dois agravantes. O primeiro é a personalidade de Arthur Lira, que sob Bolsonaro operava como um primeiro-ministro e ainda não se acostumou com os novos tempos. Nos tempos de Bolsonaro, os assessores de Lira enviavam ao gabinete da então ministra de Relações Institucionais, Flávia Arruda, uma tabela Excel com os nomes dos deputados que deveriam receber as emendas. Sob Bolsonaro, a tabela Excel de Lira era uma ordem. Lula corretamente entendeu que se repetisse esse sistema, ele veria uma bancada de duas centenas de deputados fiéis a Lira, não a ele. Só que nada foi colocado no lugar.

Há um segundo ponto que impede de comparar o Congresso de 2023 com o dos anos 2002-10. Resultado da eleição presidencial mais disputada da história, o Congresso atual é mais resistente ideologicamente ao PT que os anteriores pelo crescimento da participação das bancadas ruralista e evangélica. Parte desses políticos não votarão com o governo Lula mesmo se o Orçamento Secreto ressuscitar.

■  Partidos mais divididos e lideranças pulverizadas

Como ressaltou o cientista político Sérgio Abranches em entrevista a O Globo (https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/05/entrevista-nao-adianta-ministerio-se-a-expectativa-e-ter-emenda-diz-cientista-politico-sergio-abranches.ghtml), há um último aspecto institucional. Os partidos hoje são mais divididos e com lideranças pulverizadas. Isso significa que, ao contrário do que ocorria nos governos FHC e Lula, um ministro não representa mais uma bancada de 60 deputados, mas no melhor dos casos uma ou duas dúzias de deputados. Disse Abranches:

“O engano foi imaginar que o único problema do Orçamento Secreto era a falta de transparência, quando a questão mais crítica é a entrega de nacos cada vez maiores do orçamento para quem só quer beneficiar a própria base. O ecossistema legislativo se tornou mais adverso. Não adianta dar ministério, nisso Lira tem razão, porque todo mundo está na expectativa de ter emenda”. 

“No atual momento, estamos numa transição na qual não há solução boa. O governo só consegue aprovar medidas negociadas caso a caso, compartilhando a decisão com os presidentes da Câmara e do Senado, que também ficaram com menos poder.”

Para esses problemas novos, Lula tem até o momento usado instrumentos antigos. Deu ao ministro Rui Costa a coordenação dos ministérios, numa repetição do que ocorreu com Dilma Rousseff. As liberações das emendas estão sendo feitas caso a caso, com o PT vigiando para não ver adversários serem privilegiados. Havia no início de junho, mais de 200 cargos em comissão abertos nos ministérios com indicados políticos não aprovados pela Casa Civil. A maioria foi vetada por ter empresas particulares abertas ou condenações na Justiça. No governo Bolsonaro, os critérios eram mais frouxos.

Centralizador, direto no trato no limite da grosseria e operando mais como um cumpridor de ordens do presidente do que um coordenador de ministros, o ministro Rui Costa virou alvo de ataques da oposição e de colegas. Ele merece parte das críticas que recebe. Age na Casa Civil como se fosse um governador, sem dar satisfações aos colegas e numa postura com o Congresso de quem no cargo anterior tinha controle total sobre os deputados. Como no famoso axioma do jornalista americano H. L. Mencken, contudo, todos problemas complexos têm respostas simples. E erradas. Costa é o alvo, não pelos eventuais erros, mas porque os mesmos políticos que o atacam querem atrair o presidente para o dia a dia da política, eliminando etapas nos acordos políticos. 

Na economia, Lula 3 busca o sucesso de Lula 1. Depois de titubear nos dois primeiros meses, o presidente concedeu a Haddad o controle da política econômica, assim como fez com Antonio Palocci 20 anos atrás. Com uma relação quase paternal com Lula, Haddad enfrentou um articulado tiroteio da direção do PT no início da gestão e que pode retornar caso os resultados não sejam exitosos.

O mercado continua amargo por ter sido otimista demais com o governo Lula 3, mas passou a enxergar em Haddad o meio de ter previsibilidade e lucros no resto do mandato. É lógico que o ministro é ajudado pelas alternativas. Cada tuíte de Gleisi Hoffmann ou entrevista de Aloizio Mercadante lembra à turma da Faria Lima que se eles acham que as coisas estão ruins, elas podem ficar mais turbulentas.


Semanas atrás, quando Gleisi Hoffmann conspirou publicamente para derrubar Haddad, o mercado e parte do PT entendeu o risco. Os excessos de Hoffmann geraram uma aliança tática entre Haddad, Rui Costa e Alexandre Padilha. Neste momento (frise-se o período temporal), Haddad tem uma base ministerial real para convencer Lula de tocar a economia com menos arroubos.

 O exemplo mais nítido desta mudança está na apresentação do futuro arcabouço fiscal. Em janeiro, quando Haddad apresentou o seu ajuste fiscal, a reação do mercado foi, no melhor dos casos, neutra. Mesmo quando o ministro prometeu medidas de austeridade (uma economia de R$ 50 bilhões no orçamento e um déficit cadente de 2% para algo perto de 1%), a reação variou entre o ceticismo e a descrença. Agora, com o Arcabouço aprovado na Câmara e prestes a ser votado no Senado, Haddad é o ministro mais bem avaliado do governo. Uma enquete Genial/Quaest com executivos do mercado financeiro de maio mostrou que a rejeição ao governo Lula segue alta: 86% dos entrevistados têm uma avaliação negativa, ante 90% em março. Já com Haddad, a diferença é visível. Em março, só 10% tinham uma avaliação positiva do ministro. Em maio foram 26%. Ajudou ainda a mudança na perspectiva econômica. No início do ano, a maioria das casas projetava um segundo semestre recessivo. Agora, a maior parte trabalha com um crescimento no PIB acima de 2%.

 
O estilo gradualista do ministro, que tanto irrita os setores da esquerda do PT, é exemplar na construção do texto final do projeto do arcabouço. Embora Lula e o PT tenham anunciado que derrubariam a Lei do Teto ao longo de toda a campanha, não havia um paper pronto para servir de base ao projeto substituto quando o ex-presidente foi eleito. A equipe do Ministério da Fazenda tinha uma dúzia de propostas o que é igual a não ter nenhuma – e, ao final, só um grupo restrito de cinco pessoas sabia o que estava se passando: Haddad, o número 2, Gabriel Galípolo, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, o secretário de Política Econômica, Guilherme Mello, e o secretário de Reformas, Marcos Barbosa Pinto. Para evitar vazamentos, o grupo não usou comunicação eletrônica. As ideias eram trocadas em papel. 

■  Termômetro e barômetro no Lula 3 estão disfuncionais

Em condições normais de temperatura e pressão, tendo pronto o seu principal projeto legislativo, o ministro da Fazenda o apresentaria ao presidente imediatamente. Como o termômetro e o barômetro no governo Lula 3 estão disfuncionais, Haddad apresentou o projeto primeiro à diretoria do Banco Central, depois à equipe do Planejamento e da Indústria e Comércio. O fato de Roberto Campos Neto, Simone Tebet e Geraldo Alckmin terem debatido o projeto antes dos ministros petistas é um sinal da independência de Haddad, mas também do seu isolamento com o resto do partido.

Haddad repete Palocci porque este é o espaço concedido por Lula. Entre 2003 e 2005, Palocci manteve um bunker liberal na economia: Henrique Meirelles no Banco Central, Joaquim Levy na Secretaria do Tesouro e Marcos Lisboa na Secretaria de Política Econômica. Economistas do PT liderados pela então deputada Maria da Conceição Tavares organizaram abaixo-assinados contra a equipe e a substituição de Palocci por Aloizio Mercadante. Lula sustentou Palocci, mas mantinha um jogo dúbio. Apoiava as reclamações do vice José Alencar por juros mais baixos, reclamava da austeridade fiscal e, depois que o ajuste começou a dar resultados, passou a dar voz a ministros desenvolvimentistas, como Dilma Rousseff. Em seu primeiro governo, Lula deixava a Palocci o papel do gestor malvado e tomava para si o papel de dar boas notícias. É o que parece ser o caso com Haddad.

Na política externa é área na qual o software de Lula 3 se mostra mais desalinhado até o momento. Saudada por praticamente todos os líderes mundiais como um avanço em relação ao governo Bolsonaro, uma fonte de desgaste foi criada por Lula para si mesmo, com sua disposição de ser mediador da Guerra na Ucrânia. As declarações pró-Rússia do presidente e do seu assessor internacional Celso Amorim, tiraram do Brasil o papel de um possível mediador imparcial do conflito.

Se os países ocidentais e a Ucrânia desconsideram o Brasil como mediador confiável, para que Lula deve insistir em intervir numa guerra que ocorre a mais de 10 mil quilômetros de distância? Por que continuar sem nenhum sinal russo de uma retirada e com a China se movendo de fato para ser, ela, a real protagonista de qualquer eventual acordo?

A resposta está na ambição de Lula de ser candidato ao Prêmio Nobel da Paz. A possibilidade foi citada por amigos de Lula ao longo da campanha de 2022, numa comparação do então candidato com o líder sul-africano Nelson Mandela, que deixou a prisão para unir seu país depois de décadas de um dos piores sistemas segregacionistas da história e, por isso, recebeu o Nobel da Paz de 1993. À época, os assessores diziam que ao retomar as medidas para proteger a Amazônia da sanha de madeireiros, fazendeiros e garimpeiros, Lula se tornaria um herói global. Se além disso pudesse usar a sua conhecida habilidade de negociação para parar a guerra na Europa, o Nobel seria inevitável. Lula acreditou.

O track-record de Lula na arena internacional é real. Entre 2003 e 2010, o Brasil conseguiu que Hugo Chávez aceitasse regras democráticas na disputa com a oposição, transformou a Bolsa Família em um programa de exportação de soft power e modelou com George W. Bush a criação do G-20. Seu maior fracasso – a tentativa de forçar o Irã a aceitar regras no enriquecimento de urânio – foi a base do acordo posterior, envolvendo os EUA. Só que o mundo de 2023 é mais complexo do que o de 2010, e ações que deram certo, então, não funcionam mais. 

 As idas-e-vindas das declarações de Lula sobre a guerra na Ucrânia revelam incompreensão sobre a importância da ameaça russa para a Europa e o peso dado pelos americanos ao novo papel da China. Está mais difícil se equilibrar como uma potência que fala com todos, como Lula fazia nos primeiros mandatos. A nova conjuntura exige de Lula mais cautela nas declarações, menos antiamericanismo de centro acadêmico e muito mais dedicação ao tema. 

Eleito com uma vantagem mínima no segundo turno, Lula herdou um país polarizado dentro e fora da política. A tentativa de golpe em 8 de janeiro ainda é uma ferida aberta na democracia que o presidente não foi capaz ainda de fechar. O governo não tem maioria no Congresso e depende dos votos da direita para aprovar as suas pautas. As promessas de campanha de um avanço social serão cobradas e só terão uma resposta sustentável se a economia acelerar. A Amazônia é uma questão global, mas a responsabilidade maior é brasileira. Os desafios podem até guardar semelhanças com os de 20 anos atrás, mas as condições são distintas. Os problemas novos vão exigir um Lula novo.     n


THOMAS TRAUMANN é jornalista, mestre em Ciência Política e consultor de risco político. Foi ministro de Comunicação Social (2014) e é autor de “O Pior Emprego do Mundo”, sobre ministros da Fazenda

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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