01 outubro 2010

O Desafio de Superar a Belíndia

O momento atual é positivo, mas igualmente desafiador. Apesar do sucesso recente, há inúmeros obstáculos a serem superados nos próximos anos. Alguns dizem respeito à própria sustentação do modelo de estabilização adotado; outros, à ambição da nação em dar um salto histórico, como fizeram alguns países asiáticos nas últimas três décadas. A fase atual pode não ser sustentável no médio e longo prazos, uma vez que o tripé de política econômica adotado desde 1999 – que compreende equilíbrio fiscal, sistema de câmbio flutuante e regime de metas para inflação – enfrenta desgastes e questionamentos por parte do governo Lula e por aqueles que podem sucedê-lo a partir de janeiro de 2011, escreve o colunista e editor-executivo do Valor Econômico.

O Brasil conquistou, no espaço de 25 anos, estabilidade política e econômica. Os resultados das eleições não são mais contestados e não há, neste momento, expectativa de reversão da ordem democrática no futuro previsível. Na economia, o País superou a hiperinflação, tornou o Estado solvente e aumentou, nos últimos anos, o crescimento potencial do Produto Interno Bruto (PIB). Os avanços permitiram diminuir a pobreza e a distância entre ricos e pobres, ainda que, neste caso, de forma acanhada.


O momento é positivo, mas igualmente desafiador. Apesar do sucesso recente, há inúmeros obstáculos a serem superados nos próximos anos. Alguns dizem respeito à própria sustentação do modelo de estabilização adotado; outros, à ambição da nação em dar um salto histórico, como fizeram alguns países asiáticos nas últimas três décadas.
Desde o lançamento do Plano Real, em 1994, a economia brasileira viveu três momentos distintos. O primeiro (1994-1998) foi marcado por um processo radical de desinflação (o IPCA caiu de 2 477,15% em 1993 para 1,6% em 1998, uma taxa suíça). O segundo período (1999-2006) caracterizou-se pelo ajuste das contas públicas e externas, tarefa que resultou no abrandamento de duas vulnerabilidades históricas do País. O terceiro momento (de 2007 em diante) distingue-se pela retomada do crescimento a taxas superiores a 5% ao ano, fato que só não se verificou em 2009 por causa da crise financeira internacional.

Embora auspicioso, o momento atual pode não ser sustentável no médio e longo prazos, uma vez que o tripé de política econômica adotado desde 1999 – que compreende equilíbrio fiscal, sistema de câmbio flutuante e regime de metas para inflação – enfrenta desgastes e questionamentos por parte dos atuais inquilinos do poder e por aqueles que podem sucedê-los a partir de janeiro de 2011. Um de seus pilares – o equilíbrio fiscal – está fragilizado graças à escalada de gastos públicos promovida pelo governo Lula no segundo mandato e que teve efeito dominó nos outros poderes da República.


O aumento das despesas, especialmente as de caráter permanente, como os salários dos servidores e os gastos previdenciários, e as da carga tributária, que chegou a 36% do PIB, a mais alta dos países em desenvolvimento, piorou sobremaneira a qualidade do ajuste fiscal. Apesar da elevada carga tributária, o Estado brasileiro segue deficitário, consumindo poupança (cerca de 2,1% do PIB em 2010, segundo estimativa do Ministério da Fazenda) que poderia estar financiando investimentos do setor privado.

Previdência dos funcionários públicos


A responsabilidade fiscal, conquistada a duras penas a partir de meados dos anos 1990, corre sérios riscos. Se já não bastasse o forte incremento das despesas primárias (exclusive o gasto com o pagamento dos juros da dívida pública) na gestão Lula, que aumentaram 2,1 pontos percentuais do PIB entre 2003 e 2009, velhos problemas seguem sem solução. Um deles diz respeito à previdência dos funcionários públicos.

Em 1995, o governo gastou com aposentados e pensionistas dos três poderes da República r$ 15,1 bilhões. No ano passado, a despesa chegou a r$ 67 bilhões, o equivalente a 40% do gasto total da União com pessoal. A diferença entre o que o governo arrecada dos funcionários e o que paga em benefícios previdenciários chegou a r$ 38,1 bilhões em 2009. No Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o déficit em 2009 alcançou r$ 42,8 bilhões. Em 2010, de acordo com estimativas oficiais, o déficit dos funcionários vai superar o do RGPS.


No primeiro caso são beneficiados menos de um milhão de aposentados; no segundo, cerca de 27 milhões. Enquanto o valor médio das aposentadorias pagas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é hoje de r$ 715,44, no serviço público o benefício médio pode chegar a quase 23 vezes esse valor (Poder Legislativo). O teto pago pelo INSS – r$ 3 416,54 – é bastante inferior ao valor médio das aposentadorias nos três poderes.

O governo Lula chegou a aprovar no Congresso, em seu primeiro ano de mandato, emenda constitucional que iguala as regras de aposentadoria de servidores públicos e trabalhadores do setor privado. Para entrar em vigor, a reforma depende, no entanto, da instituição de um fundo de previdência complementar para os servidores, mas o presidente Lula, aparentemente arrependido de ter proposto essa reforma por causa do desgaste político, desistiu de regulamentá-la.

O crescimento de despesas obrigatórias aumenta a rigidez orçamentária e diminui o espaço para o governo investir em infraestrutura e mesmo em áreas vitais, para o futuro do País, como educação e saúde. Quando se somam os gastos do INSS com os dos inativos do setor público e da Loas, a conta equivale a 50,1% da receita líquida do governo central. Em 1991, era 35,8%.
Mas não é somente a responsabilidade fiscal que vem sendo ameaçada. Mais recentemente, o governo deu indicações contundentes de que voltou a influir abertamente nas decisões do Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom), instância responsável pela definição da taxa básica de juros (Selic). Como se sabe, o Banco Central não dispõe de independência legal, mas opera, desde a implantação do regime de metas para inflação, com autonomia operacional, pré-requisito para o bom funcionamento desse regime.

A interferência do Palácio do Planalto no Copom, ainda que de forma sub-reptícia, cria dúvidas quanto ao sucesso futuro do atual modelo de estabilização. Pode estar, em curso, como já ocorreu diversas vezes na história do País, o abandono da responsabilidade monetária, além da fiscal, em favor de uma aceleração das taxas de crescimento do PIB a qualquer custo.

Ainda está fresca na memória de muitos brasileiros a experiência do regime militar, que, num primeiro momento, controlou as contas públicas e criou um Banco Central independente, mas já no período seguinte escancarou os cofres do Tesouro e desmoralizou a autoridade monetária. O objetivo era fazer a economia crescer a taxas elevadas, o que acabou ocorrendo: entre 1967 e 1973, o Brasil cresceu a uma taxa média anual superior a 11%. O custo daquela política se materializou, entretanto, nas duas décadas seguintes, quando o País padeceu de males como hiperinflação, falência do Estado, moratória externa e estagnação. As sementes do infortúnio foram plantadas durante o período que ficou conhecido como o “milagre econômico”.

Estabilização da economia, uma obra inacabada


O notável esforço de estabilização dos últimos 16 anos não esconde o fato de que, nos oito anos de mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), a inflação acumulada foi de 100,68%. Nos dois mandatos de Lula (2003–2010), o IPCA acumulado vai a 56%. Isto mostra que, certamente, houve ganhos de um período para o outro, mas a variação acumulada desde 1995 é significativa: 213,8%.,


O governo Lula, depois de trazer a inflação de 12,5% em 2002 para 3,1% em 2006, se contentou, a partir de 2007, em manter a meta em 4,5%. A justificativa foi a de que um pouco mais de inflação permite um pouco mais de cresc
imento econômico. Na verdade, a inflação corrói o poder de compra dos trabalhadores, gera pressões pela reindexação dos salários – e, em decorrência, dos preços e contratos em geral – e diminui a efetividade dos programas de transferência de renda, bem como de toda e qualquer iniciativa na área social.

Há uma persistência inflacionária no Brasil. Dois exemplos recentes comprovam isso. Em 2008, quando estourou a crise internacional, a economia brasileira experimentou paralisação súbita da atividade econômica no último trimestre. Ainda assim, a inflação anual foi a 5,9%, valor um pouco abaixo do limite superior (6,5%) de tolerância do regime de metas. No ano passado, mesmo com a contração de 0,2% do PIB, o IPCA fechou em 4,3%. Neste ano, com a aceleração da atividade, voltou a subir de forma perigosa, apontando os limites da expansão da economia.

Não é só a inflação que preocupa. Como o atual governo interrompeu o ciclo de reformas institucionais iniciado por seu antecessor, o Brasil está sendo obrigado cada vez mais a importar poupança, o que, em última instância, aprecia a taxa de câmbio e diminui a competitividade das empresas brasileiras dentro e fora do País. Segundo o Banco Central, o déficit em transações correntes deve chegar a us$ 50 bilhões este ano, o equivalente a 2,5% do PIB.

Crescimento sustentado, um problema

O Brasil é um país que tem uma taxa de câmbio apreciada porque consome muito e economiza pouco. Para crescer, tem de importar poupança, num processo que valoriza o real frente ao dólar. No pacto social brasileiro, a opção preferencial é pelo presente em detrimento do futuro. A persistir nessa direção, o País assistirá ao encolhimento do setor industrial e, se tiver sorte, ao florescimento do setor primário. Daqui a alguns anos, se cumprir certas condições de financiamento de suas contas externas, tem chances, como economia e não como sociedade, de se parecer mais com a Austrália do que com a China.

No social, muito ainda a ser feito

No mapa mundial da desigualdade medido pelo coeficiente Gini, o Brasil só aparece numa situação mais favorável, na América do Sul, do que o Paraguai, a Bolívia e a Colômbia. Tem um percentual de população urbana com acesso a instalações sanitárias menor do que o da maioria dos países da América Latina. Dentro do país, a desigualdade é gritante: enquanto em Alagoas, esse percentual é de apenas 28%, em São Paulo é de 91%.

O Brasil também tem expectativa de vida menor que a maioria dos latino-americanos. A Nicarágua, por exemplo, tem 1/4 do PIB per capita brasileiro, mas sua população vive mais. Novamente, dentro do Brasil, as distâncias são enormes – enquanto no Maranhão, o estado mais pobre, vive-se, em média, entre 61 (negros) e 63,9 anos (brancos), em São Paulo, o mais rico, a expectativa vai, respectivamente, de 69 a 72,3 anos.

A tragédia brasileira ganha contornos mais nítidos na área educacional – e aqui vale registrar que o problema não se limita à escassez de recursos, mas às escolhas das autoridades. No último exame (2009) de proficiência em ciências do PISA – o teste de avaliação da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – 60% dos estudantes brasileiros tiveram nota abaixo do nível 2, numa escala que vai de 1 a 6. Num ranking de 57 nações, o país aparece em 52o lugar, atrás, por exemplo, de Colômbia, Argentina e México.

Deficiências no gasto com educação

O País conseguiu, nas últimas duas décadas, praticamente universalizar o acesso das crianças ao chamado ensino fundamental. Foi um avanço importante, mas a etapa seguinte – o acesso ao ensino médio – foi inexplicavelmente negligenciada. De cada dez crianças que concluem o fundamental, apenas cinco continuam estudando. Esta é uma tragédia da qual pouco se fala no Brasil.

O governo Lula, em vez de priorizar essa etapa do ensino, decidiu investir pesadamente na criação de universidades federais e no acesso de estudantes carentes a faculdades particulares. No ano passado, o investimento público por estudante superou us$ 10 mil, face a pouco mais de us$ 8 mil na Coreia.A educação terciária, dizem os especialistas, favorece as classes de renda mais alta.
Alega-se oficialmente em Brasília que, para os jovens sem acesso ao ensino secundário e universitário, vêm sendo oferecidas vagas em novas escolas técnicas. É um fato, mas isso não justifica o descaso com o ensino médio. Um aluno de escola técnica que não passa pelo segundo grau é menos eficiente do que aquele que faz o curso regular.

Outra tragédia na área educacional está na qualidade do ensino. Além do fraquíssimo desempenho dos estudantes brasileiros em testes internacionais, dados oficiais mostram que, em 2007 (última informação disponível), a proficiên-cia em Língua Portuguesa e Matemática dos alunos da quarta e da oitava séries do ensino fundamental e do terceiro ano do médio foi praticamente a mesma de 1995. É verdade que, no governo anterior, ela também não aumentou, mas, por isso mesmo, o Ministério da Educação deveria ter priorizado o enfrentamento do problema. Não o fez.

Os números são inconvenientes. Numa prova de 500 pontos feita em 1995, os estudantes da quarta série tiraram, nos testes oficiais de Matemática aplicados pelo Ministério da Educação, nota média de 190,6 pontos. Em 2007, a média foi praticamente a mesma: 193,4 pontos. Na oitava série, caiu de 253,2 para 247,3 pontos e, no terceiro ano do 2o grau, de 281,9 para 272,8 pontos. Na prova de Português, todas as notas, nas três séries avaliadas, pioraram no mesmo período.

Um trabalhador educado contribui para o aumento da produtividade da economia, o que, em última instância, ajuda a controlar custos (e a inflação) e, dessa maneira, a criar as condições para o País crescer de forma mais célere. Mesmo as boas iniciativas adotadas nessa área nos anos recentes são tímidas frente às necessidades.

Políticas de distribuição de renda


Todas as questões mencionadas dizem respeito a temas de interesse nacional em disputa nestas eleições. Embora os candidatos à Presidência não abordem diretamente os assuntos citados, é disso que se trata quando eles falam de carga tributária elevada, gasto público rígido e insustentável, taxa de câmbio apreciada, déficit externo crescente, mão de obra desqualificada, etc. A combinação dessas deficiências asfixia o investimento privado, perpetua os gargalos existentes no setor produtivo, bloqueia o desenvolvimento da infraestrutura e, mais do que isso, impede o desenvolvimento pleno de milhões de brasileiros.

É colunista e editor-executivo do Valor Econômico.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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