28 junho 2023

O desarranjo institucional e uma agenda para unir o Brasil

O presidente Lula começou mal o seu terceiro mandato. A inexistência de uma visão clara das reais prioridades do país o levou a perder tempo precioso para reconciliar a nação dilacerada pela polarização política e pavimentar o caminho da retomada do crescimento econômico. Em poucos meses, tornou-se evidente a disfuncionalidade do governo e a incapacidade […]

O presidente Lula começou mal o seu terceiro mandato. A inexistência de uma visão clara das reais prioridades do país o levou a perder tempo precioso para reconciliar a nação dilacerada pela polarização política e pavimentar o caminho da retomada do crescimento econômico. Em poucos meses, tornou-se evidente a disfuncionalidade do governo e a incapacidade de o presidente Lula construir uma base de apoio político no Congresso. Ao perceber que o governo está à deriva, os interesses imediatistas e paroquiais da política ocuparam o palco central. O loteamento de cargos no governo federal e a distribuição generosa de verbas para parlamentares não foram suficientes para edificar uma sólida maioria no Parlamento. A lua de mel com o povo está prestes a terminar e o tom das cobranças aumentará com a crescente percepção de que o país permanecerá no atoleiro do baixo crescimento econômico e dividido pela polarização política.

A primeira medida urgente do presidente Lula deveria ter sido a reconciliação da nação. Ele precisava de gestos de grandeza, como Nelson Mandela fizera assim que assumiu a presidência da África do Sul em 1994. Numa nação dilacerada pelo regime de apartheid que o condenou a mais de 20 anos de prisão, Mandela fez questão de manter cidadãos brancos e pretos nas funções que ocupavam no Poder Executivo para dar exemplo de um líder capaz de superar as rivalidades, animosidade e desconfiança que dividiram o país e mostrar sua disposição de construir uma nova África do Sul. O gesto inicial de Mandela enfureceu os seus liderados e gerou desconfiança entre seus antigos adversários, mas seu exemplo, perseverança e vontade genuína de ser o presidente de todos os sul africanos foi crucial para cicatrizar as feridas e os traumas de uma nação dividida. A reconciliação da nação foi a pedra angular para construir a confiança no governo, nas instituições e na democracia sul-africana.

O presidente Lula nada fez nesse sentido. Ao contrário, fez questão de mostrar o seu ressentimento em relação ao governo passado, culpando o ex-presidente por todos os infortúnios do país e deixando claro que pretendia assumir a presidência da República para reescrever a história do país e apagar as perseguições “injustas” que ele e os petistas sofreram por causa das denúncias dos escândalos de corrupção desvendados pela Operação Lava Jato. A sua lamentável declaração, revelando o seu desejo de destruir o senador (e ex-juiz) Sergio Moro é um triste retrato de um político vingativo e incapaz de reconciliar a nação.

■ Uma nação dividida é incapaz de crescer

Lula não aprendeu a principal lição de Mandela; uma nação dividida é incapaz de crescer, prosperar e enfrentar as mudanças necessárias de crença, atitude e comportamento para superar as divisões políticas e construir uma agenda mínima em torno das reformas inadiáveis do Estado. A polarização impede a criação de um mínimo denominador comum de entendimento, tolerância, respeito, civilidade e confiança. Esses atributos são fundamentais para unir o país e avançar com as reformas capazes de tirar o Brasil do atoleiro do baixo crescimento econômico e da ineficiência de um Estado capturado pelas corporações pública e privada.

O PT sabota as reformas porque suas crenças continuam enraizadas em ideias obsoletas que arruinaram a América Latina. Os discursos e atitudes do presidente Lula refletem a mentalidade arcaica que predomina na política brasileira. Infelizmente, existe uma parcela significativa da classe política e do corporativismo do setor privado que ainda acredita nas virtudes do nacional desenvolvimentismo. A facção mais retrógrada deseja ressuscitar as estatais e aumentar a intervenção do Estado na economia para conter a “ganância” do mercado, fazer justiça social e beneficiar com subsídios e reservas de mercado o corporativismo público e privado. Já a versão mais “liberal” dos defensores do nacional desenvolvimentismo procura conciliar o Estado forte com os princípios da economia de mercado. Singapura é uma espécie de modelo ideal: a existência de um Estado poderoso e centralizador, mas um país que goza de grande liberdade econômica. A insistência nas premissas do nacional desenvolvimentismo não contribuirão para melhorar o ambiente de negócio e criar as condições necessárias para o setor privado competir, investir e florescer por meio do livre mercado.

O modelo do Estado intervencionista na economia, centralizador nas suas decisões políticas e indutor do crescimento por meio de investimento público, subsídios setoriais e reserva de mercado teve o seu período de glória no Brasil de 1945 a 1980. Governos democráticos e autoritários seguiram rigorosamente a partitura do nacional desenvolvimentismo e o país foi uma das economias que mais cresceram no mundo durante o período. Mas as teorias do nacional desenvolvimentismo foram sepultadas nos anos 80 do século XX.

A agenda da abertura econômica, privatização, desregulamentação, desburocratização e redução de tarifas e de barreiras comerciais propiciaram o aumento da concorrência, produtividade e competitividade, permitindo o extraordinário crescimento econômico dos países emergentes, o surgimento das cadeias globais de valor e um grau de liberdade econômica ímpar no mundo. Testemunhamos o crescimento exponencial de países como Coreia do Sul e China, a recuperação econômica dos Estados Unidos e da Comunidade Europeia e a valorização das commodities que beneficiou o Brasil. Mas o país cresceu muito abaixo da média dos emergentes porque não tivemos coragem de nos libertar das amarras do nacional desenvolvimentismo e abraçar as reformas liberais.

Continuamos a ser uma das economias mais fechadas do mundo, o que retarda o crescimento econômico e reduz a nossa capacidade de competir no comércio global. Insistimos na intervenção do Estado na economia, na criação de reserva de mercado e na manutenção de um sistema perverso de incentivos, subsídios e regimes especiais que deturpam a saudável concorrência de mercado. Somos obrigados a conviver com uma enorme insegurança jurídica, estimulada pela mudança constante do entendimento das regras do jogo, o que aumenta drasticamente a imprevisibilidade do cumprimento de contratos e a confiança nas leis. Os exemplos de ameaças ao desarranjo institucional são preocupantes, como retratam as atitudes do governo em modificar a Lei das Estatais, o marco do saneamento básico e a intervenção na autonomia do Banco Central.

O presidente Lula empenhou-se na modificação da Lei das Estatais para indicar afilhados políticos para cargos nas empresas estatais. A lei havia sido criada em 2016 justamente para evitar indicações políticas que se tornaram o elo central dos escândalos de corrupção, desvendados pela Operação Lava Jato. A profissionalização da gestão das estatais teve um papel central na recuperação de empresas públicas que quase faliram por causa dos esquemas de corrupção. Em seguida, Lula enviou um decreto presidencial para o Congresso Nacional que liquidava a essência do marco do saneamento básico: aumentar a concorrência de mercado e atrair os investimentos privados necessários para universalizarmos o saneamento até 2033. O decreto excluía as estatais da necessidade de participar das licitações, mantendo uma reserva de mercado para empresas que demonstraram nas últimas décadas uma atroz incompetência de gestão e absoluta incapacidade de investimento para universalizar o saneamento. Felizmente, a Câmara dos Deputados derrubou o decreto e deixou claro que a prioridade não é o corporativismo estatal, mas 100 milhões de brasileiros que não têm acesso ao esgoto tratado e 35 milhões que não possuem água tratada. Por fim, os ataques insistentes de Lula ao Banco Central demonstram sua incapacidade de respeitar a autonomia dos órgãos de Estado e seu desejo de transformá-los em serviçal da vontade do governo. O presidente da República não aprendeu com os erros do passado. Quando a presidente Dilma Rousseff forçou o presidente do Banco Central a baixar o juro, o resultado foi um desastre. A queda artificial da taxa de juros elevou a inflação para dois dígitos, colaborou para agravar o colapso das contas públicas e culminou com o processo de impeachment da presidente em 2016.

■ Aversão às regras da economia de mercado

O desmantelamento da governança pública torna-se ainda mais preocupante quando vem acompanhado do rancor petista e sua aversão às regras da economia de mercado. Ao ser conivente com a invasão de terras produtivas e prestigiar o líder do Movimento Sem Terra, João Pedro Stédile, convidando-o para uma viagem oficial à China, a administração petista revela seu escárnio pelo respeito à propriedade privada e acirra a animosidade com o agronegócio –, o setor mais competitivo do país e responsável por 1/3 do PIB. Ao provocar o Supremo Tribunal Federal a rever os termos da privatização da Eletrobras, o governo indica seu menosprezo por uma empresa privatizada com o aval do Congresso e cujas regras foram definidas pela União. Ao intervir na Petrobras e abandonar o preço de paridade internacional como referência, Lula deixa claro que, no Brasil, o preço do petróleo é ditado pelo governo, e não pelo mercado.

Só há uma maneira de frear esse desarranjo institucional liderado pelo governo Lula. Será preciso unir o Congresso, a sociedade civil e o mercado em torno de uma agenda nacional para assegurar a retomada do crescimento econômico e a aprovação das reformas inadiáveis. As duas grandes alavancas do crescimento são o meio ambiente e a abertura econômica. O Brasil tem capacidade de capturar metade da emissão de carbono do mundo e se tornar a primeira grande economia carbono zero. Mas esse potencial só será convertido em riqueza, renda e emprego se o governo e o mercado estiverem em sintonia. O mercado precisa de regras previsíveis para investir na bioeconomia e no plantio de árvores em terras degradadas e se transformar numa importante fonte de receita e emprego para mais de 4 milhões de pequenos proprietários de terra. O enorme avanço em energia renovável no país (eólica e solar) aconteceu a despeito do Estado. Os investimentos em energia solar custaram 1/4 do preço da usina de Belo Monte e produzem quatro vezes mais energia. Mas o setor elétrico carece de investimento em geração distribuída e em termelétricas de gás e biodiesel para garantir a estabilidade do fornecimento de energia. O investimento não virá se o governo cultivar sua animosidade ideológica em relação ao mercado e ao setor privado. Ademais, o agronegócio sustentável continuará a ser um setor estratégico para assegurar o crescimento do país e de suas exportações.

A abertura econômica é vital para a retomada da competitividade e da produtividade. A abertura comercial foi responsável pelo crescimento da economia global, redução da pobreza mundial e desenvolvimento dos países emergentes. O Brasil precisa desburocratizar processos, derrubar reservas de mercado e barreiras tarifárias e regulatórias; investir na educação profissionalizante e na capacitação da mão de obra; padronizar regras contábeis, tributárias e trabalhistas, adotando os padrões internacionais da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE); e avançar com acordos comerciais, como o Mercosul-Comunidade Europeia e o Transpacífico. A reforma tributária é fundamental para destravar um dos maiores gargalos da competitividade do país. Convivemos com um sistema tributário disfuncional que é responsável pela judicialização de 70% do PIB, quando a média do contencioso tributário da OCDE é 0,28% do PIB. A simplificação das regras tributárias e a adoção do Imposto sobre valor agregado (IVA) são medidas indispensáveis para impulsionar a competitividade do país.

Por fim, precisamos avançar com a reforma administrativa. A valorização dos bons servidores que se destacam pelo seu desempenho é vital para estimular a meritocracia no serviço público e estabelecer critérios claros para ascensão na carreira. O bom funcionamento da democracia depende de uma burocracia competente, meritocrática e focada em prestar serviço público de qualidade e a criação de sistemas de avaliação constante de desempenho e de mensuração de eficiência de políticas públicas. No Brasil, existem algumas ilhas de excelência no funcionalismo público, como o Itamaraty, Banco Central e Forças Armadas, mas é preciso expandir a cultura da meritocracia para toda a burocracia.

Se nos unirmos em torno dessa agenda nacional, teremos a chance de modernizar o país e promover o desmantelamento do Estado nacional desenvolvimentista. Essas medidas são vitais para recuperarmos a capacidade de competirmos no mercado global, impulsionarmos o ganho de produtividade e transformarmos o Brasil em potência ambiental. Após 40 anos de baixo crescimento econômico, temos obrigação de deixar um país melhor para os nossos filhos e netos. Esse objetivo só será alcançado se deixarmos de nos iludir com governos populistas, abraçarmos a agenda modernizadora e termos coragem de sepultar o nacional desenvolvimentismo que nos manteve ancorados no passado, impedindo o avanço econômico, político e social do país.


LUIZ FELIPE D’AVILA é administrador, cientista político, professor e escritor. Formou-se em Administração Pública na Harvard Kennedy School e em Ciência Política na Universidade Americana de Paris.

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