O desvirtuamento de um Tribunal
1. Separação constitucional de poderes
Um dos mais importantes elementos da Constituição de 1988, que estrutura nossa República democrática, é o sistema de checks and balances (sistema de freios e contrapesos), mais conhecido como princípio da separação de poderes, que podemos classificar como sua mais importante cláusula pétrea.
A ideia central da separação dos poderes é garantir a plena independência externa de cada um dos três poderes, vez que não temos poder moderador. Em nossa História só houve um poder desta natureza logo após a proclamação da Independência por D. Pedro I, que o reservou para si na Constituição do Império.
No mais, Executivo, Legislativo e Judiciário são plenamente independentes e ao mesmo tempo se controlam reciprocamente, nos termos da Constituição, sendo vedada qualquer espécie de mudança na Constituição que possa desarranjar ou desestruturar este modelo.
O sistema de separação de poderes nos leva aos ensinamentos de Montesquieu: “Todo homem que tem poder é levado a abusar dele, vai até encontrar os limites. Por isso, é necessária a divisão de poderes. Para que cada poder freie o outro; impeça o abuso por parte deste. Quando se depara com o poder concentrado é que melhor se entende necessária a divisão dele”.
O trecho faz parte hoje do cerne do constitucionalismo moderno, objeto de construção detalhada na obra O Espírito das Leis, de 1748 (41 anos antes da Revolução Francesa), que integra nossa Constituição logo no artigo segundo. O brado histórico de Montesquieu serviu como inspiração mundial na ruptura com o absolutismo, em que o rei concentrava todo o poder.
2. Turbulências políticas. O avião balançou
Temos vivido no Brasil, como se sabe, turbulência institucional e política e o golpismo bateu às nossas portas há não muito tempo, ocorrendo atos públicos em que foram vistos cartazes defendendo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso. Num recente 7 de Setembro, o ex-presidente da República chegou a bradar que não mais obedeceria às decisões de um dos ministros da Suprema Corte.
Em 8 de janeiro de 2022, como se sabe, houve ataque simultâneo aos prédios-sede dos três poderes por hordas, mais de 40 jornalistas foram espancados, bens do patrimônio público foram subtraídos e outros foram danificados. O ‘avião balançou’, mas a força das instituições democráticas foi maior felizmente, e o Estado de Direito foi preservado.
3. Origens históricas dos tribunais de Contas
Desde sua criação, um ano após a Proclamação da República, por força do Decreto 966-A, elaborado por Ruy Barbosa, que foi o primeiro cidadão brasileiro a ocupar o cargo de ministro da Fazenda do Governo Provisório, instituiu-se em nosso país o Tribunal de Contas, na qualidade de órgão eminentemente fiscalizador, de apoio ao Poder Legislativo, para examinar, revisar e julgar operações decorrentes da receita e despesa da República.
Nascia o Tribunal de Contas da União e depois surgiriam os tribunais de Contas dos estados e ainda em alguns municípios maiores os tribunais de Contas dos municípios, cujos magistrados são denominados, em nível federal, ministros e em nível estadual e municipal, conselheiros.
Ao longo das décadas, a instituição do Tribunal de Contas, cujo modelo de funcionamento se inspira na mecânica lusitana, foi mantida e seu conceito fundamental é estabelecido pela Carta Magna.
Nos termos do artigo 71 da Constituição Federal de 1988, atribuiu-se o controle externo da Administração Pública ao Tribunal de Contas da União, na condição de instituição auxiliar do Congresso Nacional.
4. Desvios de rota. A PEC 2/18
Ao longo do tempo, entretanto, inúmeros desvios, ilegalidades e ilícitos vêm rondando o mundo dos tribunais de Contas no Brasil, cuja escolha dos componentes é única e exclusivamente política. Dois casos foram marcantes em nossa história recente.
A Operação ‘Quinto do Ouro’, deflagrada em 2017, envolvendo a prática de corrupção sistêmica no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, que ensejou a prisão de cinco dos sete conselheiros (71% do Tribunal), inclusive Domingos Brazão. Sete anos passados, o mesmo conselheiro Domingos Brazão e seu irmão Chiquinho Brazão estão presos pelo homicídio de Marielle Franco, crime de repercussão internacional.
Diante deste triste e lamentável contexto, há proposições no âmbito do Congresso buscando a uniformização, modernização e eficiência dos tribunais de Contas, sendo importante destacar o tema objeto da PEC 2/2018 que se volta à questão da extinção ou mitigação do critério político para a composição dos tribunais de Contas, há tempos discutida.
Nos últimos anos, muitos casos ganharam destaque nacional quando governadores articularam as nomeações das respectivas esposas para as transformar em conselheiras vitalícias nos respectivos Estados, ‘fiscalizando’ os próprios maridos, situação que evidentemente conspira contra os princípios da impessoalidade, moralidade e prevalência do interesse público.
Isto ocorreu na Bahia, em Roraima, no Amapá, no Pará, em Alagoas e no Piauí, destacando-se que no caso da Bahia a nomeada é enfermeira e nos casos de Piauí e Alagoas ambas são administradoras de empresas.
Nos casos do Bahia, Amapá e Piauí os então governadores Rui Costa, Waldez Góes e Wellington Dias, além de terem as esposas empossadas conselheiras dos respectivos tribunais de Contas, foram duplamente premiados em 2023, recebendo cada um deles um cargo de ministro de Estado do presidente Lula ao ser empossado em seu terceiro mandato.
5. O PLP 79/22 para a eficiência e modernização
dos tribunais de Contas
Merece especial atenção o objeto do Projeto de Lei Complementar 79 de 2022, que estabelece normas gerais de fiscalização financeira da administração pública direta e indireta da União, dos estados e Distrito Federal e dos municípios, dispondo também sobre a simetria de que trata o artigo 75 da Constituição Federal, abrangendo também o autocontrole, controle interno, externo, sistema nacional de auditoria do SUS e controle social.
Ou seja, o PLP 79/22 procura garantir avanço e modernidade no plano do controle das contas públicas, além da interoperabilidade tecnológica, eficiência das instituições, visando proteger o patrimônio público, em nome da prevalência do interesse público.
Propõe a padronização das funcionalidades dos diversos sistemas centralizados e mantidos pela União, além de criar demonstrativos eletrônicos para controle público e social dos cargos em comissão, contratação temporária, terceirizações e despesas indenizatórias, como diárias e ajudas de custo. E, ainda, o controle do sistema de teto remuneratório da federação.
O PLP 79 dispõe sobre padrão nacional de organização de normas garantias e visa assegurar aos gestores segurança jurídica no campo fiscalizatório financeiro, assim como um padrão de governança para os tribunais de Contas, além de propor vedações para que conselheiros advoguem nos tribunais onde atuem e quarentenas por três anos, visando coibir conflitos de interesses.
6. A Secretaria de Mediação do TCU é revelada
Diante de todo este quadro, reportagem investigativa profunda, corajosa e de extrema densidade analisa as consequências da criação de uma Câmara de Mediação no âmbito do TCU que o vem afastando de sua essência fiscalizatória, a chamada ‘Secex Consenso’, em cujo âmbito têm sido celebrados acordos geradores de benefícios bilionários em relação a dívidas do patrimônio público, transformando o TCU em um verdadeiro ‘balcão de negócios’.*
Além disto, a reportagem, assinada pelo repórter Breno Pires, vencedor da edição 2024 (4.a) da categoria jornalismo investigativo do Prêmio ‘Não Aceito Corrupção’, indica a resolução conveniente de problemas decorrentes de contratos descumpridos em prejuízo da União e diversas outras pendências, que sistematicamente prejudicam o interesse público, o que progressivamente está conduzindo o órgão fiscalizador federal a uma indevida reconfiguração, conveniente para alguns.
Apontam-se na reportagem casos graves em que o encaminhamento dado pelo Tribunal de Contas da União contraria as conclusões da auditoria e o posicionamento estabelecido pelo Ministério Público, o que se contrapõe à missão constitucional desta instituição, que deve ter sempre como norte a prevalência do interesse público, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
*https://piaui.folha.uol.com.br/superbalcao-do-tcu-entrega-ao-governo-lula-acordos-bilionarios/amp/
7. Opacidade e concentração de poder na tomada de decisão
do que é analisado e do que é arquivado
Além deste desvirtuamento finalístico, têm sido observadas diversas fragilidades na própria governança do Tribunal de Contas e total falta de transparência no processo de tomada de decisão por parte da presidência do Tribunal, que concentra poder e influência.
Os temas que vêm sendo decididos na tal Secretaria de Mediação são analisados de forma inacessível, sendo mantidos sob sigilo, não obstante vigore o princípio constitucional da publicidade.
Monopoliza a presidência do Tribunal de Contas da União sem qualquer justo motivo as decisões sobre aquilo que deve ser analisado ou arquivado no âmbito destas mediações, inclusive havendo notícias de vídeos de sessões públicas sumariamente apagados, o que dificulta o exercício da fiscalização cidadã.
Este mau procedimento desrespeita princípios democráticos elementares, estabelecendo a lógica indesejável e danosa da opacidade e da concentração de poder, que preponderou na civilização até o advento do Iluminismo.
Robert Klitgaard, festejado cientista político e professor universitário estadunidense construiu famosa equação que indica que a opacidade e a concentração de poder são vetores que associados podem criar ambiente especialmente propício a práticas corruptas, sendo aconselháveis a transparência e a desconcentração de poder. Neste sentido também o pensamento de Lord Acton: o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Deve-se relembrar e enaltecer que o Tribunal de Contas da União, assim como os demais tribunais de Contas de nosso país sujeitam-se obviamente, no exercício de suas funções aos ditames e princípios constitucionais da publicidade, da ética, moralidade administrativa e impessoalidade como todos os agentes políticos do Estado brasileiro.
O Brasil é um dos oito signatários do Pacto dos Governos Abertos, ao lado dos Estados Unidos, Noruega, Filipinas, África do Sul, Indonésia, Reino Unido e México. O país se comprometeu perante o mundo a ser referência mundial em matéria de transparência e governo aberto, sendo inadmissível que se posicione na contramão destes compromissos internacionais.
8. Distanciamento dos papéis constitucionais do TCU
Fiscalização, controle e julgamento administrativo são atividades de Estado que pressupõem e exigem doses prudentes de austeridade e distanciamento em relação aos entes fiscalizados sob pena de desvirtuamento das respectivas atividades institucionais.
Ao prever e definir o papel e responsabilidade de fiscalizar as contas públicas e proceder a controle social delas, a Constituição Federal deixa muito claro o que precisamente cabe aos tribunais de Contas na condição de organismo auxiliar do Legislativo.
Fiscalizar e controlar são obviamente conceitos exatos e bastante restritivos, sendo inconcebível imaginar a hipótese de um fiscal num ‘balcão de negociação’ com um ente fiscalizado, surgindo aí óbvio conflito de interesses.
Quem tem a incumbência de cumprir o papel fiscalizador não pode por sua conta e vontade modificar a função constitucional da corte de contas, vez que isto viola justamente o princípio fulcral de nossa Carta Maior, da separação de poderes.
E mais, por ser organismo constitucionalmente coadjuvante, meramente auxiliar do Poder Legislativo, o qual delibera acerca das contas públicas, assume indevidamente o comando protagonista de negociações, transigindo acerca de interesses da sociedade afigura-se absolutamente afrontoso ao princípio dos princípios – da prevalência do interesse público.
9. O Ministério Público pode celebrar acordos
O modelo da Carta de 1988 investiu outra instituição de Estado – o Ministério Público – na condição de defensor jurídico da sociedade, determinando-lhe a defesa dos interesses difusos e coletivos, além dos individuais indisponíveis, assim como da ordem jurídica e do regime democrático.
Para cumprir esta jornada, o Ministério Público dispõe de instrumento investigatório – o inquérito civil, processual –, a ação civil pública, e deve sempre que possível procurar resolver as demandas amigavelmente nos limites da lei, estabelecendo os termos de ajustamento de conduta, cuja essência vem ao encontro da busca da chamada justiça consensual, que também vem se expandindo no âmbito penal desde a transação penal da lei 9099/95, com os novos acordos de delação premiada e de não persecução penal.
É bem verdade que no âmbito penal o contexto deve sempre lembrar a titularidade exclusiva constitucional da ação penal pública, que atribui ao Ministério Público a responsabilidade de exercer o jus puniendi em nome do Estado e disto naturalmente decorre a prerrogativa de celebrar acordos.
No âmbito civil, os termos de ajustamento de conduta são considerados instrumentos valiosos para resolução de demandas no campo das violações dos direitos difusos e coletivos.
Merecem especial atenção os acordos de leniência, estabelecidos desde a Lei 8884/94, que disciplinou especificamente crimes e penas no campo econômico antitruste, posteriormente reformada pela Lei 12519/2011.
10. Segurança jurídica é a base de tudo
Os acordos de leniência foram bem arquitetados e bem-sucedidos, sempre com a intervenção do Ministério Público, que representa a sociedade, sempre intervindo junto ao CADE.
Não se pode dizer o mesmo em relação à Lei 12846/2013, marco regulatório do compliance, que igualmente estabelece neste universo os acordos de leniência, em evidente cópia malfeita do modelo da lei antitruste, tendo em vista que não assegura como deveria a intervenção do Ministério Público, o que retira dos acordos segurança jurídica, gerando fragilidade e vulnerabilidade. Importante sempre relembrar que a intervenção da AGU e CGU, órgãos de governo, e não de Estado, diferentemente do Ministério Público, não representa a sociedade, mas apenas os interesses do governo de ocasião.
As mesmas consequências poderão, em tese, ser geradas por eventuais acordos celebrados com a Secretaria de Mediação do Tribunal de Contas da União ou de qualquer outro Tribunal de Contas.
Sem segurança jurídica, o Tribunal de Contas da União determinou a suspensão temporária das atividades da Secretaria de Mediação, que foram afrontosas ao princípio da separação dos poderes e da função auxiliar dos tribunais de Contas, totalmente vulneráveis, desencadeando inúmeras reações por parte da sociedade civil, especialmente do Instituto Não Aceito Corrupção.
Mas posteriormente, a Secretaria retomou as atividades, o que ensejou a proposição da ADPF 1183 pelo Partido Novo, na qual o Instituto Não Aceito Corrupção é amicus curiae, cujo relator é o ministro Edson Fachin.
O Tribunal de Contas da União e demais tribunais de Contas são essenciais para nossa República e devem observar sempre os princípios constitucionais que os parametrizam.
Mas seu papel é especificamente e precisamente de fiscalizar, controlar e julgar, jamais podendo se afastar e desviar de sua essência definida pela Carta Magna, o que fere de morte os princípios constitucionais da moralidade administrativa e da publicidade.
É jurista, advogado e político. Foi professor titular de Direito Penal na Universidade de São Paulo (USP) e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso.
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