Número 68

Ano 18 / janeiro - março 2025

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O fim do sonho americano e a vitória do populismo

A cada comício pelo vasto território americano, o republicano Donald Trump iniciava seus discursos sempre com a mesma pergunta ao público: “Vocês estão melhores economicamente agora ou há alguns anos?”.

A questão tocava no ponto central de uma crise social que, ao longo das décadas, se transformou em uma crise existencial e uma ameaça para a democracia: o sonho americano é ainda uma realidade ou faz parte de um passado distante?

O termo “sonho americano”, cunhado em 1931 pelo historiador James Truslow Adams, passou a simbolizar a possibilidade de uma mobilidade social real num país que despontava, naquele momento, como uma nova experiência de democracia, sociedade e capitalismo.

Em 2024, o conceito retornou ao debate numa eleição que não foi apenas uma disputa entre dois movimentos políticos antagônicos. Ela ocorreu num país que passou a questionar seu destino, seus mitos fundadores e sua capacidade de dar respostas aos desafios do século 21.

Se nas pesquisas de opinião esse mal-estar dava sinais de dar o tom dos debates, nas periferias das grandes cidades americanas essa realidade era explícita.

Poucas semanas antes da eleição, no Harlem, uma fila interminável era o retrato de um país numa encruzilhada. A fila, num domingo pela manhã, tinha sido formada depois que a empresa de transporte de Nova York anunciou que estava contratando e que iria registrar os nomes dos interessados. Milhares apareceram para as poucas vagas oferecidas.

Tinha cor a fila que dava voltas nas esquinas do bairro. Assim como tem cor a pobreza nos EUA, afetando de forma desproporcional os afro-americanos. Em silêncio e lentamente, aquela marcha desviava de indigentes pela calçada, enquanto cada um dos candidatos agarrava um formulário, cuidadosamente preenchido, com a esperança de obter dignidade.

Tanto nas pesquisas de opinião como naquela massa em busca de um trabalho, o que estava escancarado era um sonho dilacerado e a existência de milhões de pessoas sem destino, um campo fértil para o populismo.

Se do lado republicano a ofensiva de Trump por votos recorreu ao nacionalismo e à suposta proteção ao trabalhador, o discurso não ocorre por acaso. Estudos e levantamentos revelam que a classe média americana encolheu nas últimas décadas, enquanto sua frustração aumentou.

De acordo com o Pew Research Center, 61% dos americanos eram considerados como classe média em 1971. Em 2023, essa taxa caiu para 51%. A camada mais pobre — que ganha menos de US$ 35 mil por ano — aumentou de 27% para 30%. Já a parcela dos mais ricos aumentou de 11% da população para 19% entre 1971 e 2023.

Sociedade mais desigual com extremos mais distantes

O estudo revela, na prática, que a sociedade americana ficou mais desigual e com seus extremos mais distantes. E que o “sonho americano”, – uma verdadeira ideologia que moveu um país durante um século, é hoje apenas uma ilusão para milhões de pessoas.

O levantamento também revela que 45% da população negra está na categoria mais pobre e apenas 9% entre os mais ricos, com renda acima de US$ 250 mil por ano.

Na esperança de garantir a continuação dos democratas no poder, o governo de Joe Biden vinha insistindo que, segundo os dados oficiais, a miséria nos EUA havia caído sob sua administração: eram 36,8 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza ao final de 2023, 11,1% da população, contra a taxa de 11,5% de americanos empobrecidos em 2022.

Mas o cálculo oficial é contestado por economistas, que apontam que apenas a renda não é suficiente para medir a qualidade de vida. A medição foi criada ainda nos anos 1960, calculando o custo de três refeições por dia.

O próprio censo americano implementou uma nova medida, que inclui o impacto de programas sociais e uma cesta de gastos que examina até mesmo o preço da internet. Por esse critério, a pobreza aumentou nos EUA entre 2022 e 2023, passando de 12,4% para 12,9%. Entre as crianças, a taxa aumentou em 1,3 ponto percentual, para um total de 13,7%.

Já um levantamento realizado pela Universidade de Columbia revelou que a pobreza voltou a aumentar em Nova York (NY), depois de anos de queda. O fim dos programas sociais de apoio que perduraram durante a pandemia é apontado como o principal motivo, assim como a inflação.

 Os dados, de 2022 e 2023, mostram que:

• 23% dos residentes da cidade não têm renda suficiente para arcar com as necessidades básicas, como alimentos e moradia. Em 2018 essa taxa era de 18%. O índice de NY é duas vezes superior à média nacional dos EUA;

• 2 milhões de moradores vivem abaixo da linha da pobreza, o que representa uma renda abaixo de US$ 20,3 mil. Em 2022 esse número aumentou em 500 mil pessoas;

• A pobreza atinge uma em quatro crianças;

• Em 2023, o desemprego atingiu 9,3% dos afro-americanos, três vezes mais que o índice entre os brancos.

O abalo na sociedade mudou a demografia do voto

O raio-X fica ainda mais indecente quando se constata que Nova York produz 8% do PIB dos EUA. Se fosse um país, estaria entre a 10ª e a 12ª maior economia do mundo. A cidade ainda concentra o maior número de bilionários do planeta. São 104 fortunas que, sozinhas, dariam conta da pobreza no mundo.

Os dados condizem com a realidade contada por alguns daqueles americanos em busca de emprego, na fila no Harlem. Isaac Foster, de 52 anos, explicou que seu salário não é mais suficiente para arcar com as despesas de sua família: “Temo pelos meus filhos. Tudo está muito difícil, mesmo para quem tem trabalho”.

Tyrell Perry, de 21 anos, procurava seu primeiro emprego formal e fazia mistério sobre em quem iria votar. “Não sei nem se meu voto faz diferença”, lamentou. Ao ser questionado sobre há quanto tempo estava na fila para se registrar para o trabalho, foi irônico: “E que diferença faz isso para quem tem todo o tempo do mundo?”.

O abalo na sociedade americana também mudou a demografia do voto. Ainda que os afro-americanos tenham votado amplamente em Kamala Harris, mantendo o histórico apoio aos democratas desde os anos 1990, a realidade é que a unanimidade na rejeição ao populismo de Trump foi encerrada.

Num levantamento realizado pelo New York Times e pelo Siena College, Harris teria 70% dos votos dos homens negros. Em 2020, os democratas acumularam 85% dos votos dessa população.

Outro abalo sísmico foi o resultado de Trump entre os imigrantes. Em 2016, Hillary Clinton obteve uma diferença de 38 pontos percentuais em comparação a Trump entre os latinos. Em 2020, o republicano recebeu 44% dos votos deste segmento da população. Em 2024, ele prometeu realizar a maior deportação em massa da história do país e fechar as fronteiras, ofendeu estrangeiros e sua campanha chamou Porto Rico de “lixo”. Mesmo assim, os números mostram que Trump recebeu os votos de 54% dos homens latinos, um recorde.

Uma vez mais, o motivo estaria na baixa condição econômica e na ameaça de que o sonho de mobilidade social não fosse mais uma realidade. Na pesquisa do New York Times e do Siena College, 35% dos latinos indicaram que as políticas de Trump ajudaram suas comunidades, contra um apoio de apenas 22% para os planos econômicos de Joe Biden.

Outra constatação das pesquisas é que o eleitorado latino não se viu identificado quando Trump ofendia a minoria: 63% dos hispânicos afirmaram que não sentiam que o republicano estava falando individualmente sobre eles quando os ataques ocorriam.

Mas não é apenas a frustração da população afro-americana e de latinos que alimentou a campanha dos republicanos. Entre os trabalhadores, muitos deles brancos, a percepção é que não existe mais espaço para o sonho americano.

As crianças que nasceram nos anos 1940 tinham uma expectativa de ter uma vida melhor que seus pais. Hoje, esse sonho foi substituído por dúvida e angústia. 

Entre os artífices da campanha de Trump, essa situação passou a ser instrumentalizada. A frustração, principalmente do homem branco, foi alvo de uma campanha capaz de traduzir esse sentimento em votos e contaminar toda a pauta política.

Por meses, o movimento liderado por Trump mobilizou um segmento da população que vive uma encruzilhada diante do que é apresentado como uma “ansiedade financeira” em um modelo econômico incapaz de reduzir as desigualdades sociais.

A essa insegurança se somou a pressão colocada numa camada da população que se sentiu despreparada ou resistente para lidar com um novo debate público sobre gênero, independência financeira das mulheres e ofensiva antirracismo.

Para Richard Reeves, presidente do American Institute for Boys and Men, esses americanos brancos que viram seu status social ruir sentem que foram mais ouvidos pelos republicanos em uma crise que é, em parte, de percepção e, em parte, de perda de poder.

Na era pós-MeToo, a conversa sobre masculinidade nos EUA passou a ser também política. Na avaliação do instituto, esses homens brancos se sentiam “desabrigados”.

Reeves não é um reacionário. Seu livro publicado sobre o tema, em 2022, foi a leitura de verão do democrata Barack Obama. No começo de 2023, Melinda Gates destinou US$ 20 milhões para as pesquisas de seu instituto.

Mas a campanha republicana soube que essa crise poderia ser instrumentalizada e decidiu justamente usar o exemplo de Trump como um espelho para essa população. O mote não declarado era tão simples quanto poderoso: depois de ser humilhado, o candidato voltaria ao topo do poder. Sem desculpas.

Não por acaso, a hipermasculinidade fez parte de cada um dos comícios de Trump, sempre iniciados por um rock pesado e um ex-lutador branco que rasgava sua camisa no palco, antes de dar lugar ao candidato. No imaginário coletivo, esse segmento da população se sente acolhido.

A conquista do eleitorado de homens brancos

Kamala Harris foi obrigada a se mobilizar por esses votos. Não por acaso, ela escolheu como vice um senador que insistia em seu passado como militar e treinador de futebol americano.

A candidata democrata também optou por participar de entrevistas com apresentadores que simbolizam o segmento do eleitorado de homens brancos.

Se não bastasse, o grupo White Dudes for Harris (“Caras brancos por Harris”) investiu US$ 10 milhões em campanhas publicitárias contra Trump.

Em um dos comerciais, o grupo foi explícito sobre o que se passa na mente desse segmento de homens: “Ei, caras brancos! Acho que estamos cansados de ouvir sobre o quanto somos ruins toda vez que estamos online e como somos o problema”.

Mas o grupo alertava que o país não poderia se “sentar e deixar a multidão do Maga intimidar outros brancos para que votem em uma ideologia odiosa e divisível, porque entendemos que com o Maga todos perdem” — o termo “Maga” se refere ao movimento trumpista “Make America Great Again”.

A criação do grupo democrata chegou a ser alvo de ataques por parte do da campanha republicana. Em um evento religioso duas semanas antes da eleição, Trump zombou da iniciativa dos homens brancos por Kamala: “Há um grupo chamado ‘White Dudes for Harris’, mas não estou nem um pouco preocupado com eles, porque suas esposas e os amantes de suas esposas estão todos votando em mim”.

Tim Fullerton, que faz parte do grupo, respondeu ao ataque do ex-presidente nas redes sociais: “Sou um dos organizadores do White Dudes for Harris. Minha esposa preferiria comer vidro por um mês a votar nesse cara”.

Kamala intensificou sua ofensiva para atrair homens em plataformas de videogame e de apostas online, com uma ampla maioria de audiência masculina. Ela ainda comprou horários nos intervalos de jogos da NFL (liga profissional de futebol americano), do futebol americano universitário e da MLB (liga profissional de beisebol) na esperança de convencer esses homens de que seu programa também olhava para suas necessidades.

Em um dos comerciais, o astro do basquete Magic Johnson compara os planos econômicos de Kamala e Trump para mostrar que a democrata traria vantagens reais para as classes mais desfavorecidas. Sobre o republicano, o ex-jogador resumiu: “Ele é um empresário fracassado”.

Trump rebateu a estrela do basquete com uma contraofensiva, intensificando sua guerra cultural. Sua acusação, enganosa, era de que Kamala priorizaria a agenda transexual em vez do restante dos americanos e que ela estaria usando impostos para pagar por mudanças de sexo em pessoas detidas por assassinatos. A estratégia de Trump era direta: se apresentar como aquele que protege a masculinidade de um segmento da população abalado por múltiplas crises, principalmente pela questão econômica.

E funcionou.

O abandono da classe trabalhadora — imigrante, negra ou branca — passou a ser alvo da autópsia realizada pelo partido democrata e por analistas sobre como reinventar o segmento progressista nos EUA, depois da derrota.

O senador Bernie Sanders foi um dos que ousou falar abertamente sobre o fracasso democrata: “Não deve ser uma grande surpresa que um Partido Democrata, que abandonou a classe trabalhadora, descubra que a classe trabalhadora o abandonou”.

Para ele, a vitória avassaladora de Trump deve exigir “algumas discussões políticas muito sérias”: “Primeiro, foi a classe trabalhadora branca [que abandonou o partido], e agora são os trabalhadores latinos e negros também. Enquanto a liderança democrata defende o status quo, o povo americano está irritado e quer mudanças. E eles estão certos”.

Sanders, que acabara de ser reeleito para mais um mandato em Vermont, não pareceu otimista quanto ao fato de a cúpula do partido atender a seus apelos. “Será que os grandes interesses financeiros e os consultores bem pagos que controlam o Partido Democrata aprenderão alguma lição real com essa campanha desastrosa?”, questionou.

“Será que eles entenderão a dor e a alienação política que dezenas de milhões de americanos estão sentindo? Será que eles têm alguma ideia de como podemos enfrentar a oligarquia cada vez mais poderosa que tem tanto poder econômico e político? Provavelmente não”, lamentou o senador, que concorreu à presidência dos EUA em 2016 e 2020.

Trump, com uma receita tão simplista quanto mentirosa, apostou em fechar o mercado americano para produtos que possam competir com os nacionais e, assim, supostamente proteger o emprego dessa classe abandonada. A mesma lógica é aplicada aos novos imigrantes: os republicanos tentam convencer os estrangeiros que já estão no país que eles estão sendo ameaçados por seus parentes que, hoje, tentam fazer o mesmo caminho.

O republicano retorna ao poder num país profundamente dividido e onde o mito que dava sustentação ao projeto quase messiânico de nação é colocado em questão. 

Numa pesquisa realizada pela Pew Research Center em setembro de 2024, 41% dos entrevistados indicaram que o sonho americano não era mais algo que eles poderiam desejar viver. A taxa de desiludidos explode quanto maior a miséria. Dois terços daqueles considerados como pobres já desistiram de acreditar nesse sonho.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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