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Interesse Nacional
01 janeiro 2010

O Futuro da Internet Ou breve tentativa de compreender por que a internet deixará de ser internet, como a conhecemos hoje, para ser algo parecido

Um mundo em mudança

O símbolo do herói moderno, para o filósofo italiano Umberto Galimberti (Il Gioco Dele Opinioni), deveria ser Ulisses, Rei de Ítaca, por ter inventado o cavalo de Troia, em cujo ventre, acreditando nos ensinamentos da escola, se esconderam soldados que à noite abriram as portas da cidade. Porque seria Ulisses portador dos valores básicos que se exigiria de uma sociedade moderna, mentira e astúcia. Retraduzindo essas palavras, para dar-lhes mínimos de dignidade, astúcia passa a ser a “capacidade de encontrar o ponto de equilíbrio entre forças contrárias“. Enquanto mentir significa “habitar a distância que separa aparência e realidade”; e, também, “escapar da ingenuidade dos que acreditam que as coisas são, sempre, o que aparentam ser”. Com Ulisses, inaugura-se a dupla consciência da realidade e sua máscara. Em certo sentido, é também o que se passa com a internet, na oposição aparentemente inconciliável entre o hoje e o amanhã. Posto que soluções dadas, atendendo ao que parece indispensável ou razoável no presente, serão capazes de comprometer irreversivelmente o futuro; enquanto a só espera plácida por esse futuro, hoje implausível, pode ser suficiente para degradar o presente a ponto de torná-lo intolerável.


O cenário desse aparente drama é que nos estamos convertendo em uma civilização impressentidamente nova, provavelmente nem pior nem melhor do que as anteriores. Apenas diferente. E talvez ainda não sejamos capazes de compreender, em toda a sua extensão, o “mito da idade da informação”, tão duramente descrito por Bill Mckibben (The Age of Missing Information). São outros os valores, outros os padrões de organização social, outros os processos de transmissão de conhecimento, alterando as bases tradicionais da economia, da religião, da história, da própria cultura. Tudo muda, continuamente. E a questão já nem é saber se as novas tecnologias da informação vão alterar nossa maneira de viver, mas como o farão. Esse desenvolvimento extraordinário se processa em duas dimensões principais. Uma técnica, que corresponde à melhoria crescente na quantidade, na qualidade e na velocidade de transmissão da informação; outra cultural, interferindo em nossos padrões de convivência, produzindo o que François Brune (A Comunicação Social Vítima dos Negociantes) chama de “mercantilização do imaginário”. Nossas cidades, não por acaso, são povoadas por cinderelas suburbanas que sonham, secretamente, com o fausto implausível de uma outra vida que nunca terão. Suspirando escondidas em seus quartos humildes, à espera do príncipe encantado em que se converte diariamente o galã da novela das oito, nas televisões; ou amigos, alguns próximos outros inatingíveis, nos orkuts da vida. Condenadas a viver vidas paralelas, como se a miséria de suas existências exigisse o contraponto desse “Eldorado” a que se chega apenas girando um botão. Ou tocando algumas teclas. Mas um desenvolvimento assim tem também uma terceira dimensão, institucional, menos óbvia e não obstante relevantíssima, com implicação no próprio modelo de organização das sociedades. Tudo conspirando para converter o discurso aparentemente tecnológico, sobre a internet, em uma escolha trágica entre angústias.

Infraestrutura

O jogo da internet se joga, hoje, em três cenários principais: infraestrutura – que corresponde razoavelmente a sua base física, o hardware; serviços – no fundo, softwares que rodam sobre essa base física; e aplicações – que correspondem aos fins determinantes para usar essa infraestrutura e esses serviços. Todos, campos envoltos em contenciosos. Com relação à infraestrutura, consenso único é a manutenção do Protocolo IP, conformando sua estrutura de rede. No fundo, um discurso de governança. Estados Unidos, em posição razoavelmente óbvia, não aceitam qualquer alteração em modelo que vem dando certo – com o controle de todos os endereços hoje existentes, no mundo, por instituição privada, técnica (até agora), o icann (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers). Uma entidade do terceiro setor, com sede em Santa Mônica e tutelada por leis da Califórnia; mas, apesar de não internacional, com um Governnment Advisory Comittee que tem membros de toda a parte (com maioria de não-americanos). Algo como uma Congregatio de Propaganda Fide das comunicações. Em posição diversa, um grupo de países europeus prefere que fique sob domínio da uit da onu, ou qualquer outro organismo internacional específico a ser criado. Esse controle é particularmente importante, por ser finito o número dos endereços; por decorrer sua distribuição de uma demanda mais econômica (privada) que social (pública); e sobretudo por permitir, em tese, interferências políticas – como tirar do ar um endereço específico, ou um conjunto inteiro de endereços (por exemplo, um país).

Serviços

Com relação a esses serviços, a internet sofre antes de tudo pela falta de um modelo básico. Alguns deles utilizam protocolos convalidados pelo W3C (World Wide Web Consortium) – como smtp (Simple Mail Transfer Protocol, que regula e-mails e correios eletrônicos), http (Hipertext Transfer Protocol, que regula páginas) ou https (mais o “s” de Secure), udp (rádios, vídeos), ftp (transferência de arquivos). Enquanto outros consideram serem suficientes protocolos privados (particulares ou estatais), funcionando só entre as partes, que podem vir a ser (ou não) convalidados pelo W3C. Nesse modelo dual, os problemas basicamente decorrem de sua (em princípio) melhor virtude, um amplíssimo grau de liberdade. Sem meios (ou desejos) visíveis de uniformização. O smtp, por exemplo, um protocolo de serviços, permite envio de e-mails como se fossem de um outro endereço, viabilizando spams que já representam 90% do total dessas mensagens.

Pequeno sermão contra os spams

Aqui, vênia para um desabafo. É que, basta passar quinze dias fora, e invariavelmente encontro o computador entulhado com spams de todo o tipo, enviados por quem não conheço e certamente não conhecerei nunca. A maioria, gente que nem existe. Internet é assim. Você pode virar outro, e os outros podem virar qualquer um. Inclusive você. Anderson e Vinicius avisam que “empresário europeu procura pessoas para oportunidade de negócio”; completando a notícia com um código ininteligível, “nrvsxshundgfwflclmfjapeunwxdsgpvvhawm”. Só aceita quem for doido. London Vick oferece financiamento “às mais baixas taxas”; tendo apenas o interessado que dar um pulinho até Miami. Era só o que faltava. Lotogames oferece “lotomania”, com um “bônus de 50%”. É fria. Já o Regions Bank oferece dinheiro e em inglês. Quem quiser ligue, para ver se ele traz. Márcio Teodoro oferece grana extra e pede “clique aqui”. Só por pirraça, não clico. Um cupim que se intitula “O Carteiro”, todo dia, pede para ver “o cartão que preparei para você”. Te enxerga, Carteiro. Martha Cramer envia mensagens enormes, em código. Uma que recebi diz – “Html. Head styletype. text/css. eys bcow. font weignt: bold. body pex-000000 – vlink – 996633 a link”. Se alguém souber do que se trata, por favor me avise. Uma “Equipe Repetetrons” lembra: “O repelyffffeq tron yfffeq tem ondas culturais yffffy 4 nicas, que você fffeajy conhece?”. Conheço não, obrigado. Pessoas que se intitulam “amigos do Rio” oferecem passeios em grupo, já convidando para o primeiro – “procurando a capivara na lagoa”. Coitada dessa pobre capivara, se for encontrada, vai ter que aguentar todos os chatos desse grupo. Robert e Zeff garantem proteção contra spam; quando tudo que quero é proteção contra gente como Robert e Zeff. E Daniela pergunta: “Seus seios te agradam?” Vai te danar, Daniela. Tudo quanto não preciso está na internet. O mesmo ocorre com todos, em toda a parte. Daí já se pronunciando na banalização desses spams, algo como um Correio sem custo dos selos, sua progressiva obsolescência como instrumento de comunicação.

Aplicações

Nesse campo, o que se vê é uma dispersão absoluta; porque as aplicações podem processar-se a partir de práticas regulamentadas ou não, e com diversas instâncias de validação. No Brasil, por exemplo, transferências bancárias se dão sob o amparo do spb (Sistema de Pagamentos Brasileiros), validado pelo Banco Central. Como imposto de renda cumpre as regras da “ReceitaNet”. No futuro, poderemos até votar sem sair de casa, sob supervisão do tse. E as demandas por essas aplicações, inevitavelmente, interferirão na infraestrutura e nos serviços. Nesse campo, (quase) tudo é possível; e por vezes, usando códigos conhecidos (como letras ou palavras), pode-se esconder o sentido real da mensagem, imitando a própria literatura – nos exemplos sendo convocados um repentista (a voz do povo) e um poeta clássico, sem que se saiba exatamente o que querem dizer:

Pra cantar Filosomia
Sobre a vida de Jesus
Canto debaixo da terra
Na Santa Filanlumia
Oceano desdobrado
No véu da Pilogamia.
  Zé Limeira (Cantoria)
Tu és o quelso do pental ganírio
Saltando as rimpas do fermim calério,
Carpindo as taipas do furor salírio
Nos rúbios calos do pijóm sidérico.
És o bartólio no bocal empírio
Que ruge e passa no festão sitério
Em ticoteios no partano estírio
Rompendo as gâmbias do hartomogenérico
Teus lindos olhos que têm barlacantes,
São camençúrias que carquejam lantes
Nas duras pélias do pegal balônio.

São carmentórios de um carcê metálio
De lúrias peles, em que buza obálio
Em vertimbáceas do pental perônio.
  Luis Lisboa (A uma Deusa)

Regulamentação

Para o filósofo espanhol Ferrater Mora (Dicionário de Filosofia), “o paradoxo fascina porque propõe algo que parece assombroso seja como se diz que é”. E o paradoxo, para a internet, é a pretensão de que deva ser, necessariamente, a única atividade livre desses controles democráticos. Porque relações em comunidade são, sempre, construídas a partir de controles sociais. Temos interferências na vida econômica, com a definição de cada uma das políticas setoriais – de educação, saúde, habitação; em práticas compensatórias; na definição dos preços públicos; na vedação de monopólios e oligopólios. Em todos os setores. No tráfego, por exemplo, só podemos dirigir com carteira de habilitação, o carro deve ser emplacado, o cinto de segurança é obrigatório, o sinal vermelho deve ser respeitado, temos contramão, estacionamento proibido, velocidade máxima permitida, e nunca ninguém pensou que esses limites possam violar a liberdade de locomoção, sagrada na Constituição como direito individual e cláusula pétrea (art. 5°, XV). Sendo mesmo natural que algum tipo de controle social, democrático, se opere também em relação à internet. Um controle que decorrerá de sua inevitável regulamentação.

Problemas próximos

Considerando a variável tempo, podemos dividir os problemas dessa regulamentação em dois grupos. Um primeiro é o daqueles próximos, entre os quais avulta o do direito autoral, dado que resulta serem na internet imprestáveis tanto as legislações nacionais (no Brasil, Lei no 9 610/98), quanto a Convenção de Berna. Em Besason, por exemplo, um cybercafé pôs à disposição de seus frequentadores livro com publicação vedada pela justiça francesa – Le Grand Secret, de Michel Gonod e Claude Gubler, médico particular do presidente Miterrand. E a ordem judicial, que valeu para o livro, não foi capaz de bloquear a internet. Algo assim está acontecendo inclusive agora, no Brasil, com uma biografia não-autorizada do cantor Roberto Carlos. Não obstante tantos problemas, mais evidente deles é o fim (em setembro 2009) da segunda prorrogação de um dos contratos do Departamento de Comércio dos eua com o icann, começado no distante (medido no tempo da internet) 1998 – findando o contrato principal em 2011, bom lembrar. Três variá¬veis são possíveis: mais uma prorrogação, o que provavelmente ocorrerá (em razão da ausência de consenso sobre qualquer alteração); algum tipo de acordo com outros governos, deferindo o serviço a uma entidade multilateral (da qual participariam outros países); ou a transformação da icann em uma grande entidade internacional não-governamental. Sem muitas chances de mudanças sensíveis, nos conceitos atuais do contrato – que, para ser encerrado, precisa de aprovação do Congresso norte-americano. Com todas as implicações de poder que representaria abrir mão do seu controle. Nesse caso, como na regra de São Paulo, melhor mesmo é “esperar contra toda esperança”.

Problemas de longo prazo

Neste segundo grupo, o dos problemas de longo prazo, mais importante é a tentativa de prever o futuro dessa regulamentação – como um silogismo falso, em duas premissas e uma conclusão.


Premissa 1. Hoje, simplesmente, não há como operar regulamentação – por ausência de meios técnicos para estabelecer qualquer controle a partir do atual modelo de formação da rede. Na China, por exemplo, o governo desistiu de suas ambições de intervenção total sobre o conteúdo da rede. Não por deixar de querer, mas sobretudo por não ter como dar efetividade a essa passagem da intenção ao gesto. Países como China e Rússia já dão sinais de que formarão algo como icanns autônomos, subsistemas estruturados dentro do próprio sistema icann. E esse novo modelo de redes nacionais (ou regionais) convivendo com a mundial, tenderá a se multiplicar e ganhar força; a ponto de ser capaz, algum dia, de se conectar entre si, independentemente de uma rede mais ampla. Convertendo sinais gráficos de mandarim, ideogramas, cecedilhas, til e acentos de toda natureza, em códigos que serão capazes de ser reconhecidos por todos os computadores do planeta. Ainda não haverá mudanças expressivas no curto prazo; mas haverá mudanças, com certeza.

Premissa 2. Em visão histórica, é como se houvesse uma norma não-escrita, espécie de determinante dos interesses da coletividade, que inevitavelmente levasse a reproduzir modelos que deram certo. Primeiro leis locais, depois tratados internacionais. No Brasil, já foi inclusive dada a partida nessa volúpia por regulamentação. O Congresso Nacional processa, hoje, 439 projetos de lei sobre internet, dos quais 42 regulando seu uso e seis o seu acesso. Entre eles, uma alteração na Lei dos Partidos Políticos (Lei no 9096/95) com regras que dificilmente serão efetivas, como vedação de propaganda em alguns sites ou proibição de venda de cadastros de endereços eleitorais. Os tratados virão depois. Reproduzindo a premonição do escritor indiano George Orwell (em seu livro 1984), “quem controla o futuro controla o presente, quem controla o passado controla o futuro”.

Em situação similar, começamos regulando títulos de crédito – com os Decretos nos 2 044/1908 e 2 591/1912. Até que veio a Convenção de Genebra, em 19 de março de 1931, no seu próprio Preâmbulo indicando as razões desse acordo: “Desejando evitar as dificuldades originadas pela diversidade de legislação nos vários países em que os cheques circulam, e aumentar assim a segurança das relações do comércio internacional…” Resultado é que acabamos por renunciar a nossa própria legislação (Decretos nos 57 595/1966 e 57 663/1966), em favor da ratificação de tratado sagrando uma Lei uniforme sobre Letras de Câmbio e Nota Promissória. Quando é necessário, vêm as regulamentações. Até nas guerras. Em usos generalizadamente aceitos – como não atirar em oficiais. Ou convenções: 1864 – respeito a feridos protegidos pela Cruz Vermelha (depois, também pelo Crescente Vermelho); 1929 – tratar prisioneiros humanamente e respeitar religiões; 1949 – proibição de usar escudos humanos.

Conclusão.

Tudo nos leva, então, à conclusão de que seguramente a internet vai ser mesmo regulada, em um grande consenso internacional. Quando for outra. Por ser improvável que um modelo como esse, que vem da década de 1960, possa permanecer como foi conformado por muito tempo mais. E não será diferente, nesse campo, porque foi sempre assim em situações similares. A internet vai ser regulada quando estiver pronta para ser regulada. Vai mudar, precisamente, para poder ser regulada. Em outras palavras, vai poder ser regulada porque vai mudar. Ainda mais simplesmente, será regulada porque é indispensável que seja regulada. No futuro, claro, quando estivermos todos mortos, talvez. Provavelmente, deixando de ser a internet como a conhecemos
hoje, para ser algo parecido. Mantendo só o nome. Ou nem isso.

Uma visão desalentadora do futuro

Apenas para constar seja aqui dito que, no coração das pessoas, pouco a pouco foi-se dando a tragédia. Acabamos confiando nas máquinas cegamente. Primeiro no computador, claro. Depois na internet. Perdemos a razão crítica. Nos desacostumamos a questionar. Duvidar, para gente demais, acaba sendo heresia. Se Deus é onisciência, o novo deus da gurizada existe mesmo, e seu nome é Google (por enquanto). Segundo uma lenda moderna, máquinas não erram. Problema é que erram, por erro do programador ou por conta própria. Estamos desaprendendo a beleza de errar por nossos próprios erros. Tempos faz pesquisei onde estava a mesa, nos velhos romances; e era, sempre, o lugar mais importante da casa. O centro da vida familiar. Na sala de jantar de outros tempos nos olhávamos de frente, uns para os outros. Depois veio a televisão. A família passou a ficar no sofá, ombro a ombro, com a tela na frente. Depois de olhos nos olhos, orelha a orelha. Passamos a nos falar de lado. Sem mais dar importância ao brilho no rosto das pessoas queridas. Mas, na televisão, a gente ao menos está (quase) sempre acompanhado. Computador, ainda pior, é hábito de quem não gosta de olhar de frente. De quem não gosta de gente. Quantos de nós passamos noites inteiras na companhia dessas máquinas que só respondem o que lhes perguntamos? Sem mais tempo para encontrar os amigos. Para jogar dominó em fins de tarde. Para conversar na calçada. Em Blade Runner uma replicante, Rachel, se apaixona por seu caçador, o também replicante Deckard. Duas máquinas se apaixonando. Estamos começando a viver o mundo terrível do futuro. A democracia da solidão. A conclusão dessa pequena fábula aqui contada, que nem fábula é, será só a de que essa internet de hoje vai mudar. Como também o homem que a digita. Mudarão os dois, pois. Para melhor? Não sei. Ninguém sabe.

É advogado no Recife

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