18 julho 2016

O Futuro da Lava Jato

A Lava Jato é uma só, mas é também muitas. Com a divisão de inquéritos e denúncias daqueles que têm foro privilegiado e daqueles que não têm esta prerrogativa, a Lava Jato existe simultaneamente em dois lugares: em Brasília, no Supremo Tribunal Federal; e em Curitiba, na 13a vara federal de Curitiba.

A Lava Jato é uma só, mas é também muitas. Com a divisão de inquéritos e denúncias daqueles que têm foro privilegiado e daqueles que não têm esta prerrogativa, a Lava Jato existe simultaneamente em dois lugares: em Brasília, no Supremo Tribunal Federal; e em Curitiba, na 13a vara federal de Curitiba.
No Supremo, os inquéritos, denúncias e processos da Lava Jato correm sob a batuta do ministro Teori Zavascki. Que, além de conduzir aqueles que são de competência exclusiva do Supremo, relata, em última instância, recursos contra atos originados em Curitiba. Há inquéritos sem denúncias. Há denúncias ainda não aceitas. Há processos que começaram há apenas alguns meses. Há inúmeros recursos julgados e inúmeros que ainda chegarão ao Supremo. Além disso, diversos desdobramentos das investigações, apesar de conectados com a Lava Jato, têm sido separados desses processos e, por vezes, redistribuídos a outros ministros. Quanto tempo demorará até a Lava Jato, em toda sua complexidade, chegar ao seu fim?
Em Curitiba, o juiz federal Sérgio Moro indicou que gostaria de encerrar até dezembro a Lava Jato da primeira instância. Ou seja, os inquéritos, denúncias e processos que estão sob seu comando, na 13ª vara federal. Mas, esse não será o final da Lava Jato. Tudo que se inicia em Curitiba, passa eventualmente pelo Tribunal Regional Federal, pelo Superior Tribunal de Justiça e termina apenas no Supremo Tribunal Federal.
Entre as primeiras condenações, que já aconteceram, e o trânsito em julgado daquelas que ainda estão por vir, certamente muito tempo ainda passará. Essas primeiras condenações podem produzir efeitos imediatos no tempo da política, mas ainda não põem fim à história. No direito, é preciso conviver, durante muito tempo, com respostas finais que são, na verdade, provisórias. É este o preço que se paga pelo devido processo e pela legalidade.
Mas, o que as respostas e fatos que temos até aqui, ainda que sejam um percurso incompleto, podem nos dizer sobre o que virá? Se os pontos mais marcantes da Lava Jato até o momento são a existência de instituições independentes e o apego aos fatos, em detrimento de teses jurídicas, quais as chances – e os riscos – para a permanência dessa combinação que é a base do seu sucesso?
Quanto a isso, três pontos merecem destaque: os poderes e os processos de nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Procurador-Geral da República. Todos os três têm sido discutidos recentemente. Moldá-los – e influenciar seu funcionamento – é, em última instância, moldar o futuro da Lava Jato.
Como se faz um ministro?
Todos os caminhos levam ao Supremo. Seus ministros terão a palavra final sobre tudo que ocorre na Lava Jato. Seja sobre a condenação daqueles originalmente julgados pelo juiz Sérgio Moro, em Curitiba. Seja sobre aquelas autoridades que respondem diretamente no tribunal. Por isso, proteger o Supremo é proteger a Lava Jato.
A Lava Jato colocou o Supremo em primeiro plano na política nacional em um sentido diferente do papel constitucional de guardião da Constituição. Assim como no Mensalão, aqui, o tribunal atua não para influenciar o conteúdo de políticas públicas, mas para definir o destino de atores políticos específicos. Conforme o tribunal ganhou proeminência nesse sentido, começaram a ganhar espaço projetos de emendas constitucionais (PECs) com o objetivo de alterar o processo de nomeação de seus ministros, com desenhos os mais diversos. Algumas pretendem aumentar o poder do próprio judiciário – enquanto corporação. Outras pretendem dividir o poder da Presidência – hoje controlado apenas por um veto do Senado – com as demais casas do Legislativo,dividindo as vagas entre aquelas que pertenceriam ao Executivo, à Câmara e ao Senado. Há também ideias que propõem a formulação de listas tríplices, ou de comissões compostas por representantes de diversos poderes. Por trás dessas propostas, encontramos com frequência a justificativa oficial de “despolitizar” as nomeações. Não existe, porém, mecanismo de indicação politicamente neutro; o que há são mudanças na distribuição de poder entre diferentes instituições e espaços de negociação e conflito político. Há, na verdade, apenas esquemas que transferem o lócus e o tipo de política a ser feita.
O que não quer dizer que não haja argumentos importantes por trás de muitas das propostas de alterações desse processo de nomeação. No entanto, no pano de fundo de uma Lava Jato que ainda se desdobrará sobre o destino de atores políticos concretos, é necessário considerar qualquer proposta de alteração com particular cautela. Em um momento em que deputados, senadores, ministros de Estado e presidentes e ex-presidentes da República são citados em investigações, discutir propostas de alterações do processo de nomeação como se fossem questões laterais é subestimar os interesses dos atores políticos em jogo. Se o Supremo, hoje, controla diretamente o futuro da política nacional, influenciar a sua composição é influenciar o nosso futuro.
Um exemplo recente ajuda a ilustrar a questão. A Emenda Constitucional nº 88, de 2015, passou anos dormente no Legislativo. Proposta originalmente em 2003, ficou anos nas gavetas do Legislativo. Diante da reeleição da presidente Dilma Rousseff, foi aprovada sob o argumento genérico de evitar a aposentadoria precoce de ministros que ainda têm muito a contribuir.
Essa justificativa não é, em si e em abstrato, absurda. Os ministros do Supremo têm ainda muitos anos pela frente de produtividade. Mas também é verdade que há argumentos outros quanto aos efeitos positivos de uma maior rotatividade de ministros no tribunal. O que interessa é que, independentemente desse debate, ninguém desconhece que, por trás dessa mudança constitucional, havia na verdade o intuito de privar a presidente Dilma do poder de nomear novos ministros para o tribunal.
Por trás de mudanças institucionais significativas, há sempre, ou quase sempre, interesses políticos imediatos.
Em meio à Lava Jato, qualquer proposta desse tipo deve ser vista com desconfiança. Não é momento de se mudar radicalmente o desenho institucional que nos deu o Supremo que temos. O momento exige que esse sistema seja resguardado, mas também exige aprofundamento e exploração de aspectos do nosso sistema que ainda não atingiram todo seu potencial republicano. Futuras nomeações para tribunais superiores devem ser alvo de escrutínio público intenso. A sabatina no Senado deve ser usada para garantir a independência e a seriedade de futuros ministros, mas deve também ser usada para determinar sua posição sobre o processo penal mais importante do momento: a Lava Jato. Inquirir os potenciais ministros a esse respeito não é ofensivo, nem pode se tornar um tabu. É apenas uma pergunta que se tornou inevitável para o país. O futuro das instituições democráticas brasileiras depende disso.
Do que se faz um ministro?
Ministros do Supremo são nomeados pelo presidente da República e aprovados – ou não – pelo Senado. Ministros do STJ são produto de uma lista tríplice do próprio tribunal. O presidente nomeia um candidato, que será aprovado – ou não – pelo Senado.
Ambos os sistemas pretendem mesclar filtros políticos com exigências de certos critérios objetivos. Entre inúmeros candidatos, com inquestionável notável saber jurídico e reputação ilibada, há representantes das mais diversas visões sobre a função do direito na sociedade. Essas posições não são neutras. Elas governam o sentido final das leis produzidas pelo sistema político. É natural, portanto, que o sistema político tenha o poder de influenciar a escolha dos seus intérpretes.
Conflitos entre visões mais estatizantes e mais privatistas, mais individualistas e mais socializantes, mais punitivas e mais garantistas, mais centralizadoras e mais federalistas são normais na academia e na prática forense. É natural, portanto, que candidatos diferentes tenham posições diferentes quanto a esses temas. É natural também que, ao escolher ministros, atores políticos tomem lados nesses conflitos.
No momento atual, se o sucesso da Lava Jato tem se dado em grande parte pela grande autonomia do Ministério Público, pelo fortalecimento das instâncias inferiores e pela valorização dos fatos em detrimento de teorias, cabe à sociedade civil e à imprensa pressionar para que o processo de nomeação daqueles que terão o poder de definir o futuro da Lava a Jato levem em consideração que tipo de visão futuros ministros teriam sobre esse fato.
Temos visto esse tipo de postura se manifestar na crítica pública de nomes que foram sondados para assumir o Ministério da Justiça do governo interino e para controlar os atos e manifestações daquele que foi eventualmente escolhido. Não se trata de criticar sua reputação, o seu conhecimento, mas de um posicionamento da sociedade sobre que tipo de visão se espera daquele que controla a Polícia Federal. Essa postura não é só legítima, mas também essencial para se garantir que, aqueles que assumam cargos no Supremo, no STJ e nos Tribunais Regionais Federais brasileiros tenham, dentro dos limites legais, o tipo de posicionamento no combate à corrupção que a sociedade brasileira espera.
Se lei é mais do que texto, se lei é também interpretação, a sociedade brasileira deve estar atenta não apenas para alterações legislativas que afetem seus legítimos interesses, mas também para o processo pelo qual juristas recebem o poder estatal de dizer qual o significado final das leis promulgadas em nosso nome.
Procurador-Geral da República
Como já dito, todos os caminhos levam ao Supremo. Mas, no que diz respeito às inúmeras autoridades com foro privilegiado, a porta é guardada pelo Procurador-Geral da República. Nesses casos, é o único que pode pedir a abertura de um inquérito e o único que pode decidir denunciar uma dessas autoridades.
O Supremo tem a palavra final sobre os conflitos que chegam. Mas, não pode, por si só, iniciar julgamentos. Como tribunal, é inerte, na expressão dos juristas, até que provocado. Pode apenas se manifestar sobre casos que o Procurador-Geral da República tenha lhe trazido. Ou seja: quando observamos a Lava Jato no Supremo, já vemos ali o resultado de um grande e poderoso filtro inicial. Nesse processo dentro do tribunal, haverá também filtros internos: o Supremo pode negar ou conceder o que lhe é pedido, mas não se pode esquecer que se trata de um colegiado. Ele é composto de 11 ministros que divergem entre si. Mesmo quando cinco discordam, seis são suficientes para absolver ou condenar alguém.
Já o Procurador-Geral da República é um só. Pode sozinho definir se alguém será acusado e, em caso positivo, quais serão as acusações específicas. Em um sistema repleto de gargalos e pontos de veto, ele é talvez o mais importante. E, em um cenário em que a opinião pública é cada vez mais presente e influente, a decisão de processar ou não passa a ser quase tão importante quanto a de condenar.
A Lava Jato se desdobra. São muitas. Mas, ao fim e ao cabo, todas elas dependem do Procurador-Geral da República. O que podemos enxergar no futuro desta instituição, após mais de dois anos de Lava Jato?
Formalmente, a Constituição dá ao Presidente da República o poder de nomear qualquer membro do Ministério Público Federal como Procurador-Geral, cabendo ao Senado o poder de confirmá-lo, ou não. Desenha assim os mesmos freios políticos que estabeleceu para nomear um ministro do Supremo.
Na realidade, estabeleceu-se a prática de o próprio Ministério Público realizar uma eleição para produzir uma lista tríplice com os candidatos mais votados. Não há obrigação legal para levar tal lista em conta. No entanto, durante os governos Lula e Dilma, o presidente sempre escolheu o candidato mais votado dessa lista.
Prática reiterada não vira direito. Mas, cria expectativas – especialmente se for percebida, na prática, como boa.
Recentemente, em uma de suas primeiras entrevistas, o Ministro da Justiça do governo Temer afirmou que não há obrigação constitucional de o presidente seguir essa prática. A crítica que se seguiu foi imensa e, em seguida, Temer declarou pretender continuar com a prática de nomear o mais votado.
Assim, informalmente, o processo de condução do Procurador-Geral da República se parece hoje com o de nomeação de um ministro do STJ. Sistema que contempla um elemento corporativo (a lista elaborada pelo Ministério Público) e um contra-peso político (o poder de escolha do presidente da República e de veto do Senado).
Nenhum sistema é perfeito, mas a união de elementos corporativos e políticos para escolher o chefe do Ministério Público é, em abstrato, perfeitamente adequada. Isso em abstrato. Em concreto, vivemos hoje uma crise política sem precedentes, na qual o Procurador-Geral da República tem papel fundamental.
Nesse cenário, membros do Executivo – que nomeia o Procurador-Geral – e do Senado – que o confirma – terão seus destinos nas mãos do procurador nomeado. A atenção deve ser redobrada. A prática dos últimos governos pode vir a ceder a razões erradas, de interesse político de curto prazo do Executivo.
Nesse momento, em que o apoio da sociedade civil está com o Ministério Público, e em que tanto a presidente afastada como o presidente em exercício se manifestaram pela manutenção da lista tríplice, seria importante que o Congresso constitucionalizasse a lista tríplice, garantindo que a manutenção dessa tradição não dependerá da vontade do presidente e do contexto político em que se dê essa escolha.
Além disso, da mesma maneira que, quanto aos processos de nomeação de ministros do Supremo e do STJ, é importante que a imprensa, a comunidade jurídica e a sociedade civil como um todo estejam atentas a todas as fases desse processo: na eleição conduzida pelo Ministério Público, na escolha feita pelo presidente, na sabatina feita pelo Senado.
Desenhos institucionais adequados permitem que o controle pelos cidadãos das decisões políticas seja feito de maneira mais fácil e transparente. Mas, apenas permite. A sua efetividade depende ao final do exercício dessas oportunidades por cidadãos ativos.
Se o futuro da Lava Jato depende do Supremo, do STJ e do Procurador-Geral da República, em última instância o seu futuro depende, na verdade, da atenção e do controle exercido pelos cidadãos brasileiros sobre os processos de escolha dos ocupantes desses cargos e sobre a maneira como eles exercitam os seus poderes.
Não há Lava Jato sem Ministério Público e Judiciário, bem como não há democracia sem cidadãos.

É professor da FGV Direito Rio.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter