18 outubro 2012

O Futuro do Mercosul após a Cúpula de Mendoza

Tanto o Mercosul quanto a União Europeia (UE) se encontram em uma complexa transição rumo a novas etapas em seus respectivos desenvolvimentos. Em ambos os casos, parece prematuro aventurar-se em prognósticos sobre como elas serão. Os resultados são ainda incertos, mas tudo indica que serão diferentes das etapas anteriores.

Um debate necessário

Tanto o Mercosul quanto a União Europeia (UE) se encontram em uma complexa transição rumo a novas etapas em seus respectivos desenvolvimentos. Em ambos os casos, parece prematuro aventurar-se em prognósticos sobre como elas serão. Os resultados são ainda incertos, mas tudo indica que serão diferentes das etapas anteriores.

Se tudo saísse bem, muito provavelmente seria porque teriam sido preservados os ativos acumulados e capitalizados os ensinamentos do passado. Do contrário, poder-se-ia estar diante de cenários nos quais resultasse difícil excluir o uso da palavra fracasso e, em especial, afrontar suas consequências. A longa história das relações entre nações que compartilham uma mesma região – especialmente no espaço geográfico europeu – indica que, eventualmente, tais consequências possam ser onerosas.

Para além das enormes diferenças que distinguem os dois processos de integração, bem como suas histórias e realidades regionais, a boa notícia é que se observam em ambos os casos debates, em nível das respectivas sociedades, por momentos intensos e até ríspidos, que mostram dilemas metodológicos e, cada vez mais, também existenciais. Quanto mais amplos e inclusivos forem estes debates, melhor será para a legitimidade social de seus resultados.

Um elemento comum nestes debates a ambos os lados do Atlântico é o das crescentes dúvidas apresentadas no que diz respeito a que realmente ainda exista possibilidade para a subsistência de uma distinção entre “nós” – sejam os membros da UE ou os do Mercosul – e “eles” – os terceiros países –, o que reflete uma identidade comum enraizada nas respectivas cidadanias. É como se o “cada um na sua” com toda sua crueza, começasse a substituir a ideia-força, um pouco mais romântica, de “juntos até a morte”. Especialmente na Europa, os cidadãos de alguns países não visualizam como próprios os problemas dos outros sócios. Não veem, então, por que deveriam assumir os custos de ajudar a solucioná-los.

Entretanto, ao mesmo tempo, observa-se que inclusive aqueles que pareceriam estar mais frustrados – inclusive “indignados” – pelo fato de que seu país pertença ao respectivo processo de integração, têm fortes dificuldades para explicitar uma opção razoável e crível, que se sustente tanto no plano econômico quanto, principalmente, no político. Isto é, uma opção com a legitimidade social própria de sociedades pluralistas e democráticas, que não supere amplamente os custos de tentar corrigir as deficiências do trabalho conjunto no âmbito dos atuais processos de integração. Se fosse verdade que os países membros – grandes ou pequenos – não têm opções razoáveis para a integração voluntária com seus atuais parceiros, o debate ficaria em tal caso confinado ao plano metodológico de como trabalhar juntos num espaço geográfico compartilhado – dado da realidade – e nem tanto no mais existencial de por que fazê-lo.

Aprofundar um debate franco e aberto sobre opções possíveis, combinando a perspectiva de estratégias nacionais bem definidas e a aproximação dos diversos interesses nacionais em jogo, no âmbito de um projeto estratégico comum, parece ser o mais recomendável para atravessar o período do desenho de uma nova etapa do Mercosul. O mesmo será preciso no caso da integração europeia. O desenho de uma nova etapa na UE deverá sustentar-se num diagnóstico correto sobre tendências profundas que estão operando no plano global, incluindo o balanço de desafios e oportunidades que resultarão da nova geografia do poder e da concorrência econômica mundial.

O fim de uma etapa do Mercosul?

Após a Cúpula de Mendoza o Mercosul tem iniciado sua transição rumo a uma nova etapa. Aquela que começou com a sua criação e foi desenvolvida durante os últimos 20 anos pelos quatro países fundadores pode ser considerada como concluída. Parece ainda prematuro diagnosticar quanto durará a transição e como será a nova etapa. O que se observa até agora tem todas as características de uma metamorfose. Como veremos depois, será importante que cada um dos países membros defina bem como imagina e o que espera desta nova etapa.

Para além do ineludível debate sobre as dimensões jurídicas – tanto da suspensão temporária do Paraguai no exercício da sua condição de membro, como da consumação da entrada da Venezuela, sem que se tivessem podido cumprir requisitos que os próprios países membros estabeleceram, e com soluções que se possam encontrar com inteligência e vontade política – , será necessário, então, abordar o desenho das modalidades e dos alcances de uma nova etapa.

Na etapa que se pode considerar como concluída, após a Cúpula de Mendoza, muitas metas não foram alcançadas, mas, ao mesmo tempo, muitos dos avanços no comércio e na interação econômica entre os países sócios podem ser relacionados com os compromissos assumidos no Tratado de Assunção. Do mesmo modo, nesta etapa foi afirmada a ideia estratégica de cooperação entre nações vizinhas, para além de diferenças de interesses e de conhecidas assimetrias, visando criar um espaço capaz de irradiar efeitos de paz, democracia e estabilidade política na América do Sul. É óbvio que há muito pela frente, mas também muito se aprendeu, e agora isto poderá ser capitalizado na nova etapa a ser iniciada.

É necessário lembrar que o próprio Tratado de Assunção levou à conclusão da etapa iniciada pelos acordos bilaterais entre a Argentina e o Brasil. Nesse caso, a passagem de uma fase para a outra não resultou em deixar de lado o acumulado na etapa bilateral inicial. Pelo contrário, mas não de menor importância, subsistem, ainda, os compromissos jurídicos bilaterais do Tratado de Buenos Aires de 1988 e os principais acordos comerciais acumulados, que foram assimilados na nova etapa por meio dos dois instrumentos operacionais, um deles bilateral – o ACE n° 14 – e o outro entre todos os sócios do Mercosul – o ACE n° 18. Cabe destacar que o ACE n° 14 tem hoje 39 Protocolos adicionais, a maior parte deles assinada quando se iniciou a etapa do Mercosul, especialmente referidos a um setor fundamental na integração regional, como é o automotivo. E, por sua vez, o ACE n° 18 já tem 93 Protocolos adicionais. Dever-se-ia considerar, pelo menos com as regras do jogo até o momento, que os compromissos comerciais que plasmarão a entrada da Venezuela no Mercosul sejam depois incorporados ao ACE n° 18.

O que realmente parece claro é que no segundo semestre deste ano algumas definições significativas deverão ser analisadas e, eventualmente, adotadas pelos sócios. O Brasil, por estar na Presidência Pro Tempore, terá a oportunidade de exercer certa liderança no processo de desenho da nova etapa. Isto porá à prova sua tradicional habilidade diplomática.

A esse respeito, pelo menos três questões prioritárias constituirão a agenda deste início da transição. Conforme forem encaradas e resolvidas, serão talvez as características que terá o Mercosul do futuro. Inclusive, não é possível excluir um cenário em que o Mercosul, originado em 1991, deixe eventualmente de existir.

A primeira questão se refere aos múltiplos desdobramentos que podem decorrer da decisão de suspender a participação do Paraguai nos órgãos do Mercosul. Este fato originou uma situação sem precedentes neste processo de integração. Sua superação precisará de muita prudência e sabedoria. É um desafio para a arte da política e da diplomacia: será preciso distinguir o conjuntural do permanente, com uma inteligente combinação de valores e interesses. O feito será difícil de conseguir, visto a precariedade institucional que continua caracterizando o Mercosul, apesar dos esforços para a criação de instâncias independentes que facilitem a concertação de interesses nacionais. Estão em jogo não apenas realidades políticas e econômicas complexas, com múltiplas conotações jurídicas, mas também sensibilidades e emoções da cidadania de uma das nações fundadoras do Mercosul, com uma história em comum com seus sócios, da qual resultam profundas raízes e inúmeros vasos comunicantes.

Incorporação da Venezuela

O texto que estabelece a suspensão do Paraguai, e que foi assinado pelos Chefes de Estado de Argentina, Brasil e Uruguai, invoca o Protocolo de Ushuaia sobre “Compromisso Democrático no Mercosul” e decide: “1.Suspender a República do Paraguai do direito de participar dos órgãos do Mercosul e das deliberações, nos termos do artigo 5° do Protocolo de Ushuaia. 2.Enquanto durar a suspensão, aquilo previsto no inciso iii) do artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto se produzirá com a incorporação que realizarem Argentina, Brasil e Uruguai, nos termos do inciso ii) do mencionado artigo. 3.A suspensão cessará quando, conforme o estabelecido no artigo 7° do Protocolo de Ushuaia, se verifique o pleno restabelecimento da ordem democrática na parte afetada. Os Chanceleres manterão consultas regulares a esse respeito”.

Cabe destacar que não houve uma Decisão do Conselho do Mercosul com o alcance de ato jurídico adotado no âmbito dos arts. 2, 3, 8 e 9 do Protocolo de Ouro Preto.Segundo o texto aprovado, a interrupção da suspensão se produzirá ao ser verificado o restabelecimento da ordem democrática no Paraguai, e a esse respeito se prevê manter consultas regulares.

A segunda questão prioritária é a de completar em todas as suas dimensões a incorporação da Venezuela ao Mercosul, acordada no Protocolo de Caracas (2006). A decisão adotada em Mendoza no sentido de incorporar a Venezuela ao Mercosul é, em parte, o resultado do que acontecera com o Paraguai. Efetivamente, o Protocolo de Caracas não pôde entrar em vigor por não se ter produzido a ratificação por parte do Paraguai. O Poder Executivo retirou o texto da consideração do Congresso por entender que não ia ser aprovado. O impasse assim criado não é de importância menor na hora de tentar entender o clima político existente, pelo menos em alguns dos países membros, em torno da questão da incorporação da Venezuela ao Mercosul.

Em Mendoza, os três Chefes de Estado decidiram: “1. A entrada da República Bolivariana da Venezuela no Mercosul; 2. Convocar uma reunião especial visando à admissão oficial da República Bolivariana da Venezuela no Mercosul para o dia 31 de julho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, República Federativa do Brasil, e. 3.- Convocar todos os países da América do Sul para que no complexo cenário internacional atual se unam, para conseguir que o processo de crescimento e inclusão social protagonizado na última década na nossa região se aprofunde e atue como fator de estabilidade econômica e social num ambiente de plena vigência da democracia no continente”.

Após a decisão adotada em Mendoza sobre a incorporação da Venezuela, sem ter sido completado o previsto pelo artigo 12 do Protocolo de Caracas, está sendo desenvolvido um debate político e, inclusive, jurídico nos países membros, em relação ao qual é preciso distinguir duas questões. De um lado, está a decisão política de incorporar a Venezuela ao Mercosul, que foi formalizada no Protocolo de Caracas. Reflete a clara vontade soberana de cinco países, expressa com os procedimentos previstos no Tratado de Assunção. Depois se completou o processo constitucional interno para a ratificação da decisão em três dos países membros. Por outra parte, está a questão da decisão adotada em Mendoza de completar a incorporação da Venezuela, mesmo sem a ratificação do Protocolo de Caracas por parte do Paraguai. É sobre essa decisão, sua oportunidade política e sua solidez jurídica que está aberto um debate intenso no Mercosul. O governo do Paraguai levou o caso para exame pelo Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, que o considerou improcedente na forma em que tinha sido colocado.

Mercosul e alcance sul-americano

Depois, na reunião presidencial realizada em Brasília, em 31 de julho, foi formalizada a incorporação da Venezuela ao Mercosul. Será necessário observar, então, como se completa o cumprimento do disposto pelo Protocolo de Caracas em relação à aplicação, por parte da Venezuela, do programa de liberalização comercial, incluindo a finalização dos efeitos das normas e disciplinas do ACE nº 59 no âmbito da Aladi (arts. 5 e 6 do Protocolo) e, depois, em relação à incorporação da normativa do Mercosul e, em particular, da Nomenclatura Tarifária Comum e da Tarifa Externa Comum (arts. 3 e 4 do Protocolo).

Com o conhecimento preciso do perfil tarifário decorrente da plena incorporação da Venezuela ao Mercosul cada país membro estará em melhores condições para avaliar os efeitos econômicos concretos, em particular relacionados à competitividade de bens e serviços originados no Mercosul, vis-à-vis aqueles procedentes de terceiros países, como os Estados Unidos, a China, os da UE e os andinos. Então, será possível saber, com maior precisão, qual é o valor agregado que resulta da incorporação da Venezuela, no que se refere a tratamentos preferenciais no comércio de bens e serviços, em investimentos e em compras governamentais, na parte relacionada ao que já existe atualmente, em particular como reflexo do ACE nº 59.

Como foi mencionado antes, outro passo será o da adesão da Venezuela ao Acordo de Alcance Parcial n° 18, que incorpora o Tratado de Assunção ao marco legal da Aladi. Sua importância prática decorre do fato de que constitui a base legal para aplicação entre os sócios das preferências resultantes dos compromissos assumidos no Mercosul, sem que as mesmas sejam estendidas aos demais países da Aladi. Em alguns dos sócios do Mercosul, tal incorporação poderia ser fundamental para garantir a legalidade interna da liberalização tarifária que se pactue com a Venezuela. O artigo 15 prevê a adesão de outros países membros da Aladi por meio de um Protocolo Adicional ao ACE n° 18.

Vinculada à mencionada questão da Venezuela, também será importante observar quais serão as modalidades e alcances da incorporação de outros países sul-americanos ao Mercosul. Em Mendoza foi aberto o caminho à incorporação do Equador. Parece que a ideia é dar ao Mercosul um alcance sul-americano. É algo que estava contemplado no próprio Tratado de Assunção. Muito provavelmente isso acentuará a necessidade de que, na sua nova etapa, o Mercosul conte com um desenho que combine um razoável grau de segurança jurídica com geometrias variáveis e múltiplas velocidades em seus compromissos. Inclusive, chegou a ser mencionada a possibilidade de fundir o Mercosul com a Unasul.

A terceira questão prioritária é a que resulta da colocação feita por Wen Jiabao, o primeiro-ministro da China, especialmente na vídeo-conferência de 25 de junho, realizada em Buenos Aires, com a participação das presidentes da Argentina e do Brasil e do presidente do Uruguai. Sugeriu realizar um estudo de factibilidade sobre um eventual acordo de livre comércio. Também colocou o objetivo de duplicar o comércio recíproco em quatro anos. À medida que se avance na iniciativa de um eventual acordo de livre comércio entre o Mercosul e a China, será possível supor que, por sua importância, a negociação terá um impacto nas tratativas comerciais do Mercosul com outros países e regiões. Especialmente, poderia ter um impacto nas demoradas negociações Mercosul-UE. Com relação a essas negociações, será preciso ainda muito oxigênio político, bem como flexibilidade conceitual e técnica, se o que se procura é conseguir um acordo que permita abrir um processo de longo prazo que seja, em todas as suas etapas, equilibrado e ambicioso.

Condições para o desenho de uma nova etapa do Mercosul

Refletir sobre as condições que permitem desenvolver processos de integração em espaços geográficos regionais, de maneira tal que gerem um quadro previsível de lucros mútuos para os países participantes, tem, atualmente, forte relevância prática.

Certamente, tem relevância na Europa e, em especial, na América do Sul. A transição do Mercosul para uma nova etapa, com perfis institucionais e métodos de trabalho ainda incertos, aumenta a necessidade de pensar de que maneira é possível ter acesso, com base na experiência adquirida, e capitalizando os ativos acumulados, a uma nova etapa do processo de integração na qual os benefícios que forem gerados possam ser percebidos como vantajosos pelos diferentes países e, em particular, por seus cidadãos.

O caminho não será fácil. Desde que o Mercosul foi criado, em 1991, acumularam-se experências e ativos que têm valor, por exemplo, em termos de acessos preferenciais relativamente garantidos aos respectivos mercados e de uma incipiente integração produtiva. Em alguns momentos, o Mercosul chegou a ser percebido como algo bem-sucedido, mas também se acumularam muitas frustrações. Elas se originam nas próprias dificuldades de um empreendimento de trabalho conjunto que requer combinar muitos e diferentes interesses nacionais num contexto de numerosas assimetrias, sobretudo de dimensão econômica relativa.

É imprescindível reconhecer, contudo, que tais frustrações também podem ser explicadas por uma relativa tendência a se produzir fatos midiáticos – qualificados como “históricos” pelos respectivos protagonistas – que têm criado a imagem de uma espécie de “integração de vitrine” (parafraseando a expressão de “modernização de vitrine”, utilizada por Fernando Fanjzylber, o lembrado economista da Cepal), em que as aparências parecem se sobrepor às realidades. Frustrações que podem explicar a indiferença e, inclusive, a rejeição da ideia de integração regional por setores às vezes amplos de alguns dos respectivos países.

A reflexão sugerida precisa ser realizada levando-se em consideração o contexto das profundas mudanças que estão sendo operadas em escala global. E também é preciso colocar o Mercosul no quadro da arquitetura institucional da região sul-americana (a Unasul), do espaço regional latino-americano (a Aladi e o Sela), e do espaço mais amplo da América Latina e o Caribe (a Celac). Articular as ações de cooperação que possam ser desenvolvidas através do mosaico de instituições existentes é, atualmente, uma das prioridades que reconhecem os próprios países que as integram. É uma articulação que, numa visão idealizada, poderia evocar as matrioskas russas, no fato de caber uma dentro de outra e, ao mesmo tempo, cada uma mostrar uma realidade diferente em suas dimensões.

São várias as opções possíveis para o desenho da nova etapa. Como no caso europeu, não existe uma fórmula única. Uma das lições a se extrair da experiência acumulada, tanto nesta como em outras regiões, é exatamente que o terno deve ser desenhado sob a medida de realidades bem diagnosticadas. Como ensinou Jean Monnet, o essencial é encontrar fórmulas adaptadas a cada circunstância histórica. É ali, onde é preciso uma adequada combinação de imaginação política e técnica.

Uma opção poderia ser conceber o Mercosul como uma rede de acordos bilaterais e plurilaterais, inclusive setoriais e multissetoriais de integração produtiva, conectados entre si. Precisaria de mecanismos flexíveis de geometria variável e de múltiplas velocidades. A própria UE tem experiências nesse sentido. Não significaria deixar de lado o compromisso de construir uma união aduaneira como passo em direção a um espaço econômico comum. Poderia ser feito através de Protocolos Adicionais ao Tratado de Assunção ou por instrumentos jurídicos paralelos, mas não contraditórios. Os acordos bilaterais entre a Argentina e o Brasil são um precedente a se levar em conta. Entre outras regiões, a centro-americana é um ponto de referência a esse respeito.

Condições para a construção de um espaço regional

Tal opção permitiria incluir a possibilidade de flexibilizar, em determinadas condições, a concertação de compromissos que se assumam no âmbito de acordos preferenciais que um ou mais países membros concluam com terceiros países ou grupos de países. É claro que isso implicaria acordar disciplinas coletivas entre os sócios do Mercosul, que possam ser tuteladas e avaliadas em seu cumprimento por um órgão técnico com competências efetivas. Não há razão para se ajustar ao estereótipo instalado com o equívoco conceito de “supranacional”. O modelo do papel do diretor-geral da OMC pode ser útil para isso.

O importante é levar em conta que são muitas as condições que podem ser necessárias para a construção de um espaço regional marcado pelas ideias de integração e de cooperação, isto é, de trabalho conjunto entre nações que o conformam. São condições que resultam, em particular, de alguns traços centrais deste tipo de empreendimentos multinacionais, tais como, o caráter voluntário da participação de cada nação – ninguém obriga ninguém a ser membro de um determinado acordo de integração; a gradualidade, pois os objetivos perseguidos, especialmente os mais ambiciosos, podem precisar de muito tempo para serem alcançados e, até, talvez, nunca sejam alcançados plenamente; e a adaptação às contínuas mudanças.

Mas, no caso do Mercosul, em seu momento atual de fim de uma etapa e de trânsito para uma nova, ainda não definida com precisão, três parecem ser as condições mais relevantes e necessárias, visando a um salto para uma construção mais sólida e eficaz, com potencial de captar o interesse dos cidadãos. Interesse relacionado à capacidade do Mercosul de criar lucros mútuos para cada um dos países participantes, tendo em conta as diversidades que os caracterizam.

Tais condições são: a estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional de cada país participante, a qualidade institucional e das regras de jogo e a articulação produtiva de alcance transnacional.

Seria recomendável que estas três condições estivessem presentes no necessário debate nacional de cada país interessado em continuar sendo membro ou em incorporar-se como novo país membro. Isso é importante para se definir com solidez as estratégias e as metodologias da nova etapa do Mercosul.

O trabalho conjunto entre nações que compartilham um espaço geográfico regional, especialmente se é expresso através de acordos e instituições com objetivos ambiciosos e de longo prazo, como é o caso do Mercosul, supõe que cada país participante saiba o que precisa e o que pode obter ao se associar aos outros. É importante que cada país tenha uma estratégia de desenvolvimento e de inserção internacional elaborada em função das suas próprias características internas e dos objetivos valorizados pela respectiva sociedade. Estratégia, aliás, que não se limitará à região. Hoje, mais do que nunca, é no plano de objetivos de alcance global onde se devem colocar os objetivos perseguidos no plano regional.

A maneira como a estratégia e seu conteúdo se expressam é algo que depende de cada país. O concreto é que a construção consensuada de uma região multinacional, quaisquer que sejam seus objetivos, modalidades e alcances, é feita a partir do nacional, quer dizer, do que interessa a cada país participante. Nesse sentido, foi apontado com razão que os países se associam no plano regional não a partir de hipotéticas racionalidades supranacionais, mas de concretas e, às vezes, de patéticas racionalidades nacionais. É a aproximação de interesses nacionais em torno de uma visão estratégica compartilhada o que caracteriza este tipo de trabalho conjunto voluntário entre nações soberanas que não estão dispostas a deixar de sê-lo.

Portanto, é necessário ser franco, no sentido de que se um país não tem tal estratégia, ou se ela não for realista (por exemplo, quando um país superestima o seu valor e a sua capacidade de negociação frente ao resto do mundo e, mais concretamente, frente a seus sócios), resultará difícil imaginar que os outros países – para além da retórica – contemplarão plenamente seus interesses. É o que Ian Bremmer expressa com crueza no título de seu recente livro sobre o mundo atual: “cada nação na sua”. E acrescenta com mais crueza ainda que existirão “vencedores e perdedores” (em “Every Nation for Itself. Winners and Loosers in G-Zero World”, Portfolio-Penguin, Nova York 2012).

A mensagem que se pode extrair é, então, clara: num contexto global, sem uma potência central – e sem um diretório de potências centrais em que acreditar (G0) –, cada nação deve defender seus próprios interesses, para o qual deve saber o que precisa e o que pode obter. Na transição rumo ao mundo do futuro existirão vencedores e perdedores. É uma mensagem que tem validade para cada um dos espaços geográficos regionais. E certamente, também, para a América do Sul.

No caso concreto do Mercosul, em sua atual encruzilhada, a cada país membro lhe convém, então, se questionar sobre suas opções reais, não as teóricas. Se um país não estiver de acordo com o Mercosul e visualizar opções razoáveis que permitam contemplar melhor as principais dimensões de sua inserção na região e no mundo, isto é, que perceba ter um “plano B”, o razoável poderá ser abandonar o empreendimento conjunto. O Chile o fez a certa altura em relação ao Grupo Andino e, depois, ao não aceitar o convite para participar do Mercosul como membro pleno. O mesmo foi feito pela Venezuela quando decidiu deixar de ser membro da Comunidade Andina de Nações. Se, pelo contrário, esse país não visualizasse um “plano B” razoável, política e economicamente, lhe conviria ponderar quais alcances deveria ter a futura etapa do Mercosul à luz dos pactos constitutivos e das opções metodológicas imaginadas. Porém, tal ponderação será mais sólida na medida em que mostre os objetivos definidos na respectiva estratégia de desenvolvimento nacional (o “home grown plan” nas conhecidas colocações do professor Dani Rodrik), que parece razoável imaginar que incluirá uma apreciação do que o país precisa e pode obter do seu ambiente global e regional.

Qualidade institucional

Uma segunda condição diz respeito à qualidade das instituições e das regras de jogo. Isso inclui tanto o processo de elaboração de decisões quanto as próprias regras que forem aprovadas, assim como os mecanismos de aplicação das normas e os de solução dos diferendos produzidos entre os países membros diante do que foi pactuado. E inclui tanto a fase nacional quanto a multinacional das instituições do Mercosul. Mais uma vez, é possível sustentar que a qualidade institucional começa no respectivo plano nacional, para se expressar depois no plano multinacional – qualquer que seja a composição do respectivo órgão e seu sistema de votação –, e voltar ao plano nacional, que é onde se cumpre ou não com o pactuado.

A intensidade da participação da sociedade civil no plano interno de cada país membro é um fator central para garantir a qualidade institucional de um processo de integração. Para tanto, é necessária uma cultura de transparência que se reflita, quer no plano nacional como no multinacional, na qualidade de websites densos em informação útil para a gestão de inteligência competitiva por parte de todos os protagonistas.

Regras precárias, com baixa capacidade de serem efetivas e eficazes, principalmente se são uma resultante de deficiências em seu processo de elaboração, tendem a erodir a eficácia e a legitimidade do próprio processo de integração. Não favorecem os países de menor dimensão relativa nem são levadas a sério por aqueles que têm que adotar decisões de investimento produtivo. No Mercosul, a precariedade institucional e das regras de jogo, a insuficiente transparência e fraca participação da sociedade civil – manifesta em múltiplos exemplos – são uma das principais causas da deterioração do processo de integração. Talvez seja uma espécie de vírus que provém da experiência de integração na Alalc, primeiro, e depois na Aladi, nas quais muitas vezes foi possível observar o predomínio de uma cultura da anomia, no sentido de que as regras se cumpriam só na medida em que isso era factível, e a informação necessária para decidir não era facilmente acessível. A história das listas de exceção mereceria ser reconstruída. Trata-se de uma cultura que, tanto no plano interno de uma sociedade como no internacional, tende a favorecer aqueles que têm mais poder relativo.

Conciliar flexibilidade com previsibilidade parece ser fundamental se na sua próxima etapa o Mercosul quiser incluir outros países sul-americanos, aumentando, assim, as assimetrias e a diversidade de interesses em jogo. Isso vai requerer que se recorra a metodologias de geometria variável e de múltiplas velocidades. Sem regras de jogo de qualidade, tais metodologias poderiam acentuar tendências à dispersão de esforços e conduzir o Mercosul a novas frustrações.

Integração produtiva

A terceira condição tem a ver com a articulação produtiva em nível regional. A agenda da integração produtiva ocupa, atualmente, um lugar importante na agenda do Mercosul. Certamente, provém de sua fundação, quando se incorporou o conceito de acordos setoriais e foi aprovada a Decisão CMC 03/91. Está baseada na experiência acumulada no período de integração bilateral entre a Argentina e o Brasil. Seus precedentes são múltiplos. Encontram-se na origem da integração europeia e também na criação do Grupo Andino.

A integração produtiva, por meio de cadeias de valor transnacionais permite, além de gerar um quadro de lucros mútuos entre os países participantes, desenvolver o que nos primórdios da integração europeia Jean Monnet denominava solidariedades de fato. Podem ser, em tal sentido, um importante fator para reduzir os riscos de reversibilidade dos compromissos assumidos pelos países membros. E isso é assim, porque contribuem para envolver os diferentes sistemas produtivos nacionais e seus protagonistas, criando, desse modo, fortes incentivos para preservar e expandir um processo de integração multinacional. A integração produtiva requer, em cada um dos países, empresas com interesses ofensivos e capacidade de projeção internacional.
As três condições mencionadas estão estreitamente vinculadas entre si. Somadas permitem imaginar uma estratégia realista de negociações comerciais com outros países e regiões. Sem estratégia nacional será difícil que um país possa se beneficiar das decisões que forem elaboradas para fazer avançar um processo de integração e para criar suas regras de jogo. Sem regras de jogo que se cumpram efetivamente será difícil ganhar em flexibilidade e conseguir, ao mesmo tempo, que as empresas realizem investimentos produtivos em função do mercado ampliado. Sem tais investimentos produtivos, especialmente no âmbito de cadeias de valor transfronteiriças, será difícil criar de forma estável os benefícios esperados de um processo de integração, especialmente aqueles de maior impacto social por seus efeitos de geração de emprego e de identificação dos cidadãos com a ideia de região compartilhada. Será mais difícil ainda estabelecer negociações comerciais internacionais favoráveis ao desenvolvimento e à transformação produtiva de cada país da região.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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