O Impasse sobre monumentos e obras de arte racistas
Na praça de uma cidade indeterminada, uma enorme fila se forma com pessoas ávidas por ver a Mona Lisa de perto — e destruí-la. A cena é narrada no conto ‘O Sorriso’, do escritor norte-americano Ray Bradbury, publicado em 1952 na edição inaugural da revista Fantastic. Quatro anos depois, em 1956, a pintura mundialmente famosa de Leonardo da Vinci foi atacada por duas vezes, com ácido e pedras, demandando longos anos de restauração após os atos de vandalismo. Longe de ser um profeta, o autor do clássico distópico Fahrenheit 451 se inspirou nas montanhas de livros queimados na Alemanha nazista para dedicar sua obra à compreensão do instinto destrutivo que leva à iconoclastia. Uma conclusão preliminar de sua investigação é enunciada por um dos vândalos do conto: “Tom, tem a ver com o ódio. Ódio por tudo no passado. Eu te pergunto, Tom, como foi que chegamos a esse ponto, as cidades todas transformadas em sucata, as estradas um quebra-cabeça por causa das bombas, e metade dos milharais reluzindo de radioatividade à noite?”, diz o personagem. “Você odeia tudo que te derrubou e te arruinou. Natureza humana. Irracional, talvez, mas é a natureza humana de qualquer modo.” Essa narrativa se passa no longínquo ano de 2251, mas é uma boa chave de leitura para se discutir alguns dos eventos de 2020.
Em 25 de maio, o assassinato brutal e covarde de um homem negro, George Floyd, por um policial branco em Mineápolis, nos Estados Unidos, provocou uma onda de protestos contra o racismo estrutural por cidades em todo o mundo. Manifestações foram registradas da Islândia ao Cazaquistão, passando por Brasil e Sri Lanka. A revolta generalizada foi acompanhada de atos de depredação de monumentos públicos que exaltavam personagens históricos controversos. O caso mais emblemático foi a remoção da estátua de Edward Colston (1636-1721), em Bristol, na Inglaterra, no dia 7 de junho.
O monumento em bronze erigido em 1895 foi retirado pelos manifestantes e lançado nas águas do cais da cidade, trespassada pelo rio Avon. Colston é um nome bastante comum no município, batizando escolas, logradouros e uma casa de concertos. Membro do parlamento inglês, ele foi um filantropo cuja fortuna foi erguida com o comércio de tecidos, frutas, bebidas… e escravos.
Aqui reside o ponto central da presente discussão. O que está sendo reavaliado, em última instância, é o real valor de um legado construído às expensas de vidas humanas e, principalmente, como lidar com essa herança. Ao todo, estima-se que Colston tenha doado, em obras de caridade, por volta de 11 milhões de libras esterlinas em valores corrigidos. Mas, ele participou ativamente no tráfico de 84 mil pessoas africanas, entre homens, mulheres e crianças (12 mil), das quais 19 mil morreram durante o transporte em navios negreiros, sob condições absolutamente desumanas. E, se muitas de suas benfeitorias, como escolas e hospitais, estão ativas ainda hoje em prol da população de Bristol, também há milhares de descendentes dos escravos vendidos por ele que ainda hoje sofrem, nas Américas e no Caribe, com a profunda desigualdade social observada em sociedades construídas com mão de obra escrava.
Não é necessário conduzir uma pesquisa muito aprofundada para constatar que, em países escravagistas como Brasil e Estados Unidos, as condições de vida dos descendentes de escravos tendem a ser extremamente desfavoráveis em relação às dos habitantes que descendem de seus senhores ou de imigrantes posteriores. Nesse caso, a expressão “tendem a ser” elimina as exceções costumeiramente pinçadas de modo a exaltar a superação pessoal, o empreendedorismo e uma suposta ordem meritocrática em detrimento da nítida desigualdade e baixíssima mobilidade social. Embora o ordenamento jurídico de tais países conceda direitos igualitários a todos os seus cidadãos, a letra da lei não se reflete nas práticas institucionais, que tolhem o acesso a esses direitos fundamentais. É a esse fenômeno que se dá o nome de racismo estrutural. Ou seja, os protestos que levaram ao fundo do rio Avon a estátua de Colston não partem da mera insatisfação com ações individuais, mas sim de questões coletivas. Embora um fato específico – o assassinato de Floyd – tenha sido o estopim para a tomada de ação, a tendência de a violência policial ser direcionada às populações não brancas é muito bem documentada.
Dito isso, é compreensível que uma parcela da população historicamente prejudicada sinta-se ofendida na presença de um monumento, uma rua ou um estabelecimento que exalte um dos tributários desse mesmo passado de opressão, embora esse não seja o intuito original da obra, uma vez que, à época da inauguração da estátua de Colston, em 1895, seu envolvimento com o tráfico humano não era tão bem disseminado quanto hoje entre os historiadores. No entanto, toda e qualquer destruição de patrimônio histórico e cultural — ainda que a estátua de Colston não possua, nem de perto, o valor estético e artístico, digamos, do Monumento às Bandeiras, sobre o qual vamos nos debruçar adiante — é uma perda para a humanidade de modo geral.
Conservar, destruir monumentos ou fazer intervenções?
Ativistas que defendem a derrubada de estátuas como a de Colston, todavia, consideram que atos como esse não são exemplos de vandalismo. Não se trata meramente de depredar uma obra, mas de retomar um espaço que deveria ser público e que não era graças a um monumento que demarca claramente quem de fato domina aquele espaço. Em artigo para a Deutsche Welle, a jornalista egípcia baseada na Alemanha Waafa Al Badry opina: “Exigir a remoção de monumentos não é nem um pouco como a destruição pelo Estado Islâmico, que visava espalhar medo e executar atos de terrorismo. Pelo contrário: os manifestantes estão reivindicando a remoção de signos de opressão racial. O derrubamento de estátuas tampouco apaga a história. É antes um protesto político contra a celebração de uma história ou presente comuns, em que um lado ainda sofre as consequências daquela história”. De acordo com Al Badry, a presença de símbolos que consagram a supremacia branca em espaços públicos são entraves à superação do racismo e à descolonização, mantendo aberta uma ferida histórica ainda não cicatrizada.
Em uma simplificação grosseira, digamos que há dois extremos nessa questão: em uma ponta, conservar os monumentos exatamente como eles estão; na ponta oposta, destruí-los. Como vimos acima, as ações de uma figura histórica como Edward Colston produzem efeitos até os dias de hoje, cerca de 300 anos após sua morte. De um lado, manter sua estátua intacta é compreensivelmente ofensivo e ultrajante para pessoas que sentem na pele os efeitos nefastos provenientes dos atos de Colston, descendentes das pessoas que ele e seus colegas sequestraram, cujas vidas ainda hoje são arbitrariamente determinadas por condições socioeconômicas historicamente desfavoráveis. Do outro lado, destruir um monumento desencadeia certo revisionismo (ainda que o apagamento da história não seja o intuito dessa ação, como diz Al Badry) que pode produzir malefícios e ser contraproducente à luta antirracista.
Uma terceira via menos radical seria a intervenção crítica nessas obras. Nesse caso, a ação a ser tomada varia de acordo com cada obra individualmente, levando em conta suas especificidades históricas, estéticas e até urbanísticas. Bansky, codinome de um artista inglês que mantém anonimato, propôs que a estátua de Colston fosse retirada do rio Avon, recolocada em seu pedestal e que outras estátuas, dos manifestantes que a derrubaram, fossem erigidas ao redor dela, eternizando o momento de sua queda. Esse é apenas um exemplo de intervenção, mas as possibilidades são muitas. Dessa forma, o tributo a um traficante de escravos se torna uma ode à luta antirracista, algo mais útil à causa do que uma estátua no fundo de um rio, que nada faria pela conscientização das futuras gerações quanto ao flagelo do racismo. Além de intervenções, é possível transportar alguns monumentos do espaço público para um “museu do racismo”, onde eles poderão servir a propósitos historiográficos sem agredir a dignidade de ninguém. Em outros casos, uma legenda que contextualize aquela obra, colocando em contraste os valores atuais com os da época em que ela foi erigida, pode contribuir com a educação da população quanto ao passado e suas consequências.
Há que se levar em consideração, no entanto, que a estátua de Colston já vinha passando por uma reavaliação intensa. A casa de concertos batizada em sua homenagem estava em processo de mudança de nome, assim como algumas escolas, e a cidade de Bristol já havia mudado duas vezes a legenda de sua estátua nos últimos anos, atendendo a pedidos de ativistas e intelectuais, trocando o tom laudatório dos dizeres originais para informar a respeito do envolvimento do filantropo com a escravidão. Ou seja, é possível que intervenções modestas não sejam suficientes para aplacar o compreensível ultraje da população diante de tais figuras. Uma discussão abrangente a respeito de cada monumento em particular se faz necessária, dando voz, principalmente, aos movimentos negros.
A estátua de Colston não demandou nada além de uma corda para tombar, e há de se convir que sua ausência não será sentida por méritos estéticos. Sem entrar na infindável discussão sobre a qualidade artística, é ponto pacífico que a peça de bronze que repousa no Avon não tem a força, por exemplo, da obra modernista em granito esculpida por Victor Brecheret que adorna o portão 9 do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. No entanto, a influência racista no Monumento às Bandeiras é inegável. Não só porque os bandeirantes foram figuras controversas — que desbravaram o interior do Brasil, mas, no processo, escravizaram indígenas — mas pela composição: à frente, o homem branco cavalga imponente, enquanto atrás, o negro e o índio carregam seu barco pela mata.
Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o professor Paulo Garcez Marins, chefe da Divisão de Acervo e Curadoria do Museu Paulista, falou sobre a dificuldade de se transportar algo da magnitude do Monumento às Bandeiras ou mesmo do Borba Gato, no bairro de Santo Amaro. “É preferível, do ponto de vista financeiro, construir um museu ao redor dela”, disse ele, acrescentando que o intolerável, de fato, é essas obras estarem expostas ao público sem qualquer tipo de contextualização que ofereça uma interpretação crítica dos seus significados. O Museu Paulista, aliás, reconhece ter sido um dos responsáveis pela construção da figura histórica dos bandeirantes como heróis e promete, em sua reabertura, em 2022, propor um debate mais produtivo em relação a seu acervo, pautado pelas demandas atuais da sociedade.
No entanto, não só de monumentos se faz a presente discussão. Paralelamente à queda de estátuas pelo mundo, uma outra derrubada, mais silenciosa, vem sendo proposta: o veto a filmes, livros e obras de arte de cunho racista. O exemplo mais notório até aqui é a retirada de “…E o Vento Levou” do acervo da plataforma de vídeo sob demanda HBO Max e sua posterior disponibilização acompanhada de uma introdução. O filme de 1940, dirigido por Victor Fleming e adaptado do romance de Margaret Mitchell, se passa na Guerra Civil Americana, período sensível para a questão racial nos EUA. A obra perpetua estereótipos da relação entre escravos e senhores que, além de historicamente imprecisos, são ofensivos à população afro-americana. No entanto, sua exclusão definitiva do catálogo seria pouco produtiva ao debate antirracista por vários motivos. Sem acesso livre à obra, ela pode se tornar objeto de culto de grupos que propagam ódio, além de passar a circular clandestinamente de modo a enfatizar seu conteúdo discriminatório em vez de colocá-lo em discussão — como ocorre, por exemplo, com o famigerado Minha Luta, livro de Adolf Hitler.
Evitar que a arte seja reduzida a algo apenas ideológico
No cinema, os exemplos mais gritantes de obras canônicas cuja relevância artística é inegável e que carecem de contextualização são os filmes de D. W. Griffith, como O Nascimento de uma Nação (1915) e Intolerância (1916); e os documentários de Leni Riefenstahl, como Triunfo da Vontade (1935) e Olympia (1938). Nessas obras há, respectivamente, clara apologia à Ku Klux Klan e ao nazismo. Griffith era descendente dos confederados escravagistas e Riefenstahl foi praticamente a cineasta oficial do Terceiro Reich.
Apesar de veicularem discurso de ódio, esses filmes não poderiam ser apagados do registro histórico sem grande perda para o cinema, por suas inovações estéticas e formais para a sétima arte. É importante que eles estejam disponíveis tanto para espectadores quanto para aspirantes a cineastas e historiadores. Eles são, além de obras fundamentais para a técnica cinematográfica, documentos importantes para a compreensão do racismo. Da mesma forma que é importante investigar como foi possível o surgimento da figura dos bandeirantes para que possamos desconstruí-la, se quisermos combater o preconceito precisamos entender suas raízes. Assim como os monumentos, esses filmes devem estar disponíveis para o público, mas sempre com direito a uma contextualização que os torne educativos — em vez das meras peças de propaganda discriminatória que eles seriam se fossem distribuídos clandestinamente.
A literatura está repleta de exemplos semelhantes aos já citados, como o de José de Alencar, que assinou cartas em defesa da escravidão e foi expoente do romantismo brasileiro. Ou o criador do horror cósmico norte-americano, Howard Phillips Lovecraft. Ele era expressamente racista, sexista e xenófobo. No entanto, esses preconceitos permeiam a construção de sua própria verve literária, influenciando até mesmo as descrições dos horrores de que tratam suas narrativas. Na verdade, são raros os escritores cuja biografia não é maculada por algum tipo de opinião pouco adequada aos tempos atuais. Sempre que a obra de algum deles entra em domínio público, como ocorreu recentemente com Monteiro Lobato, não apenas seu legado entra em discussão, como surgem também propostas editoriais de alteração em seus livros.
Porém, essas propostas devem ser encaradas com bastante cautela. Mais interessante do que censurar trechos potencialmente racistas de Lobato ou Lovecraft é contextualizá-los criticamente, como algumas editoras vêm fazendo com os clássicos infantis do criador do Sítio do Picapau Amarelo. Há também a possibilidade de ressignificá-los, como o romance Território Lovecraft, de Matt Ruff. Lançado em 2016, ele colocou em pauta as questões problemáticas da obra de Lovecraft sem apagar seus méritos literários, usando um protagonista negro para transformar o racismo em elemento de horror.
Não se trata de fingir que não há nada de errado quanto às opiniões e vidas dessas e de outras figuras, mas sim evitar que a arte seja reduzida a uma questão meramente ideológica — embora a arte sempre possua uma dimensão intrinsecamente política. Ainda que o impulso destrutivo que Bradbury descreve seja compreensível, é importante que não nos transformemos nos censores que tanto condenamos.
É escritor, jornalista e crítico literário. Autor de 'Cela 108' (2015) e coautor de 'Corações de asfalto' (2018). Tem contos em diversas publicações literárias e escreve sobre literatura e arte para o jornal 'O Estado de S.Paulo'.
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