01 outubro 2014

O Mal-Estar entre Nós

Há um certo mal-estar no Brasil. Não estamos felizes com o que está acontecendo – a economia cresce pouco e há uma insatisfação no ar – e não vemos perspectivas de que esse quadro mude no médio prazo, independentemente de quem governe o país. Nós, brasileiros, e, mais especificamente, nós, elites econômicas, políticas e intelectuais, não estamos vendo um futuro brilhante para o Brasil. Eu me pergunto qual a natureza desse mal-estar. Não estamos atravessando um período que possa ser chamado de crise econômica ou de crise política. Não há nada ameaçador à nossa frente nem no plano político, nem no plano econômico. E, no entanto, além dessa sensação subjetiva e indefinida de mal-estar, houve um fato objetivo: as grandes manifestações populares de junho de 2013, que foram uma demonstração concreta de que algo não está bem. Poderemos explicar o mal-estar entre nós explicando aquelas manifestações? Talvez, mas eu estou convencido que muitas das análises que li dessas manifestações exageraram sua importância. Afinal, depois de junho sucederam-se muitas manifestações, mas pequenas, localizadas, que buscavam, sem êxito, aproveitar o êxito das manifestações desencadeadas pelo Movimento do Passe Livre.
Um projeto de desenvolvimento econômico
No artigo de maio (“O mal-estar em torno de nós”, Folha de S. Paulo), eu associei o problema ao fato de que, hoje, parece esgotado o terceiro grande ciclo da relação Estado-sociedade – o Ciclo Democracia e Justiça Social. Em livro que será publicado em breve, A Construção Política do Brasil, dividi a história do Brasil independente em três grandes ciclos: o Ciclo Estado e Integração Territorial, que correspondeu ao Império; o Ciclo Nação e Desenvolvimento, que foi dominante entre 1930 e 1977, e o Ciclo Democracia e Justiça Social, desde 1977, ficando a Primeira República como uma fase de transição. O terceiro ciclo alcançou um momento de “auge” durante o governo Lula, quando mais de 40 milhões de brasileiros atravessaram a linha da pobreza e uma grande classe C – a classe dos “batalhadores” de que nos fala Jessé Souza (2010) com tanta propriedade – ascendeu ao consumo de massa. Mas, dada a baixa taxa de crescimento e a desindustrialização acelerada, está claro que é preciso repensar o projeto de desenvolvimento brasileiro e a coalizão de classes necessária para levá-lo adiante.1
O Ciclo Estado e Integração Territorial foi o período em que o Estado brasileiro foi construído, a partir do Estado patrimonialista português; foi o período no qual se constituiu formalmente o estado-nação Brasil, e a integração territorial do país foi assegurada. Não foi pouca realização para uma sociedade cuja colonização, conforme ensinou classicamente Caio Prado Jr. (1945), foi de exploração mercantil, baseada no latifúndio e na escravidão. Mas, nesse ciclo não se construiu uma nação; éramos um país ou estado-nação com Estado mas sem nação; as elites brasileiras continuavam nesse período dependentes do sistema imperial moderno que foi comandado, no século XIX, pelos principais países da Europa e, um pouco mais tarde, pelos Estados Unidos, a partir do momento em que a revolução industrial em cada um desses países os tornava muito mais poderosos tanto econômica quanto militarmente. Formava-se, então, o “Ocidente”, que reduzia à condição de colônia os países da Ásia e da África, enquanto submetia à dependência cultural e financeira os países latino-americanos que, no início do século, haviam se tornado independentes de Portugal e Espanha.
O Ciclo Nação e Desenvolvimento foi o momento do nacional-desenvolvimentismo de Vargas, um grande projeto de desenvolvimento econômico no qual o Brasil realizou a mudança crucial que cada povo deve fazer para realmente se desenvolver: a formação de seu estado-nação e a revolução industrial, as duas transformações que fecham a revolução capitalista. Nesse período, cuja figura dominante foi Getúlio Vargas, a prioridade coube ao crescimento econômico. O Brasil industrializou-se, cresceu a taxas extraordinárias, a divisão do trabalho se aprofundou, novas classes sociais se afirmaram, os padrões de vida aumentaram. Mas, como geralmente acontece nos períodos de revolução industrial, nos 50 anos, de crescimento acelerado desse ciclo, entre 1930 e 1980, a desigualdade cresceu. E cresceu também o endividamento externo, dada a crença equivocada de que é possível crescer com poupança externa e câmbio apreciado (duas variáveis interdependentes), o que levou o país, nos anos 1980, a uma brutal crise financeira – a crise da dívida externa – e à estagnação econômica.
Um projeto de distribuição
A crise financeira iniciada em 1980 e a alta inflação inercial que dela decorreu desmoralizaram a gestão militar da economia e abriram espaço para a transição democrática. Esta começara em 1977, quando, diante de um conjunto de medidas violentamente autoritárias, o Pacote de Abril, a burguesia inicia o rompimento de sua aliança com a tecnoburocracia militar formada no início dos anos 1960, devido à Revolução Cubana de 1959 e à radicalização política da esquerda e da direita que então se verificou.
Formou-se, então, um grande pacto político democrático e popular que associou desenvolvimentistas e liberais e comandou a transição democrática. Ao mesmo tempo, iniciava-se um novo ciclo da relação Estado-sociedade no Brasil: o Ciclo Democracia e Justiça Social, que, pressupondo que o desenvolvimento econômico continuaria, estabeleceu como prioridade a diminuição da desigualdade. Nesse pacto, acordou-se que, além de se estabelecer a democracia, a enorme desigualdade existente no país deveria ser reduzida, mas de forma conservadora: não através do estabelecimento de impostos progressivos, mas do aumento da despesa social do Estado. Começava, então, a se formar um projeto nacional de distribuição.
Ao assumir o poder, em 1985, o governo Sarney, preso à contradição entre desenvolvimento econômico e distribuição, foi vítima do populismo econômico que reinava na sociedade brasileira e não logrou resolver a crise financeira nem controlar a inflação. Assim, com o fracasso do Plano Cruzado, a crise, além de econômica, tornou-se política, o governo perdeu legitimidade e a economia ficou à deriva. Entre 1987 e 1989, o país viveu um vazio de poder e, nos dois primeiros meses de 1990, a hiperinflação.2 A derrota de todos os líderes da transição democrática e a eleição de um arrivista nas eleições de 1989 assinalaram o fracasso da coalizão política democrática e desenvolvimentista liderada por Ulysses Guimarães.
Com a eleição de Fernando Collor de Mello, o liberalismo econômico voltou ao poder e, no governo seguinte, pareceu se consolidar graças ao Plano Real, que neutralizou a alta inflação inercial que assolava o país desde 1980. Não obstante o liberalismo econômico do governo Fernando Henrique Cardoso, o compromisso com o aumento das despesas sociais foi mantido, ao mesmo tempo em que o governo iniciava a reforma gerencial do aparelho do Estado brasileiro, que foi instrumental para a consolidação da maior conquista social da nova democracia brasileira: o SUS. O Brasil passava a contar com um sistema universal de saúde, algo que não é previsível em um país com o baixo nível de nossa renda per capita. Por outro lado, o governo resistiu à pressão americana para que participasse da Área de Livre Comércio das Américas – ALCA, o que mostrava que a nação brasileira continuava a existir, não obstante a imensa pressão da globalização neoliberal de convencer os países em desenvolvimento que o tempo das nações fora superado. O Ciclo Democracia e Justiça Social, iniciado em 1985 e definido pela Constituição de 1988, ganhava força.
Esse ciclo alcançou seu auge no governo Lula, que estabeleceu como sua prioridade a redução das desigualdades. Esse governo tomou decisões importantes nessa área, principalmente o forte aumento do salário mínimo real e a grande ampliação do Bolsa Família, ao mesmo tempo em que continuavam a aumentar as despesas sociais e se formava no Brasil, de forma precoce, um Estado do bem-estar social. A consequência de todo esse processo foi uma significativa redução da desigualdade, para a qual também contribuiu um fenômeno estrutural: o esgotamento da “oferta ilimitada de trabalho”, que ocorreu nos anos 2000, em consequência da vertical queda da natalidade duas décadas antes, tendo como principal resultado um forte aumento do trabalho formal, que, afinal, superou amplamente o trabalho informal.
O desenvolvimento econômico não é retomado
O Brasil está crescendo a taxas muito baixas desde 1980. Entre 1931 e 1980 a taxa de crescimento da renda per capita foi de 4,0% ao ano. Já entre 1994 e 2013, essa mesma taxa foi de apenas 1,8%. No período que excluí, os anos 1980, houve estagnação da renda per capita causada pela grande crise financeira e a alta inflação inercial. Superadas essas duas causas, a partir de 1994, surgiram duas outras – a taxa de juros muito alta e a taxa de câmbio sobreapreciada no longo prazo – que foram e continuam sendo responsáveis pelo baixo crescimento desde então. No período liberal de FHC, um câmbio altamente apreciado desde o Plano Real impediu que o desenvolvimento econômico fosse retomado. No período desenvolvimentista de Lula e Dilma, seria de se esperar melhor resultado, mas, dada a grande apreciação cambial que aconteceu nos oito primeiros anos, o desenvolvimento econômico continuou algo distante, parecendo cada vez mais inatingível. Apesar de o desenvolvimento econômico ter deixado de ser prioritário durante o governo Lula, seus resultados foram relativamente bons, e muitos economistas festejaram “a retomada do desenvolvimento”. Mas, estavam enganados. Durante oito anos, a taxa de câmbio, que se depreciara devido às duas crises financeiras durante o governo anterior, voltou a apreciar-se de forma brutal. A preços de hoje, de dezembro de 2002 a dezembro de 2010, a taxa de câmbio apreciou-se de R$ 5,00 por dólar para R$ 1,90 por dólar! O crescimento maior do PIB, no final desse governo, deveu-se ao aumento dos preços das commodities exportadas e ao mercado interno criado pela redução da desigualdade e pelo aumento do crédito ao consumidor. Mas, o mercado interno foi logo capturado pelos importadores; não imediatamente, porque os importadores de bens manufaturados precisam de cerca de três anos para organizarem suas importações, mas, passados os três anos, já no governo Dilma, os importadores inundaram o país com seus bens mais baratos, e a desindustrialização ganhou ainda mais força.
Ao chegar ao poder, a nova presidente tentou romper a armadilha do juro alto e do câmbio apreciado e logrou baixar os juros e depreciar o real em cerca de 20%. Mas, essa depreciação foi insuficiente – levou a taxa de câmbio a cerca de R$ 2,40 por dólar, não obstante a taxa de câmbio competitiva, compatível com o equilíbrio industrial, girando em torno de R$ 3,00 por dólar – e, portanto, não logrou estimular as empresas a investirem mais. A taxa de câmbio, que estava estruturalmente apreciada desde que a abertura comercial, em 1990-1991, terminou com o “modelo Delfim Neto” de neutralização da doença holandesa (combinação de altas tarifas de importação com subsídio à exportação de manufaturados), passou a permanecer apreciada no longo prazo em cerca de 25%. Somando-se a essa causa estrutural duas outras políticas econômicas que apreciam a taxa de câmbio (a política de crescimento com poupança externa e a política de usar a taxa de câmbio para controlar a inflação), compreenderemos por que a depreciação lograda no início do governo Dilma não foi suficiente para devolver competitividade às empresas industriais brasileiras competentes. Dada a apreciação cambial, essas empresas continuaram desconectadas de seu mercado interno e externo. A depreciação de 20% não foi suficiente para levar as empresas a investir, mas bastou para aumentar a inflação, e assim, ainda que esse aumento fosse temporário, ele e a baixa taxa de crescimento enfraqueceram o governo politicamente e o obrigaram a recuar, rendendo-se às pressões do mercado financeiro e de seus economistas.
Está claro para mim que o Ciclo Democracia e Justiça Social se esgotou; que não é possível continuar a basear a economia brasileira nos juros altos e, principalmente, no câmbio apreciado no longo prazo, que aumenta os rendimentos de todos e o consumo, ao mesmo tempo em que desestimula os investimentos. E estou seguro de que essa é uma das fontes do mal-estar brasileiro atual. Durante mais de 30 anos, a diminuição da desigualdade foi um projeto e uma realização, foi uma coisa lograda de forma concreta, mas não se imaginava que o desenvolvimento econômico que a acompanharia fosse tão baixo. Não se supunha que a preferência pelo consumo imediato, que caracterizou todo esse período, levasse os governos a se engajarem no populismo cambial (incorrer em déficits em conta-corrente irresponsáveis) e os impedisse de agir sobre o câmbio, neutralizando a doença holandesa, que causa uma sobreapreciação crônica ou de longo prazo da moeda nacional, e, depois, por meio de uma política cambial ativa, mantivesse essa taxa flutuando em torno do equilíbrio competitivo ou industrial, que garante competitividade para as empresas industriais brasileiras que ainda temos (que estão desaparecendo) e para todas as empresas que potencialmente poderíamos ter no futuro, mas que não teremos enquanto a taxa de câmbio continuar fortemente sobreapreciada no longo prazo.
Uma classe C vencedora
Mas, não é apenas a quase estagnação econômica e a falta de qualquer projeto para superá-la que explica o mal-estar das elites brasileiras. É também a ascensão da classe C ao consumo de massas, enquanto essa elite – não os muito ricos, mas sua grande classe média tradicional – não via sua renda aumentar. Produziu-se, assim, primeiro, o “efeito túnel”, definido por Albert O. Hirschman (1973). Enquanto, em um túnel, todos os automóveis andam lentamente, seus motoristas se aborrecem, mas não se sentem injustiçados.Se, entretanto, uma das vias do túnel passar a se mover, enquanto sua via fica parada, o motorista se torna indignado. É o que aconteceu no Brasil na relação entre a classe média tradicional e a classe C, com a ressalva que a outra via que avançava não era uma via “igual”, mas vista como inferior.
De repente, a classe média tradicional viu seus espaços invadidos pela classe C: os shopping centers, os aeroportos e mesmo os aviões internacionais. Ora, ainda que essa classe se acredite democrática e tolerante, está longe de sê-lo. O vício do desrespeito às classes inferiores está profundamente arraigado na sociedade brasileira. Conforme observou Claudio Gonçalves Couto (2014) de forma aguda, a ascensão social pelo consumo da classe C teve “efeito desorganizador na ordem tradicional da sociedade brasileira, tão calcada sobre a desigualdade”. Antes, as classes abastadas – a “gente bonita” – tinham acesso a determinados lugares. A chegada a eles de “gente diferenciada” gerou desordem e ressentimento; “os de cima (sobretudo dos não tão de cima) perderam a sua distinção baseada no consumo”.
Mas, não estariam os de baixo, a nova classe C, também vivendo seu próprio mal-estar? Couto acredita que sim. E Marta Arretche (2014), em excelente artigo publicado nesta revista, tem também uma interpretação que pode ser vista nessa direção. A partir de extensa pesquisa ela mostrou que as condições econômicas e sociais melhoraram muito no Brasil; que desde a transição democrática de 1985 a educação e a saúde apresentaram ganhos substanciais; que a qualidade da educação melhorou, e – fato a meu ver notável, “ainda que exista uma associação entre condições básicas de saúde e pobreza, a política de saúde no Brasil logrou reduzir a valores bem baixos a intensidade dessa associação” (p.19). Em outras palavras, os pobres deixaram de ter atenção de saúde muitíssimo pior do que os ricos – algo injusto por definição. Diante desses fatos, a pesquisadora concluiu que “as manifestações a que assistimos são parcialmente explicadas pela expressiva ampliação do número absoluto de indivíduos mais escolarizados, mais exigentes e com mais recursos para participar politicamente” (p.22).
Creio que Arretche tenha razão quanto ao problema das expectativas sempre crescentes e que essa é uma fonte de insatisfação. Ou melhor, essa é uma fonte de demandas também crescentes, mas daí a autora, corretamente, não deduz que a classe C sinta mal-estar. Pelo contrário, ela se sente vencedora. Isto ficou muito claro nos resultados da ampla pesquisa realizada com 2 mil moradores de 63 favelas em dez regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Pará, Ceará, Distrito Federal, Paraná e Rio Grande do Sul) pelo sociólogo Renato Meirelles e o ativista Celso Athayde, criador da Central Única das Favelas, que foi relatada no livro Um País Chamado Favela (2014). Conforme assinalou Ivan Marsiglia (2014), que os entrevistou, “a imagem que fica é a de empreendedores dinâmicos e otimistas, que reconhecem os benefícios advindos da estabilização econômica do governo Fernando Henrique Cardoso e da universalização dos programas sociais e expansão da renda sob Luiz Inácio Lula da Silva, mas atribuem a nova condição social, sobretudo, ao próprio esforço”. Nas palavras de Meireles, “a favela acredita que sua vida melhorou, antes de tudo, por mérito próprio, pelo trabalho de seus moradores. Encontramos nas favelas um brasileiro feliz, trabalhador, que chama para si a responsabilidade sobre a própria vida. E um cidadão cada vez mais exigente com os serviços públicos. Ele não quer dentadura, quer internet de banda larga. Não quer cesta básica, mas acesso à faculdade.” Ou então, nas palavras de Athayde: “Hoje, a gente sente que as favelas são mais valorizadas do que há dez anos. Se alguns ainda as veem como ameaça e as tratam com desconfiança, outros já a reconhecem pela rica diversidade cultural e social que apresentam”.
Não há, portanto, mal-estar entre os pobres. A classe C, ou a favela, sente-se vencedora, porque melhorou sua condição de vida e porque se viu com capacidade de tomar decisões, administrar seu próprio futuro e ter alguma influência na política. A eleição presidencial de 1994 foi vencida com facilidade pelo PSDB, porque Fernando Henrique Cardoso havia nesse ano conduzido com êxito o Plano Real, que beneficiou enormemente os pobres; bem mais do que os ricos. Já nas duas últimas eleições presidenciais (2006 e 2010), não foi por acaso que o voto, pela primeira vez na história do país, foi um voto de classe. Como todas as pesquisas eleitorais mostraram, nessas duas eleições, os ricos votavam no candidato do PSDB, e os pobres, no candidato do PT. Nos três casos, o voto mostrou que essa classe C não ascendeu apenas ao consumo, ascendeu também à cidadania; que é formada de cidadãos conscientes dos seus interesses. Já na eleição presidencial de 1998, não houve a mesma clareza por parte dos eleitores, porque o pouco êxito do governo tornara a política confusa – tão confusa quanto está hoje, quando nos aproximamos de novas eleições presidenciais em um quadro de forte indefinição.
Os rentistas e os empresários
Os insatisfeitos, hoje, no Brasil são as classes médias tradicionais e a classe alta, ou, em outros termos, são os capitalistas rentistas, entre os quais a maioria é de classe média, os financistas que administram a riqueza dos primeiros e – o que é preocupante – os empresários ou capitalistas produtivos. A insatisfação de rentistas e financistas era previsível. O governo do PT, nestes últimos 12 anos, principalmente durante o período Dilma, adotou uma posição claramente contrária a seus interesses. Tentou baixar os juros e depreciar o real – algo que não interessa a esse amplo setor das sociedades capitalistas identificado com o conservadorismo e o neoliberalismo. A insatisfação da classe média tradicional está associada a seu moralismo do tipo “jeunesse dorée”, que Guerreiro Ramos (1955) descreveu em um artigo clássico da sociologia política brasileira.
Mas, os empresários também estão insatisfeitos e com boas razões: o crescimento do país foi pequeno e o mercado interno, que cresceu satisfatoriamente, foi capturado pelas importações. Assim, sem boas expectativas de lucro e com os juros novamente elevados, as empresas não investiram, a não ser para se manterem a par do desenvolvimento tecnológico. O que resultou no círculo vicioso do baixo crescimento implicando expectativas de lucro baixa, que resulta em baixo investimento e crescimento que continua baixo. Em consequência, não obstante os esforços tanto do presidente Lula como da presidente Dilma para os atrair para uma coalizão de classes desenvolvimentista, que associasse empresários industriais, trabalhadores, a classe média mais intelectualizada e a burocracia pública, Lula e Dilma não foram bem-sucedidos. Foi com base em coalizões desse tipo que o Brasil, no passado, logrou formular estratégias nacionais de desenvolvimento e experimentou altas taxas de crescimento. Mas, a relação entre uma coalizão desenvolvimentista e o crescimento acelerado é dialética; é uma relação causal que ocorre nas duas direções. Para que haja desenvolvimento acelerado é necessário que haja uma coalizão de classes desenvolvimentista, mas, para que esta se forme, é necessário que o país cresça. Ora, não foi isto o que aconteceu. Os governos do PT não conseguiram reverter a armadilha macroeconômica do juro alto e do câmbio apreciado, e o país continuou a crescer a taxas muito baixas, insuficientes para que lograsse o alcance ou o catching up.
Um clima de ódio
Sinto hoje que existe no Brasil e, mais acentuadamente, em São Paulo, em sua elite econômica, mais do que um mal-estar. Para muitos dos seus membros, o mal-estar transformou-se em ódio voltado à presidente Dilma e ao PT. De repente, nos últimos 12 meses, eu me dei conta de forma muito clara da existência dessa paixão entre quase todas as pessoas dessa elite econômica com as quais tenho relações. Eu sei que esta é uma impressão pessoal; não tenho nem pretendo ter comprovação empírica do que estou afirmando. Mas, existe pelo menos uma evidência: as vaias e os xingamentos de que foi vítima a presidente nos jogos da Copa do Mundo. Quem tinha dinheiro para estar nos jogos da Copa não era pobre. Na primeira das vaias, em São Paulo, os xingamentos começaram no setor no qual os bilhetes de entrada eram os mais caros. Só um ódio muito grande pode explicar um comportamento como esse. Estão certos aqueles que criticaram os que vaiavam chamando-os de “pouco civilizados”, de “desrespeitosos”, mas só é possível compreender essa falta de civilidade e de respeito se a entendermos como associadas ao ódio.
Já apresentei algumas razões para o mal-estar, mas não tenho explicação racional para o ódio, talvez porque esse tipo de emoção seja irracional. Não há como relacioná-lo com as manifestações de junho de 2013. Elas foram a manifestação do quanto a sociedade brasileira está insatisfeita com seus políticos e com os serviços públicos, mas não foi um movimento violento e ressentido; foi, antes, um movimento alegre e otimista de cidadãos que pensam que o Brasil pode continuar a melhorar – sim, continuar, porque hoje ele é bem melhor do que no passado. Apenas uma minoria rejeitada pelos demais usou da violência. Não é possível explicá-lo com os maus resultados econômicos ou com o argumento do efeito túnel ou com o aumento das aspirações. Apenas no efeito túnel há um elemento ressentido, mas aqueles que estão ficando um pouco “para trás” são os mais ricos. Houve o mensalão, que, a partir de um crime real, se transformou em espetáculo de mídia e em julgamento emocional. E há o conservadorismo de nossas elites, que, depois de 12 anos de governo de centro-esquerda, nem sempre bem-sucedido, acentuou-se de forma notável.
Além de irracional, o ódio coletivo é perigoso. Poderia ameaçar nossa democracia, não fosse ela consolidada. Há também quem o explique com a forma de ser da presidente. Dilma Rousseff tem posições firmes e não faz tantos compromissos ou concessões mútuas como aquelas que se esperam dos políticos, mas é ponderada e sabe fazer acordos. Ela tem uma personalidade autoritária, mas é uma democrata e é corajosa. Ela é desenvolvimentista e social-democrática e não esconde suas posições políticas. Ela cometeu erros em sua presidência – alguns graves –, mas qual o presidente que não os comete? Mas, mesmo a soma dessas explicações não oferece uma resposta satisfatória para o problema do ódio.
Crescimento com distribuição
Mas, deixemos de lado o ódio, que talvez não combine com a natureza dos brasileiros. Não porque não sejamos violentos – o número de homicídios a cada ano não deixa dúvida a respeito –, mas porque não temos verdades definitivas, o que nos torna tolerantes. Neste momento há um mal-estar no seio das nossas elites, o que é um sinal de que a sociedade está doente. Uma sociedade será tanto mais sadia, quanto mais coesa ela for. Quando, não obstante os conflitos inevitáveis, há uma solidariedade nacional básica unindo todos. Sabemos, porém, que quanto mais desigual for uma sociedade, menos coesa será ela. Por isso deveríamos nos alegrar com a grande diminuição da desigualdade política e a modesta diminuição da igualdade econômica que a democracia nos proporcionou até agora. Mas, não estamos alegres, principalmente porque o Brasil é, hoje, um país vazio de projetos.
A partir dos anos 1930, formou-se um grande projeto de desenvolvimento nacional – um projeto nacionalista de industrialização ou de desenvolvimento econômico – que foi bem-sucedido, e ajudou a sociedade brasileira a se unir. No final dos anos 1970, quando o projeto de desenvolvimento econômico já se esgotara, surgiu um segundo grande projeto – o projeto social de construção da democracia e diminuição das desigualdades – que foi bem-sucedido em democratizar o país e registrou avanços no plano da desigualdade econômica. Hoje, não há projeto algum a ser compartilhado pelos brasileiros. A sociedade brasileira só está unida em relação à sua preferência pelo consumo imediato. No mais, está dividida, não porque os mais pobres estejam insatisfeitos e envolvidos na luta de classes, mas porque os mais ricos não veem diante de si perspectivas de desenvolvimento econômico e porque entendem que a diminuição da desigualdade já foi muito longe – o que é absurdo.
Depois que o problema da alta inflação inercial foi resolvido em 1994, nossas elites supuseram que a retomada do desenvolvimento estava assegurada, dividindo-se, apenas, entre os que preferiam o liberalismo econômico e os que preferiam o desenvolvimentismo como estratégia para alcançá-lo. O liberalismo econômico teve sua oportunidade e não tardou a fracassar. O desenvolvimentismo o sucedeu e também fracassou. O fracasso do liberalismo econômico não foi surpresa para mim, porque o liberalismo econômico só é bom para promover um ajuste macroeconômico; depois cede ao populismo cambial expresso em elevados déficits em conta-corrente, leva a crises financeiras, a baixo crescimento e ao aumento da desigualdade. O desenvolvimentismo, por sua vez, é o caminho do desenvolvimento econômico e, se for social, é o caminho da progressiva diminuição das desigualdades, mas para isto é preciso que seja competente, e não se deixe levar pelas duas tentações de sempre: o populismo cambial e o populismo fiscal.
Já está mais do que na hora de o Brasil entrar em um quarto ciclo de relação Estado-sociedade, que proceda uma síntese entre o Ciclo Nação e Desenvolvimento e o Ciclo Democracia e Justiça Social. Que este seja um ciclo que combine o crescimento perdido com a distribuição incompleta. O Brasil precisa de um novo contrato social, de uma estratégia nacional de desenvolvimento humano. Mas, mergulhada em uma armadilha de longo prazo de juros altos e câmbio apreciado, nossa economia cresce muito lentamente – a uma taxa que não abre novas perspectivas nem para as elites, que se amesquinham, nem para o povo, que logo se frustrará. O Brasil precisa hoje, dramaticamente, de uma nova onda de desenvolvimento, precisa de um projeto nacional de crescimento com distribuição, mas não chegará a ele enquanto sua população e seus políticos estiverem presos à preferência pelo consumo imediato e seus economistas não compreenderem que a neutralização da doença holandesa é uma condição necessária para que o Brasil pare de se desindustrializar e volte a crescer. Taxas de crescimento em torno de 2% ao ano são incompatíveis com o acordo nacional de desenvolvimento com uma distribuição que está à nossa frente e envolve alguma redução do consumo no curto prazo, mas que ninguém parece querer ver.
1 Só então, depois de haverem feito os países sua revolução industrial, esses países haviam adquirido poder suficiente para dominar a Ásia e a África. Já a colonização das Américas pôde ser feita desde o século XVI, porque seus povos indígenas eram relativamente menos organizados e, por isso, mais vulneráveis.
2 Estou adotando o conceito convencional de hiperinflação segundo o qual há hiperinflação quando a inflação do mês é superior a 50%.
Referências
Arretche, Marta (2014) “Déficit de representações ou falta de consensos mínimos: o que paralisa as políticas?”, Interesse Nacional 27 (6) julho 2014: 15-23.
Couto, Claudio Gonçalves (2014) “Desordem e progresso”, Valor Econômico, 18 de fevereiro de 2014.
Hirschman, Albert O. (1973) “The changing tolerance for income inequality in the course of economic development” (apêndice matemático por Michael Rothschild), The Quarterly Journal of Economics, 87 (4): 544-566.Prado Jr., Caio (1945 [1956]) História Econômica do Brasil, São Paulo: Editora Brasiliense. Primeira impressão, 1945.
Souza, Jessé (2010) Os Batalhadores Brasileiros, Belo Horizonte: Editora UFMG.
Ivan Marsiglia entrevista Renato Meirelles e Celso Athayde (2014) “A refavela”, O Estado de S. Paulo, 7 de agosto de 2014.
Renato Meirelles e Celso Athayde (2014) Um País Chamado Favela. São Paulo: Editora Gente.

É professor titular do Departamento de Análise e Planejamento Econômico da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, onde entrou por concurso em abril de 1959. É presidente do Centro de Economia Política, de cuja publicação trimestral, Revista de Economia Política, é editor desde 1981.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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