01 julho 2009

O Manejo da Floresta Tropical

Para o autor, o manejo da floresta tropical requer tecnologia adequada, planejamento de longo prazo e cooperação estreita, no nível local, entre agentes públicos e privados. Experiências bem-sucedidas existem. O difícil é generalizá-las. Para tanto, seriam necessárias mudanças institucionais. Sem elas, argumenta, é pouco realista supor possível a preservação da Amazônia e do que resta da mata atlântica. Com elas, os benefícios econômicos e sociais seriam enormes.

O manejo de uma floresta tropical – amazônica, atlântica, da África ou Ásia tropicais – é função do que dela se quer, da ideia que dela se tem. Antes do Código Florestal de 1965, era permitido retirar da floresta brasileira, sem maiores restrições, as matérias-primas demandadas pelos primeiros séculos de nosso desenvolvimento econômico, isto é, desde os tempos coloniais até as primeiras décadas da República. Em especial, a floresta atlântica e os pinheirais do planalto sulino eram vistos como simples mananciais madeireiros, portanto, de um ponto de vista estritamente mercantilista. De tal visão decorria um manejo exploratório. O madeireiro cortava ou não uma árvore se ela representasse, ou não, um retorno monetário positivo tout court.

A essa primeva ideia de floresta e manejo  veio contrapor-se, a partir de meados do século passado, a sua antítese. Nascida da preocupação com a degradação ambiental e o uso excessivo dos recursos naturais, a nova ideia objetiva, resumidamente, a preservação da biodiversidade. O manejo das florestas tropicais que dela resulta em sua acepção extrema, seria a preservação das mesmas sem qualquer intervenção antrópica. Esta a ideia-força pela qual lutam os ambientalistas radicais. Uma nova ideologia, assim como o fora o marxismo e outras mais. E no dizer de um pensador do século XIX, como todo fanatismo, apegando-se tão-somente a uma ideia abstrata, não permitindo diferenciações e detalhamentos que pudessem contrapor-se à sua indefinição . Esta a principal razão, a nosso ver, de não se realizarem em número suficiente pesquisas pragmáticas indispensáveis para o conhecimento e a efetiva preservação desse sistema complexo que é a floresta tropical. Pairamos alegremente, com nossas dezenas de milhares de intelectuais, potenciais pesquisadores e ativistas de ONGs, enlevados em superficial imaginário, acima daqueles infinitos detalhes que os índios não-aculturados e os mateiros tão bem conheciam, acima daquela realidade que está sendo devastada aos olhos nossos e do mundo.

E, assim, nossa alma brasileira sofre atualmente de uma esquizofrenia aguda, de um extenuante conflito interno que opõe “inescrupulosos madeireiros” e “alienados ambientalistas”. Conflito que atravessa o Judiciário, divide ministérios do Executivo, baixa medidas provisórias e normas sobre detalhes dos quais somente semideuses de Brasília são capazes, cria um fantástico cipoal de leis e regulamentos inócuos, decreta unidades de conservação no papel, estremece o pacto federativo, malbarata recursos com monitoramentos pontuais e ineficazes. A nossa colorida multiculturalidade não conseguiu ainda conciliar esse e muitos outros conflitos históricos que nos assolam e não deixam desabrochar este país com todos seus imensos potenciais. Eis, pois, o desafio: é possível, e como, conciliar a preservação da biodiversidade da floresta tropical com o uso de seus recursos renováveis?

Menos fantasia, mais ciência

O primeiro requisito para resolver o dilema consiste em definir o que exatamente se quer. Não de uma forma vaga, mas a partir de uma abstração que possa levar a uma ação inequívoca. Um conceito capaz de ser detalhado a ponto de que se possa decidir criteriosamente, diante de uma árvore na floresta, se é o caso de cortá-la ou mantê-la em pé. Um mogno na floresta amazônica, uma canela-preta na mata atlântica. Entre as duas alternativas extremas, da intocabilidade do ecossistema à sua exploração predatória, existem muitas formas de manejo. Como a outrora proposta por pesquisadores europeus em domesticar a floresta tropical, reduzindo-a a umas poucas espécies arbóreas de valor comercial. Ou o arbitrário critério de autorizar o corte de árvores acima de um determinado diâmetro de tronco, nascido de um vago sonho de sustentabilidade e sem rigoroso embasamento experimental. Se quisermos conciliar a preservação do meio ambiente com o desejo de desenvolvimento econômico, estes dois destacados valores do atual momento histórico, de modo a se poder chegar a uma ação concreta quanto ao manejo da floresta tropical, precisamos definir precisamente cada um destes conceitos. Esta definição, por sua vez, não se consegue tratando isoladamente os conceitos, mas emerge lentamente de um processo de interação, confrontando-se o nosso inicialmente difuso querer com o descobrir da realidade da floresta. Pois é o nosso querer que nos faz procurar na estrutura e dinâmica da floresta as relações empíricas que poderão levar a uma ação que satisfaça os dois polos de interesse, do que dentro de nós brota, com as possibilidades que o mundo exterior nos oferece. São relações desprezadas pelo madeireiro tradicional e ignoradas pelo olhar de um pesquisador do ecossistema alheio a qualquer intervenção no bioma. De um tal processo, no lidar com parcelas de mata primária atlântica, resultou, ao longo de décadas, uma tecnologia de manejo que denominamos de manejo natural e que descreveremos resumidamente a seguir.

O equilíbrio dinâmico das florestas

Partir-se-á do desafio no processo decisório de cortar ou não uma determinada árvore numa parcela de floresta tropical. Há que dividir a floresta em parcelas, tanto para se ter uma ideia de conjunto das árvores que a compõem, quanto pela sua complexidade. Parcelas com área de um hectare contêm por volta de 600 árvores com DAP ≥ 10 cm (diâmetro à altura do peito) e com muitas dezenas de espécies arbóreas (cerca de setenta espécies em amostras da mata atlântica, até mais de uma centena na China tropical e na Amazônia). Com DAPs que variam dos 10 cm até mais de metro. Está-se, pois, face a um sistema bastante complexo levando em conta somente duas dimensões do mesmo, quais sejam as diferentes espécies e a sua distribuição ao longo de classes diamétricas. A estrutura de uma parcela pode ser descrita por uma tabela com estas duas dimensões, no eixo vertical as espécies e no horizontal, as classes diamétricas com intervalos em constantes logarítmicas por razões estatísticas . Assim procedendo, tomando-se um total de sete classes, obtém-se uma clara visão das estratégias de sobrevivência e regeneração das espécies. Existe um grupo ou coorte de espécies que tem representantes em todas as classes, outro, cujos indivíduos se concentram nas classes superiores, outro mais, que não consegue ultrapassar limites diamétricos intermediários, e o numeroso grupo com somente até dois representantes ao longo de todas as classes. A essa complexa estrutura se acresce o fato de a floresta tropical ser um mosaico formado por parcelas com estruturas diferentes umas das outras. Numa parcela, por exemplo, uma certa espécie pode ter indivíduos ao longo de todas as classes diamétricas, e na parcela vizinha, somente um ou mesmo nenhum representante. Tal complexidade intra e interparcelas é o resultado de evolução e acomodação das dezenas de espécies arbóreas às diferenciadas condições edáficas e de variações climáticas ao longo dos cerca de 10 mil anos após o fim da última era glacial. Devendo-se lembrar, ainda, que o termo “espécie” é impreciso por não levar em conta a sua heterogeneidade genética, razão pela qual este termo é melhor substituído por população.

A estrutura de uma parcela primária é o resultado de um processo de regeneração que se inicia com a polinização e disseminação de sementes depositadas no chão da floresta, sua germinação ao encontrarem propícias condições microclimáticas, e avança com o crescimento das plântulas até adentrarem a primeira classe diamétrica de 10 cm de DAP e seu posterior deslocamento para as classes superiores. Dependendo do incremento anual dos troncos, a passagem de 10 cm de diâmetro a 50 cm leva cerca de um século. Por sua vez, o volume de madeira comportado por uma parcela tem um limite superior e assim, para que uma árvore possa crescer, outra precisa ser eliminada. Existem taxas de mortalidade diferenciadas para as classes e para as populações, sendo mais elevadas nas classes mais baixas. A floresta se caracteriza, pois, como um intenso processo de competição por luz e nutrientes, resultando numa seleção natural das árvores a serem eliminadas.

É possível diagnosticar as árvores com mais de 20 cm de DAP que gradativamente estão a fenecer, a partir de dois parâmetros. Um, a redução acentuada do incremento médio anual do DAP relativo à respectiva população. Outro, correlacionado ao primeiro, a diminuição da massa foliar da copa. A qualidade da copa é uma variável difusa que pode assumir três valores, quais sejam, excepcional, normal e fraca. Uma copa fraca sinaliza que a árvore sucumbiu à concorrência e está condenada irreversivelmente à morte em poucos anos. Para exemplificar, em uma parcela de mata atlântica em Santa Catarina, o incremento médio anual foi de 0,31 cm, enquanto que a variação para uma espécie de madeira de lei, a Ocotea catharinensis, foi de 0,49 cm para copas exuberantes e 0,24 cm para as normais . As copas fracas ostentam mais uma característica importante para o manejo: a baixa probabilidade de produzirem sementes férteis, significando que são prescindíveis para o processo de regeneração natural. Em média, 20% das árvores acima de 20 cm de DAP têm copas fracas. Retirando cuidadosamente seus troncos, o que é perfeitamente factível, como comprovado na prática, obtém-se um determinado volume de toras. A recomposição desse volume em um período de mais ou menos vinte anos fará a parcela retornar a uma estrutura de climax semelhante à inicial. Ao longo do ciclo de manejo, a floresta abrigará a flora e fauna originais e garantirá a diversidade arbórea e sua dinâmica, inclusive seu potencial de adaptação às variações climáticas que estão a acontecer. Se se acrescer a esse critério de corte a restrição de somente abater uma árvore caso, em sua queda e arraste, não prejudique nenhuma outra, já se têm duas regras seguras para o manejo preservacionista da floresta tropical, independentemente de ser em encosta, topo de morro ou próximo a olho ou corrente d’água.

Segue-se que o Código Florestal de 1955 é demasiada e desnecessariamente rígido ao estabelecer arbitrariamente critérios para as áreas de preservação permanente (APPs) para parcelas sob manejo natural. Decorre, também, que os manejos ditos ecológicos ou sustentáveis baseados em critérios de diâmetro mínimo para o corte representam uma séria ameaça à regeneração natural da floresta e à manutenção da estrutura climácica da mata primária, por três razões: primeiro, por eliminarem indivíduos de copas normais ou exuberantes e com potencial regenerativo das populações; segundo, por desestruturarem a composição da parcela a favor de populações que não alcançam o diâmetro mínimo de corte; e terceiro, por aumentarem a participação de espécimes decrépitos e de baixo crescimento volumétrico.

A variável difusa que mede a qualidade da copa, ao lado da espécie e do DAP, é, portanto, uma terceira dimensão que deve ser levada em conta. A importância da restrição de corte a indivíduos de copa fraca pode ser exemplificada imaginando-se a seguinte situação: uma população representada por um único indivíduo adulto numa determinada parcela e a mais próxima árvore em idade de reprodução da mesma espécie localizada em outra parcela a um quilômetro de distância. Tanto os vetores de polinização (abelhas, beija-flores, vento), como de disseminação das sementes (pássaros, morcegos, roedores e o próprio vento), precisam vencer grande distância para se efetivarem. A isso se acresce o fato de as árvores não se reproduzirem todo ano e nem sempre com a mesma abundância relativa à população. E mais. Cada semente para germinar e cada plântula para se desenvolver requerem condições especiais de solo e de microclima, o que significa que há necessidade de uma profusão de sementes espalhadas pelo chão da floresta para que aquelas duas árvores possam gerar, no decurso de décadas, um sucessor para garantir a sobrevivência da espécie e da população. Seguindo-se o princípio de precaução máxima, a eliminação de uma dessas árvores, caso tenha copa normal ou exuberante, representa séria ameaça de desestruturação das parcelas de toda uma região. Ou seja, risco de redução da diversidade arbórea e de nichos ecológicos requeridos pela flora e fauna originais. Inclusive, risco de redução da dinâmica genética intra-espécies e consequente diminuição do potencial de adaptação a maiores variações atmosféricas. Além da proteção às árvores de copa normal ou exuberante, impõe-se a proteção da fauna contra a caça predatória como vetores de polinização e disseminação de sementes de muitas espécies arbóreas e plantas em geral. Essas observações valem não somente para populações esparsas, mas também para os demais coortes, inclusive do que ostenta representantes em todas as classes diamétricas e abundante banco de plântulas.

A microeconomia do manejo

Para o monitoramento do manejo natural é indispensável o inventário de todas as árvores de cada parcela, numerando-as e identificando a espécie, medindo o DAP, estimando a altura útil do tronco e a qualidade da copa. Há, pois, necessidade de uma equipe de inventário, com custos adicionais à equipe de corte e arraste da exploração tradicional. Contudo, com sucessivos inventários da parcela, pode-se mensurar adequadamente para os investidores em créditos de carbono o sequestro de CO2 ao longo do ciclo de manejo. De imediato, o sequestro pode ser estimado a partir da quantidade de carbono (C) contida nos troncos das árvores retiradas na intervenção inicial. Uma tora de madeira contém cerca de 24% de carbono, já descontadas as quebras na serraria e desconsideradas as madeiras moles, de rápida decomposição, que perfazem cerca de um terço do volume da floresta. Uma parcela de mata atlântica, contando com um volume de 189 metros cúbicos de madeira para árvores acima de 20 cm de DAP, proveria 45 toneladas de carbono ou 166 toneladas de CO2 sequestradas por hectare em vinte anos de ciclo de manejo ou, então, 8,3 toneladas anuais de CO2 sequestradas por hectare. Estima-se que, a um valor de US$ 20,00 por tonelada de CO2, consegue-se cobrir os custos adicionais do manejo natural em relação ao tradicional .

Há que lembrar que a validade das relações fatuais que levam ao estabelecimento dos critérios de seleção para corte das árvores no manejo natural somente pode ser testada por experimentos com embasamento estatístico, não se prestando a discussões idiossincráticas longe da realidade empírica. Por sua vez, a viabilidade econômica de um manejo preservacionista depende dos preços relativos de cada região, seja das toras das diferentes espécies arbóreas, seja dos insumos fixos e correntes, da cotação dos créditos de carbono e do aperfeiçoamento da tecnologia empregada. Como os preços, em sua maioria, são mais administrados que gerados pelo imaginário equilíbrio de mercado dos economistas, pode a viabilidade depender de incentivos e estímulos fiscais dentro duma política macroeconômica valorizadora da preservação da floresta tropical.

Por um novo arranjo institucional

Mas a disponibilidade de uma tecnologia e a viabilidade econômica do manejo não são garantia para o sucesso da práxis preservacionista, dadas a legislação e as instituições de que dispomos. Como garantir que uma árvore valiosa e de copa exuberante ou normal, lá num rincão da Amazônia, não seja abatida? Como conciliar, feito alguns países desenvolvidos, na consciência das pessoas e inserir em suas tradições o lado econômico-social e a conservação da biodiversidade no manejo das florestas? Como evitar o oportunismo que tanto nos permeia?

Dispomos de órgãos ambientais de fiscalização em todos os níveis da Federação, de uma vasta rede de ONGs, de instituições de pesquisa com os devidos recursos técnicos e humanos, de proprietários e empreendedores florestais proativos. Como terminar com este inócuo e esquizofrênico degladiar-se dos órgãos puramente fiscalizadores, secundados por ONGs ambientalistas, com proprietários florestais e madeireiras? Como inserir biólogos, engenheiros florestais etc. em um processo de pesquisa gerador de conhecimentos rigorosos e tecnologias para alavancagem do desenvolvimento econômico sustentável a partir de nosso precioso recurso renovável, colaborando, ao mesmo tempo, com a redução do efeito-estufa a nível global? Como ajudar a formar novas gerações de brasileiros que já tragam em seu bojo, desde o berço, uma incessante busca de harmonia entre o agir humano e a natureza? E, quiçá, abrir um campo de atuação digno para as comunidades indígenas remanescentes, reintegrando-as à floresta e as reaproximando dos mitos de seus antepassados, evitando o doloroso processo de aculturação e de desperdício de secular patrimônio de conhecimento.

Duas condições precisam ser preenchidas por uma instituição capaz de abrigar e difundir o manejo natural nas florestas tropicais. Uma, a confiança dos investidores em créditos de carbono no monitoramento ao longo dos ciclos de manejo. Outra, a confiança dos proprietários na continuidade do manejo natural dentro do sistema jurídico-constitucional brasileiro no longo horizonte temporal da vida de uma árvore.

O tradicional paradigma da dicotomia entre órgãos públicos de fiscalização ambiental, de um lado, e proprietários florestais ou grileiros procurando com sucesso esquivar-se das restrições de ordem ecológica, de outro lado, mostrou-se totalmente inadequado para a preservação de nossas florestas tropicais. Mesmo as unidades de conservação, como os parques nacionais, e reservas indígenas não conseguem resistir a notórias e lastimáveis agressões à flora e fauna. O máximo que se consegue é obter informações via satélite dos danos ambientais mais drásticos acontecidos no último trimestre e estimar os gases-estufa emitidos pelas queimadas. Já a exploração mais subreptícia do corte seletivo e desequilibrador de árvores de maior valor comercial só é acusada por alguma ação pontual da fiscalização, e devidamente alardeada pela mídia sensacionalista e alienada da realidade florestal.

A solução requer um foro no qual todas as partes atualmente litigantes possam negociar diretamente um plano de manejo florestal e acompanhar de perto sua execução, sugerindo as pesquisas para seu aperfeiçoamento. Requer uma instituição com poder decisório, composta por representantes dos órgãos ambientais federais, estaduais e municipais, dos proprietários, de ONGs ambientalistas, de universidades e órgãos de pesquisa, se for o caso, da sociedade civil organizada, todos engajados em encontrar as possibilidades de uso sustentável e seu monitoramento, à luz da legislação pertinente, do ecossistema e da realidade social da região específica, da infraestrutura disponível, dos preços relativos de insumos e produtos, e todos os demais aspectos que são diferentes de um estado para outro e mesmo de um município para outro.

Os representantes dos órgãos ambientais (como, por exemplo, o IBAMA) não poderão mais refugiar-se na unilateral posição de fiscais acima do bem e do mal, assim como os proprietários florestais e executores do manejo terão que se limitar a ações aceitáveis pelo interesse ambiental. Com a práxis do manejo natural, o monitoramento é extremamente facilitado. A partir de planilhas contendo o levantamento exaustivo das árvores de cada parcela, inclusive com os dados sobre a qualidade da copa, por simples amostragem, pode-se verificar se o inventário e o abate planejado foram executados de acordo com as regras estabelecidas, hectare por hectare. Assim, por exemplo, em uma propriedade de 10 000 hectares, descontando-se 20% da área para estradas e áreas inadequadas para exploração, num ciclo de vinte anos, poderiam ser trabalhados 33 hectares por mês, contínua e sustentavelmente. Uma amostragem mensal daria uma visão estatisticamente representativa da qualidade do manejo quanto 1) à minimização do impacto com a implantação das estradas, 2) às árvores que poderiam ser e foram de fato cortadas e 3) ao cuidado em sua derrubada e arraste. Essa amostragem permitiria, ainda, conhecer o volume de carbono retirado e estimar, acuradamente, o sequestrado ao longo do ciclo de manejo. Como subproduto, se formaria um banco de dados inestimável para o proprietário, os órgãos de fiscalização e para a pesquisa. Um perfeito monitoramento seria obtido com um inventário quinquenal, coberto pela entrada em caixa de créditos de carbono.

Tal arranjo institucional deverá estabelecer-se, necessariamente, a nível municipal, para poder desempenhar a contento o papel que lhe cabe. Terá de ser um arranjo duradouro, já que um único ciclo de corte se estende por cerca de vinte anos, requerendo estabilidade jurídica e proteção contra as vicissitudes da alternância nos poderes Executivos municipais, estaduais e federais.

A legislação ambiental brasileira, muito sabiamente, prevê tal arranjo institucional. A Lei no 9 985, de 28.7.2000, referente ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), dispõe, dentro do leque de unidades de conservação de uso sustentável, sobre as Áreas de Proteção Ambiental municipais, nas quais os proprietários continuam donos de suas terras, mas sujeitos a regras de manejo estabelecidas por um conselho tripartite (órgãos públicos, proprietários, sociedade civil organizada). Para ser eficaz, tal conselho deverá ser deliberativo, pois conselhos puramente consultivos são destituídos de poder e, por esta razão, inoperantes, como é o caso das unidades de conservação de proteção integral.

Trata-se de um modelo político inovador: nele, os órgãos públicos deixam de ter função exclusivamente fiscalizadora e punitiva e passam a cooperar com o setor privado para o sucesso do manejo; já os pequenos e grandes proprietários são induzidos a superar uma visão puramente mercantilista e assimilar considerações de ordem ecológica, deixando de ser desmatadores para se transformar em uma legião auxiliar na proteção da biodiversidade. Esse arranjo institucional não implica gastos adicionais para os cofres públicos, pois os quadros de que dispõem os órgãos públicos ambientais, mesmo os municipais, são mais que suficientes para que participem mensalmente das reuniões do conselho, como comprovado em áreas de proteção ambiental municipais em Santa Catarina.

Conjugando-se a práxis do manejo natural com a instituição de Áreas de Proteção Ambiental municipais geridas por conselhos deliberativos tripartites, tem-se um modelo político-administrativo que pode perfeitamente ser implantado nas florestas amazônica e atlântica, para não só barrar a degradação desses biomas, mas também para gerar significativas oportunidades de emprego para pesquisadores, técnicos e o vasto contingente dos que vivem em íntimo contato com a floresta. Com confiável monitoramento da produção de madeira e de sequestro de carbono, obter-se-iam os recursos necessários para a preservação da biodiversidade e o atendimento aos compromissos internacionais sobre a redução das emissões de CO2.

Há, sim, que se dispor de uma agência nacional que intermedeie as relações os investidores e os receptores dos créditos de carbono, relações cuja confiabilidade depende do detalhado monitoramento das parcelas e da consequente aferição do sequestro de carbono ao longo dos ciclos de manejo.

Mas a implementação desse novo paradigma de manejo somente é possível se, e somente se, o proprietário florestal estiver seguro de que a árvore que ele deixou de extrair hoje não lhe será surrupiada num momento futuro, em um, dez ou cinquenta anos, seja por questões fundiárias, seja, principalmente, em decorrência de eventuais decisões arbitrárias de prefeitos, governadores e presidentes da República.

A instabilidade institucional está à raiz da inexistência do manejo preservacionista no Brasil, pois esse requer, como já assinalado, um horizonte temporal de décadas. Um exemplo do mal que a falta de estabilidade jurídica pode causar são as sete Áreas de Preservação Permanente criadas em municípios do Vale do Itajaí em Santa Catarina, com base na cooperação entre proprietários, comunidade e câmaras de vereadores. Com planos de manejo estabelecidos e conselhos deliberativos em pleno funcionamento, elas foram surpreendidas por um decreto do Presidente da República, criando um Parque Nacional na área que ocupam. O ato provocou a desapropriação de quinhentos proprietários rurais que, há gerações, conservam a mata atlântica, em estreito convívio com a mesma. O resultado prático foi a aceleração do desmatamento na região, nada obstante os voos de helicópteros. Incumbidos da fiscalização, eles nada conseguiram a não ser assustar a pacata população rural do Vale do Itajaí.

Esse ato de flagrante desprezo pela Constituição Federal gerou uma ação de inconstitucionalidade impetrada pelo Governo do Estado de Santa Catarina no Supremo Tribunal Federal, ainda pendente de julgamento.

Diante desse quadro, uma medida salutar consistiria em o Congresso Nacional reservar a si a prerrogativa de criar e transformar tais unidades de conservação, assim propiciando as necessárias condições de estabilidade democrática à atividade florestal. 


KLAUS G. HERING cursou Economia e Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), fez mestrado em Economia na Vanderbilt University, é doutor em Engenharia da Produção e Sistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina e foi professor de Teoria Econômica na Faculdade de Economia e Administração da USP

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