O que disseram as urnas de 2024 sobre Bolsonaro, Kassab e o PT
Cometeu-se o erro analítico de identificar toda a direita nacional com a figura de Jair Bolsonaro — que, de fato, a protagonizou no período recente, mas não a dominou integralmente, em que pese a conivência de suas frações. Mesmo agora, quando os números das eleições municipais de 2024 demonstram o ganho eleitoral da direita, é enganoso atribuir as vitórias ao espectro bolsonarista. O ex-presidente não ganhou. Perdeu eleitoral e politicamente.
Não apenas por uma questão numérica (as cidades conquistadas), mas, sobretudo, pela fragmentação de um campo político que alegava controlar. Esse foi o mais relevante sinal das urnas de 2024, e o mais rico dos desdobramentos para o futuro. Uma importante parcela da direita parece ganhar autonomia e impulso político.
A configuração do posicionamento estratégico do PSD de Gilberto Kassab parece ser a maior expressão disso. Kassab sai das urnas como um líder político. Não apenas sagaz, coloca-se como o mais bem aparelhado para um projeto político nacional nos próximos anos. Mesmo não sendo ele o rosto público de futuras disputas, surge como eminência parda. Uma espécie de sombra por detrás do trono.
Por fim, a esquerda: o pífio desempenho eleitoral aciona todos os alertas para 2026. Embora o presidente Lula ocupe a centralidade de qualquer prospectiva para a próxima eleição, o petismo se mostrou frágil. Melhorou seus números, comparados à eleição anterior, mas ficou muito aquém do que se esperaria de um campo que detém o poder central. Isto lhe impõe a renovação, que pode se dar às custas de certo dilaceramento interno.
Pequeno mapa do tempo da direita brasileira
No Brasil pós-regime militar (1964-1985) não interessava ser identificado como “de direita”. O período deixou má fama para os setores que apoiaram o golpe de 1964, pois o fracasso econômico e as revelações de tortura e corrupção afugentaram o oportunismo e silenciaram os resistentes.
Mesmo os partidos que sucederam a antiga Arena (Aliança Renovadora Nacional) — como o PDS (Partido Democrático Social), de inspiração malufista — evitavam o rótulo para não serem aprisionados por uma parcela do eleitorado, então percebida como minoritária. Termos como “social” e “democrático” dissimulavam a natureza autoritária profunda. O país viveu a fase da direita retraída.
Embora esses termos soem ultrapassados, a “direita” sempre existiu, como permanecerá existindo. Dentro dos marcos ideológicos que ainda permitem esse tipo de classificação, setores conservadores vinculados à questão dos costumes, a uma visão de rígida ordem social e à crítica ambígua sobre interferência estatal na economia não foram extintos, mas nem sempre se unificaram no mesmo campo.
Todavia, com a ascensão do lulismo, esse conjunto político agarrou-se a candidaturas que melhor expressassem oposição ao petismo. Inicialmente, foi o PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) o escolhido. Mais moderados que os petistas, os tucanos daquele tempo não eram exatamente “de direita”, ao menos a princípio, mas colocaram-se à disposição. O engano de que a política no Brasil oscilava entre uma social-democracia mais (PSDB) ou menos (PT) moderada se estabeleceu.
Isso começou a mudar com o robustecimento do movimento neopentecostal e sua agenda de costumes reativa aos avanços da diversidade e dos direitos civis. Em poucos anos, neopentecostais se autonomizaram e se fortaleceram com a emergência de lideranças pastorais radicalmente conservadoras.
A pauta conservadora de costumes e a crítica de setores médios urbanos à eficiência dos serviços públicos, à insegurança percebida de setores agrários e ao antigo reacionarismo político encontraram-se nas ruas em 2013. Aliaram-se, também, aos órfãos da sociedade industrial, abatidos com a eliminação de postos de trabalho e profissões que resulta da revolução tecnológica, ainda em curso — fenômeno que, é claro, não se deu apenas no Brasil. Como se vê, antes de sua imposição como força política relevante, senão hegemônica, tratava-se de um conglomerado de grupos distintos, com interesses diversos, ainda que conservadores, apenas parcialmente identificados entre si.
No impeachment de Dilma Rousseff e no curto e turbulento governo de Michel Temer, esses setores não apenas se descolaram do chamado “centro” (fisiológico ou não), então guiado e simbolizado pelo peemedebismo, como o atraiu (ao centro) pela explosão de sua força eleitoral.
A direita implicava um vasto campo político cujo vazio de lideranças expressivas encontrou em Jair Bolsonaro sua expressão mais radical e um instrumento eleitoral. Com o governo em mãos, resultado da vitória de 2018, tradicionais oligarquias regionais, patrimonialistas e fisiológicas, além de um liberalismo libertário pouco institucional, foram pescadas de arrasto pelo populismo do novo presidente.
Isso deu a Jair Bolsonaro o protagonismo do partido Novo — ou o que restou dele — no “centrão” dos rincões do país. Bolsonaro tornou-se referência e um feixe de interesses conservadores e ultraliberais. O bolsonarismo tornou-se, então, metonímia de toda a direita.
As urnas de 2024 e a desmitificação de Jair Bolsonaro
A eleição de Donald Trump, em novembro de 2024, nos Estados Unidos fortaleceu a direita extremista mundial e só o tempo dirá como isso repercutirá no Brasil. Também o indiciamento de Jair Bolsonaro pela Polícia Federal, por tentativa de golpe de Estado, ainda carece de decantação. Tudo o que desmancha no ar pode se solidificar.
Mas o dado concreto da eleição de 2024 indica que o ex-presidente, sem os instrumentos de poder do Estado, nada tinha em mãos além do autoengano da vaidade e do engano coletivo de considerarem-no um “mito”. O entendimento das urnas em 2024 exige a compreensão do processo narrado acima: a direita se robusteceu nos últimos anos, mas nunca foi um bloco monolítico. Interesses distintos alinharam-se em razão das circunstâncias.
De amplo modo, hoje a direita pode ser classificada em pelo menos quatro grupos: 1. extremistas autoritários; 2. ancaps (anarcocapitalistas) furiosos; 3. patrimonialistas tradicionais; e 4. liberais de carona. Os dois primeiros incomodam-se com a democracia, seja pelo respeito aos direitos que ela exige (1), seja pelos deveres que ela impõe (2).
O terceiro grupo (patrimonialista) adapta-se a qualquer regime de acordo com seus interesses, desde que satisfeita sua voracidade fisiológica. Trata-se de um centrão imemorial.
Já o quarto segmento (liberal) encara a política como um processo competitivo cujas regras estão dadas e claras, o que reduz a insegurança do caminho. Defende a iniciativa privada e o governo necessário, mas se posiciona silente conforme um campo de possibilidades se configura à frente.
Em razão do antipetismo e do protagonismo de Jair Bolsonaro, que ecoava da eleição de 2018, esses grupos não se apresentaram com nitidez no início de 2024. A expectativa em torno da força eleitoral do ex-presidente e de sua capacidade de transferir votos e anular o PT amalgamava todos esses setores.
Todavia, sem a máquina estatal federal, manter esse protagonismo foi impossível. Muito mais quando não se possui o especial dom da liderança política capaz de formular projetos, alinhar expectativas e conduzir forças sociais.
Bolsonaro jamais expressou as virtudes da liderança — disposição, coragem e mediedade — definidas há quase 25 séculos por Aristóteles. Seus erros, antes e durante a eleição de 2024, levaram à fragmentação do campo político (contraditório) que o abrigava. Esse despedaçamento configura-se como uma espécie de criptonita que o enfraquece e o confina ao extremismo golpista.
Mal conhecedor de suas fraquezas, o ex-presidente quis impor sua vontade aos setores de direita de todo o país. Iludido pelo capital político que lhe foi oferecido pelo antipetismo, não compôs e ainda dividiu forças. Curitiba, Goiânia e Belo Horizonte são casos emblemáticos: para não fortalecer adversários do mesmo campo, os enfrentou e se deu mal. Onde o antipetismo não fazia sentido, Bolsonaro não fez diferença.
No seu berço político, o Rio de Janeiro, menosprezou a máquina, a capacidade e a popularidade do prefeito Eduardo Paes. Aventurou-se com um candidato pouco conhecido, Alexandre Ramagem, e, a despeito de relativo bom desempenho, ficou patente estar longe da maioria que o sistema eleitoral e a democracia requerem.
Mas foi em São Paulo a maior “desmitificação” que conheceu e onde a fragmentação da direita ficou mais nítida. Os ancaps identificaram-se e se alinharam com Pablo Marçal, fenômeno da economia da atenção e do “empreendedorismo místico”. Isso retirou das mãos da família Bolsonaro o domínio das redes sociais mais estridentes da internet brasileira.
Por oportunismo ou temor de Marçal, Bolsonaro renegou Ricardo Nunes (MDB), rompendo acordos anteriores. O que levou seu afilhado político Tarcísio de Freitas a expressar inédita discordância e, reafirmando seu apoio a Nunes — finalmente vitorioso —, iniciar o que pode vir a ser sua afirmação política. O governador expandiu asas ao capitalizar o erro do ex-presidente.
A direita patrimonialista, naturalmente, se perfilou ao governismo local e agora pode gozar da providencial distância de Bolsonaro. Com o poder da máquina pública, vitaminada por emendas ao orçamento federal, elegeu Nunes e manteve o valoroso bunker paulistano sem qualquer dívida com o ex-presidente.
Por sua vez, uma direita de forte inclinação ao centro, pragmática e liberal, feita à imagem e semelhança do antigo PSD (Partido Social Democrático) — de quem, aliás, herdou a sigla —, parece ter se consolidado no palco da política nacional. Um player que nos próximos anos deve despertar atenções como uma variável de obrigatória observação.
O centro kassabista e o pragmatismo como norte
Como assinalou seu principal operador, essa direita pragmática “não é de direita, de esquerda ou de centro”. Assim, à espreita, pode ser tudo ao mesmo tempo. Embora tenha se enamorado do bolsonarismo em vários estados, trata-se de um setor que soube compreender o “momento Bolsonaro” sem deixar que sua alma fosse cooptada pelo extremismo.
É afeita à costura das alianças políticas impostas por realidades locais: tece relações à direita e à esquerda. Para além do fisiologismo, parece disposta a reconstruir o velho centro político, desarticulado desde os desgastes do governo de Michel Temer (2016-2018), um novo PMDB.
Sua figura central é Gilberto Kassab, presidente do PSD, secretário de Tarcísio de Freitas (Republicanos), ex-ministro de Dilma Roussef (PT), sucessor de José Serra (PSDB) na prefeitura paulistana e interlocutor contumaz do presidente Lula e de lideranças de todos os partidos. Uma prática política que utiliza o diálogo como método, o pragmatismo como norte, e a intensa articulação como instrumento.
Esse agrupamento pode ser denominado de “Centro Kassabista” ou “pessedismo ressuscitado”.
Kassab é herdeiro de um tempo de reconhecidas lideranças pragmáticas. É atento e meticuloso, contido nos gestos. Dosa exposição pública com movimentação de bastidores. Enxerga o futuro pelas lentes do cálculo de médio e longo prazos. Acessível, expressa o estilo das antigas raposas do velho PSD: Benedito Valadares, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves e, em menor medida, Ulysses Guimarães.
A habilidade de firmar alianças levou o atual PSD à vitória eleitoral em capitais como Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), São Luís (MA) e São Paulo (SP), no apoio de primeira hora a Ricardo Nunes. Possui influência e bons operadores em estados importantes, como a Bahia.
Embora percebida há tempos, somente os resultados de 2024 despertaram a curiosidade da mídia. Foi a legenda que elegeu o maior número de prefeitos, em 887 municípios, e a terceira em número de vereadores (6.624), perdendo apenas para o MDB (8.113) e para a máquina do PP de Arthur Lira (6.953).
Na política nacional, ostenta quadros como Rodrigo Pacheco, presidente do Senado cotado à Suprema Corte, e, no mesmo senado, articuladores como Otto Alencar e Ângelo Coronel, ambos da Bahia. Na Câmara dos Deputados, possui expressão para apresentar candidatura à presidência da Casa, do deputado Antônio Brito (BA).
No Executivo, instalou-se em três pastas ministeriais: a importante Agricultura (Carlos Fávaro), a estratégica Minas e Energia (Alexandre Silveira), e a Pesca (André de Paula).
Sua posição estratégica impressiona. Em 2026, nas disputas estaduais, a legenda ampliará seu time de governadores. Há potencial de sucesso em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e, com protagonismo na aliança, em São Paulo. O que abre os horizontes de 2030, com uma candidatura presidencial realmente competitiva: Tarcísio de Freitas, do Republicanos — até hoje, o governador não se filiou ao PL, de Jair Bolsonaro.
O PT e o desafio da reinvenção política
As urnas também sinalizaram que o antipetismo se mantém como um dos polos da política nacional (o outro é o antibolsonarismo). Mesmo ocupando o poder central, o partido do presidente Lula teve desempenho menos que modesto: de 182 municípios em 2020, seu pior momento, foi a apenas 252, em 2024. As maiores cidades conquistadas foram Fortaleza (CE), a única capital; Mauá (SP); Pelotas (RS); e Camaçari (BA). Pouco para o posicionamento e a importância do partido.
Embora não encabeçasse a chapa, foi na capital paulista que o PT colheu a derrota mais sentida. Não obstante chegar ao segundo turno, a aliança com Guilherme Boulos (PSOL) foi insuficiente para conquistar o principal símbolo das eleições municipais, a cidade de São Paulo, que compensaria o baixo desempenho numérico.
Evidências dessa eleição despertam um alerta: o relevante apoio do presidente Lula parece ter limites. O elevado piso de primeiro turno (30%) é teto baixo para o segundo. A despeito do apoio de Lula e Marta Suplicy e do maior orçamento eleitoral, Boulos obteve 40,65% dos votos no segundo turno — em 2020 foram 40,62%.
Ricardo Nunes o derrotou em 54 das 57 zonas eleitorais. Claro, houve o efeito “incumbente”, a máquina conta muito. Mas, mesmo em regiões em que históricas políticas públicas das administrações petistas foram marcantes (principalmente a de Marta Suplicy, de 2001 a 2005), o desempenho da esquerda surpreendeu ao ficar bem aquém do imaginado.
Se a rejeição a Guilherme Boulos foi um fator determinante — seu histórico de liderança no Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto o estigmatizando —, é verdade que a ela se somou um notório antipetismo contra o qual o carisma de Lula parece insuficiente neste momento de seu governo.
A esse antipetismo o cientista político e diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, Felipe Nunes, atribui o baixo desempenho do PT nas eleições municipais em todo o Brasil. Na virtual ausência de Jair Bolsonaro nas urnas em 2026, atenuá-lo será o principal desafio do presidente e do seu partido.
Setores do PT parecem ter consciência disto e já articulam profunda reestruturação política na renovação de sua direção nacional, marcada para 2025. Um aggiornamento no tempo e no espaço urge. Haverá resistência ou, pelo menos, muito barulho. No interior da legenda, o passado e sua ideologia parecem arrastar correntes. Rompê-las nunca é simples. A conferir.
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