01 abril 2023

O que esperar do terceiro mandato de Lula?

Bolívar Lamounier é doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia. Membro da Comissão Afonso Arinos da Presidência da República para elaboração de projeto constitucional. Assessor acadêmico do Clube de Madrid, entidade internacional de apoio à democracia

A palavra do momento é incerteza. Impossível começar uma sentença sem recorrer ao sempre incômodo “se”.  O que vem depois dele depende da personalidade ou do estado de humor de quem escreve. Uns descrevem o Jardim do Éden, outros alertam para a iminente chegada do apocalipse.

Penso que a virtude está no meio. Muito vai depender do desempenho de Lula em seus primeiros seis ou oito meses em duas áreas. Na economia, evidentemente. Na desradicalização política que temos vivido desde os tempos de Dilma Rousseff, agravada pela emergência do bolsonarismo na eleição presidencial de 2018.

É preciso dar a César o que é de César, quero dizer, dar a cada um a quota de desatino que impôs ao país. Sobre Bolsonaro, não há muito a dizer, basta lembrar que ele sequer reconheceu a vitória eleitoral de Lula. Foi por uma margem estreita? Foi, e daí? Foi para isso que inventaram o segundo turno. Se o primeiro turno não produz uma maioria política folgada, o segundo o fará pelo caminho da aritmética. Cinquenta por cento mais um dos votos válidos é a maioria. Do ponto de vista aritmético, vale o que está escrito, um voto é suficiente para definir quem venceu. Do ponto de vista econômico e nas demais áreas substantivas, a legitimidade depende das opções e do desempenho. As simple as that.

Durante a última campanha presidencial, o Brasil presenciou um fato insólito. Um Lula comedido, sensato, diria mesmo lúcido. Se ele mantiver aquela postura nos próximos meses, poderemos ter um cenário razoável. A estrada está coalhada de pedras pontiagudas, mas com Lula nessa nova postura, a oposição bolsonarista enfraquecida e nossa imagem internacional em processo de recuperação, há margem para alguma esperança. Mas não nos iludamos. O Lula dos últimos três ou quatro meses não dissipa inteiramente a imagem que ele e seu Partido dos Trabalhadores esculpiram desde a fundação do partido, já lá se vão quatro décadas. Eles contribuíram, e muito, para a divisão do Brasil em “nós” e “eles”. Desarmar os espíritos que ora permeiam nossa atmosfera num horizonte de seis a oito meses requer o desarmamento dos dois lados.

■ Urgência para resultados na Economia

E quanto à economia, que projeção realista podemos fazer? O cadáver precisará mostrar que não está de todo morto. Se não o fizer, é alta a chance de permanecermos na “apagada e vil tristeza” em que temos nos arrastado. Sabemos todos que a economia brasileira ainda está ruminando o estado de decrepitude iniciado desde que a Dilma Rousseff foi alçada à presidência. Longe de mim afirmar que estamos a dois passos de alguma ribanceira – o Brasil é grande demais para isso –, mas atrevo-me a conjecturar que algum resultado palpável Lula terá que mostrar nos próximos seis ou oito meses. A realidade é que o Estado se contorce diariamente para evitar o vermelho no fim do ano.

Quais são, então, as alternativas? Ora, é lógico que é preciso crescer, e crescimento se faz com investimento. Conhecemos bem a mania brasileira de que crescimento tem que ser com investimento estatal: o chamado nacional-estatismo. Dá-se que não há recursos públicos disponíveis para investimento. Segunda alternativa: aumentar o intercâmbio com o exterior e trazer capitais para o setor privado, mas é uma mágica que Lula pareça disposto a tirar do bolso do colete. “Privado”, para ele, continua sendo nome feio. A terceira alternativa, então, é não crescer, ou seja, permanecer deitado eternamente em berço esplêndido ou, se preferem, permanecer aprisionado na armadilha do baixo crescimento e pastar uns 20 ou mais para dobrar nossa pífia renda anual per capita.

Acadêmico irremissível, não consigo martelar o teclado sem evocar alguns dos fatores que nos jogaram nesse buraco. Apontem um país que tenha incluído a classe trabalhadora no processo político sem que ela criasse e sofresse solavancos consideráveis. A Inglaterra? Não por acaso, o ícone mundial desse processo surgiu bem aqui perto, banhado pelo rio da Prata: foi o comandante-general Juan Domingo Perón. Ele conseguiu integrar a classe operária, mas destruiu o país, e ela é que se tornou a malta dirigente, impedindo-o de crescer e se democratizar. 

Segundo, no plano da ideologia, somos um país incorrigível. Não tememos ser tragados nas águas fétidas do proverbial “poço”, contanto que possamos dar murros no peito e berrar que o “petróleo é nosso”. Acreditamos piamente que bom governo é “governo forte”, entendendo por tal um sujeito com certa relação carnal com ditaduras, ou seja, aquele que aceita qualquer coisa, menos uma América Latina institucionalmente civilizada. Temos uma Constituição boa para ser lida em voz alta, mas sua qualidade literária não a isenta de sandices sem conta (como o “trânsito em julgado” após quatro instâncias). Nem em voz alta e nem à boca pequena, haja vista que nem certos parlamentares enrubesceram com o invento do “orçamento secreto”. Neste ponto, o leitor talvez tivesse apetite para uma digressão sobre os partidos políticos, mas não posso atendê-lo, pois quero estar certo de que me acompanhará até o fim. 

Como edificar um Estado digno do nome?  

Meu veio acadêmico leva-me a uma outra digressão, que o leitor com certeza achará estapafúrdia. O fato é que não enxergamos o Brasil. Insistimos em tentar compreendê-lo pelos olhos de uma geração brilhante – a primeira que nos proporcionou um diagnóstico consistente – mas manifestamente desatualizada. Refiro-me a gigantes como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Raymundo Faoro. Outros houve, dei minori, como Alberto Torres e Oliveira Vianna, que também exerceram (creio que exercem até hoje) uma enorme influência em nossa oftalmologia coletiva. 

Todos eles, grandes e pequenos, aferraram-se à tese (não de todo fora da curva, para as condições da época) que eram mínimas as nossas chances de um dia construir um Estado digno do nome e promover o crescimento da economia. Mesmo o maior deles, com admirável cuidado, sem nunca descuidar dos indispensáveis matizes, o próprio Sérgio Buarque nunca se desvestiu da crença de que a raiz última de nossas mazelas eram os “grilhões” do passado – vale dizer, a colonização portuguesa, escravista e monocultora. Partindo dessa premissa, pelo menos uma dúzia de colegas letrados respaldou-o, afirmando que o perverso elemento que nos brecava era a “família patriarcal”, ou seja, a família extensa, autoritária, assentada nos latifúndios, dispersa pelos cafundós, tudo absorvendo em seus domínios. Sobre tal base, como edificar um Estado digno do nome?  “Não é justo afiançar-se, sem apelo, nossa incompatibilidade absoluta com os ideais democráticos […]. (Mas) a ideia de uma espécie de entidade imaterial e impessoal, pairando sobre os indivíduos e presidindo os seus destinos, é dificilmente inteligível para os povos da América Latina” (Raízes do Brasil, 6ª edição, pág. 138). Imbuído da sociologia romântica, notadamente da alemã, Sérgio Buarque situou-se vigorosamente como o contraposto do calvinismo dissecado por Max Weber, mas o fez postulando uma ordem normativa (cultural) praticamente imutável, cuja dissolução teria que ser obra de séculos[1].   

Para bem compreender o equívoco a que essa esplêndida erudição nos levou, no período entre as duas Grandes Guerras e tanto influenciou o nosso modo de ver o Brasil, é mister pescar uma parte do que ele tem de plausível, e – o melhor de fazê-lo – recorrer a um dos escritores de menor estatura, no caso Oliveira Vianna. O virtual impedimento à emergência de um Estado impessoal teria sido, como vimos, a família patriarcal ou o poder de fato que ela exercia em seus domínios. Daí as catilinárias de Oliveira Vianna contra a implantação do Estado Constitucional e da posterior República, uma vez que essas implicavam a implantação de processos eleitorais, agravando o caráter de clã e a hostilidade à (sem dúvida débil) máquina estatal da época. Nas pequenas comunidades interioranas, o senhoriato da terra conhecia pelo nome cada eleitor, acentuando o poder que sobre ele exercia. Oliveira Vianna expôs essa tese (à época banal) em 1922 e sustentou-a sem modificações até 1950, o ano de sua morte.

Admitida a tese de que o pater famílias, o senhoriato detinha total controle sobre os “seus” roceiros, e até os aliciava para suas pequenas guerras, o corolário só poderia ser o de que o latifúndio funcionava como uma muralha, impedindo a entrada dos funcionários incumbidos de aplicar as normas estatais e eleitorais.

Aqui encontramos outra vez o culturalismo estático do qual nem Sérgio Buarque conseguiu se livrar por completo. Contrariamente ao que sustentaria Marx, a “superestrutura” subjugava a “infraestrutura”. Viesse a industrialização, viesse a urbanização, “a ideia de uma entidade material e impessoal haveria de pairar para sempre sobre os indivíduos, moldando seus destinos”. E, no entanto, a máquina se moveu. Em 1930, somente 5% da população total comparecia às urnas nas eleições presidenciais; em 1945, 16%; em 2022, 72%, como em qualquer democracia avançada, equivalendo a 156 milhões de almas.

Não obstante essa gigantesca mudança estrutural, a tese dos “grilhões” portugueses mantém-se viva e forte, como se os laços de deferência e servidão rural fossem ainda grandes bolas de ferro atadas aos pés de criminosos, como vemos em presídios. Ora, até quando precisará aquele antigo paradigma suplicar seu digno sepultamento? Quando, finalmente, daremos por remida a nossa dívida com a brilhante geração dos anos 30 e nos lançaremos à busca de outras hipóteses, explorando as engrenagens infinitamente mais complexas de oligarquias estaduais que hoje pouco têm a ver com a lavoura, diversificada como está em todos os ramos de negócio, eviscerando os intestinos de um gasto público incompatível com a redução das desigualdades sociais e mostrando a verdadeira face de uma classe política, que, lá do serrado, não se peja de embolsar algum através de orçamentos secretos?

O leitor com certeza se lembra de Jano, o Deus romano do tempo e das transições, aquele de duas faces, uma voltada para o passado e a outra para o futuro. Por essa capacidade de descortinar as duas dimensões do tempo, Jano pode relembrar tanto os nossos passados acertos e imprudências quanto as alternativas e horizontes que nos aguardam.  Tivessem nossos atuais governantes dedicado alguns minutos à compreensão do passado, teriam entendido que a teoria do nacional-estatismo, duvidosa já em sua época, perdeu todo o sentido a partir do momento em que os recursos públicos para investimento deixaram de existir. Fixando os olhos no futuro, o Jano prospectivo nos alertaria para o fato de que nossos recursos em ciência e tecnologia não nos permitem sequer compreender para onde o mundo caminha, nesta era de novas revoluções tecnológicas.

■ A política vem em primeiro lugar

Por uma interessante coincidência, as três “industrializações tardias” (Alemanha, Estados Unidos e Japão) ocorreram precisamente no mesmo momento histórico: as três últimas décadas do século XIX. Nós, quando começaremos a nossa? Penso que não é propriamente no campo da ciência e da tecnologia que a resposta se encontra. Encontra-se, como sentenciou o Marechal De Gaulle, num domínio à primeira vista mais corriqueiro: na política. D’abord la politique: a política vem em primeiro lugar. Ouvindo o Marechal, quem sabe começamos a entender por que parecemos condenados a patinar num eterno marasmo. Na democracia representativa, o fator dinâmico, o balizador das ações públicas, o elo entre o Estado e a Sociedade deveria ser o partido político. Dá-se que não temos partidos políticos ou, se preferem, ter 20 ou 30 e não ter nenhum dá mais ou menos na mesma coisa. Partido – se levarmos o conceito a sério – é uma organização que tenha número suficiente para atuar no processo legislativo, uma personalidade ideológica flexível, mas definida o suficiente para que diferentes parcelas da sociedade possam se orientar nas eleições conforme seus desejos e valores e, de suma importância no caso brasileiro, capaz de impedir o retalhamento do Estado por corpúsculos corporativistas.

Basilar a opinião pública em um número razoável de alternativas, conferindo substância ao pensar e ao sentir dos eleitores. Ora, isso é bem o oposto do que presenciamos na última eleição presidencial. O que vivemos foi o paradoxo de nos havermos dividido numa infinidade de estilhaços ao mesmo tempo em que nos reunimos em uma notável unanimidade. Nos dividimos porque ninguém propôs ou ouviu falar em alguma plataforma programática relevante, como tem sido a norma desde tempos pretéritos. E, ao mesmo tempo, nos reunimos com o mesmo denodo num todo indiferenciado, engajados numa guerra de todos contra todos, bolsonaristas contra petistas e vice-versa, sabendo todos que tal processo só poderia levar a uma grande trapalhada. Bandeira, se fosse possível falar em alguma, seria a bandeira do rancor. Elite e massa, do Oiapoque ao Chuí, sabemos todos (e a maioria até confessa) que o apoio a Lula não passava de rejeição a Bolsonaro, assim como o apoio a Bolsonaro era apenas um destilado de antipetismo. É lógico que trapalhada dessa dimensão dependia de algum fator antecedente, um ou mais fatores que lhe proporcionasse a indispensável condutibilidade atmosférica, e esse, sim, lá estava: era a tradição do “nós contra eles”, a herança da presidente Dilma Rousseff, a recessão, o desemprego e, como consolo para não nos culparmos de tudo, a pandemia da Covid-19.    

Bolívar Lamounier é doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia. Membro da Comissão Afonso Arinos da Presidência da República para elaboração de projeto constitucional. Assessor acadêmico do Clube

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