08 janeiro 2015

O Recado (Mudo) das Urnas

Em tempos normais, a classe política e o comum do povo travam um diálogo de surdos e não somente não se ouvem, mas não se entendem, ou se entendem mas não acham relevante o que escutam. Por isso, em tempos que são também tempos de crise são surpreendidos pelos acontecimentos e reagem, por assim dizer, bestializados. Como, ao que se diz, reagiu o povo à proclamação da República.

Em tempos normais, a classe política e o comum do povo travam um diálogo de surdos e não somente não se ouvem, mas não se entendem, ou se entendem mas não acham relevante o que escutam. Por isso, em tempos que são também tempos de crise são surpreendidos pelos acontecimentos e reagem, por assim dizer, bestializados. Como, ao que se diz, reagiu o povo à proclamação da República.
A classe política grita aos berros nos comícios – a cada dois anos –, mas sussurra aos ouvidos dos seus pares e, nos dois casos, o comum do povo só pode dar-lhes ouvidos moucos. Já a voz das ruas é sempre estridente, mas a manifestação profunda do povo só ocorre nas urnas, e elas são mudas.
Muito se teorizou sobre o papel dos líderes nas revoluções e nas grandes eras reformistas, e o papel do povo nos levantes é frequentemente descrito, mas o significado dos seus atores, por serem anônimos, é atribuído pelos cronistas – dos quais Marx foi, sem dúvida, o mais percuciente. Em tempos normais, entretanto, a crônica política se restringe à narrativa da classe dirigente, e a voz do povo só se manifesta nas urnas, que não ouvem nem falam.
Fora dos levantes, ninguém sabe o que se está ruminando em silêncio, nem o próprio povo, daí a surpresa. E sondar as urnas é uma tarefa inglória, dado o seu silêncio enigmático. Assim sendo, quando tentamos entender a manifestação das urnas, com base nas eleições congressuais, neste ano de grandes reviravoltas – a julgar pelos resultados dos levantamentos de intenções de voto – é surpreendente notar que, a rigor, as urnas se mostram surdas e mudas.
Com efeito, das inúmeras variações entre as quatro dezenas de partidos, nada de novo ocorreu. Se não, vejamos:
1. Os partidos que formam o cerne da maioria governamental (PT/PMDB/PSD/PPP/PR) perderam 37 cadeiras na Câmara, ou 12% da bancada atual. As perdas mais significativas foram no PT (24%), PSD (21%) e PRB (52%).
2. Na oposição, o núcleo tradicional (PSDB/DEM/PPS) ganhou 11 novas cadeiras, ou 14% da bancada atual. Os acréscimos mais significativos foram no PPS, que dobrou sua pequena representação, e no PSDB (19%).
3. Dois partidos que participaram do governo e concorreram pela oposição obtiveram sucesso significativo. O PSB aumentou sua bancada com dez deputados (55%), e o PTB com sete (38%).
No Senado, as alterações foram pequenas e praticamente se anularam para a coalizão governista, e a oposição perdeu espaço em geral, o mesmo ocorrendo com os partidos que, durante as eleições, passaram para a oposição: PTB e PSB. Estes tiveram perdas significativas, respectivamente, 100% e 42%.
Em suma, a oposição avançou na Câmara, mas não o suficiente para pôr em risco a maioria governamental. Já no Senado, a oposição minguou, mas a opinião geral é que aumentou em qualidade.
Existe, portanto, um abismo entre o resultado numérico das urnas e sua percepção pela classe política e pela opinião pública em geral. De fato, o governo vitorioso nas urnas e bastante bem aquinhoado no legislativo, parece acuado na defensiva e vem enfrentando seguidas derrotas ou vitórias com gosto de fel. A oposição, ao contrário, mostra-se aguerrida como não foi nos últimos 12 anos e tem obtido, sem muita dificuldade, apoio suficiente na base governista, senão para impor derrotas ao governo, pelo menos para obstruir algumas de suas iniciativas.
Temos, portanto, dois problemas, aparentemente diferentes. Em primeiro lugar, a questão de saber por que, apesar de obter a reeleição, mantendo sua preponderância no legislativo, o governo é quase universalmente considerado derrotado, e em situação politicamente mais adversa do que em seu primeiro mandato. Em segundo lugar, por que esse sentimento generalizado, de que a rejeição ao governo é hoje majoritária, não se traduziu nas urnas.
Primeiro, tratemos do descompasso entre o sentimento de fracasso do governo e o resultado real das urnas. Em poucas palavras, julgo que se trata de dois fenômenos distintos que, portanto, poderiam ou não se combinar num resultado coerente. Assim sendo, por maior que seja a rejeição a um governo, esse sentimento não se reflete necessariamente em uma eleição.
O exemplo mais simples é o de que as eleições municipais têm uma lógica própria que não reproduz necessariamente a política nacional. Um exemplo de nossa história eleitoral recente é o da sucessão do presidente José Sarney. Naquela ocasião, todos, absolutamente todos os candidatos eram de oposição ao governo. O único que se apresentou para ser apoiado por Sarney – e logo foi retirado da disputa – foi Sílvio Santos. Os dois candidatos que disputaram o segundo turno, Collor e Lula, não obtiveram, entre si, nem um terço do voto popular no primeiro turno.
“Rejeição a tudo que aí está”
De acordo com pesquisas quantitativas que, na época, realizei em colaboração com o professor José Álvaro Moisés, Collor não se diferençava dos demais candidatos como o polo oposto de Sarney – entre outras coisas, porque todos os demais candidatos se aglomeravam nesse mesmo polo – mas sim, por sua suposta capacidade de realização e sua aparente encarnação de uma “nova política”. Nem tampouco Lula – apesar de sua imagem de líder arengueiro e enfezado – diferençou- se por sua oposição mais aguerrida a Sarney, mas sim por sua capacidade de identificação popular (“Lula, um trabalhador igual a você).
Essa grande rejeição a Sarney, e à política das velhas raposas que ele encarnava, simplesmente não se manifestou nas urnas no primeiro turno e, no segundo, dividiu-se quase igualmente entre Lula e Collor. Ela só foi se expressar em uma eleição presidencial na sucessão de Collor, quando elegeu Fernando Henrique, e no primeiro turno.
Sou de opinião que o sentimento de ampla rejeição ao governo Dilma, ao PT e talvez mesmo a Lula, tem uma base real: é parte de um sentimento mais geral de rejeição “a tudo que aí está” – que os franceses chamam de “ras le bol”, isto é, “para mim, chega!”. Sentimento esse que se manifestou no que eu chamaria de “o grande levante popular de junho de 2013”, certamente a maior manifestação popular de toda a nossa história.
Este não é o lugar para discutir causas e consequências desse verdadeiro levante, nem as razões de seu fracasso – tanto nos parcos objetivos realmente alcançados, sobretudo em comparação com suas expectativas –, como no fato de que sequer conseguiu chegar aos ouvidos da classe política que, em sua quase totalidade, manteve-se ao largo e fez ouvidos moucos. Creio, entretanto, que poucos discordam de que uma de suas características mais disseminadas foi a insatisfação com as elites dirigentes (sem distinção entre governos municipais, estaduais e federal) e sua relação com os cidadãos comuns, a quantidade do que nos é tirado e a qualidade do que nos é dado de volta.
Creio, também, que poucos discordarão de que a rejeição à velha política passou longe das eleições deste ano, em que se chegou ao cúmulo do desrespeito ao eleitor, negando-se a apresentar sequer um esboço de roteiro para o próximo termo presidencial. Enquanto o governo não prometia senão mais do mesmo – como se não fosse exatamente isso o que os cidadãos mais rejeitavam – a oposição falava em nova política, mas não a praticava.
Faltou, tanto no governo – que para isso teria que se reinventar – quanto na oposição, que já quase se esquecera de sê-lo, vozes que traduzissem em políticas, atitudes e gestos concretos a esperança de pôr fim à velha política e de devolver aos cidadãos sua dignidade.
Por isso, não se deve estranhar que a voz do povo não se tenha manifestado, nem tido efeito decisivo nas urnas. Uma das caraterísticas conservadoras do povo é a de preferir submeter-se às ofensas já conhecidas do que oferecer-se a novas ofensas, de cujos limites ninguém ainda tem notícia. Toda mudança é um risco para quem não tem domínio sobre as circunstâncias.
Como o clamor popular não se traduz fácil, nem rapidamente, em atitudes eleitorais, e não se sabe como governo e oposição reagirão ao recado mudo das urnas – um recado não dado –, é quase impossível prever como a vontade popular poderia se expressar com mais clareza e, com isso, ter condições de prevalecer. Estaremos cada vez mais condenados à desonestidade da paixão dos grandes (como diria Maquiavel) ou a contribuir para o cinismo do povo.
Transição tumultuada
Tratemos, agora, da questão de saber que vitória é essa, que tem sabor de derrota. Que fraqueza é esta que resulta de uma vitória conquistada com enorme empenho e capacidade de resistência a circunstâncias adversas? Comecemos por lembrar quais os sinais dessa fraqueza.
O primeiro sinal foi dado na noite da eleição. A presidente eleita, longe de regozijar-se com a vitória e de deixar os derrotados lamberem as próprias feridas – que são tanto mais acerbas quanto mais a vitória esteve ao alcance –, pareceu continuar o combate contra um adversário ainda a derrotar. Não cumprimentou, nem sequer mencionou o adversário e, nos dias que se seguiram, continuou bravamente a fazer oposição ao senador Aécio Neves, ao ex-presidente Fernando Henrique, ao governador Geraldo Alckmin e a 500 anos de história.
Ora, um adversário que não foi derrotado ainda pode derrotar-nos, e esse é o principal motivo do renascimento da oposição e de seu caráter aguerrido e, principalmente, da posição protagônica que lhe foi destinada neste fim de governo – que se transformou no início da oposição. Não tenho notícia de uma transição entre dois governos tão tumultuada, tão disputada e de uma lua de mel de menos de 24 horas.
Sim, porque, no dia seguinte ao da eleição, a Câmara aprovou um decreto legislativo que anulou o controverso decreto presidencial que instituiu os “conselhos populares”. Logo em seguida, a emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias que permite acabar com o superávit primário e, portanto, legaliza o déficit orçamentário, contrariando a Lei da Responsabilidade Fiscal, enfrentou uma obstrução ferrenha da própria base governamental – sem falar do próprio PT –, apesar de novas prebendas concedidas por decreto.
A forma tumultuada com que está sendo anunciado o futuro governo é outro aspecto significativo dessa fraqueza, somente comparável à de um fim de mandato. A presidente, a todo momento, emite sinais de que não tem o controle das coisas, permite que sinais contraditórios sejam dados em seu nome e se permite colocar em situações embaraçosas, tais como a recusa pública de cargos no governo e a manutenção no governo de colaboradores que continuam a executar políticas antagônicas às dos ministros recém-indicados.
Pior, os dois principais partidos de sustentação de seu governo, o PT e o PMDB, adotam publicamente atitudes que a afrontam pessoalmente. O PT critica abertamente suas decisões, especialmente no que diz respeito à equipe econômica, mas, ainda mais grave, à política econômica que ela diz ter adotado. A nata da intelectualidade petista e um número significativo de suas celebridades divulgam um manifesto frontalmente contrário às medidas anunciadas pela nova equipe econômica e endossadas por ela. Como se não bastasse, ela mesma adota medidas frontalmente opostas às de seus novos colaboradores, desgastando a credibilidade de sua equipe e a sua própria. Em encontros com as organizações para-governamentais, isto é, entidades de base subsidiadas pelo governo, a presidente, longe de encontrar a gratidão esperada, tem sido cobrada, de uma maneira ou de outra, por aqueles que já não se contentam com as migalhas caídas da mesa, mas querem delimitar a prerrogativa presidencial de montar seu próprio gabinete.
Petrolão
O PMDB, dividido que entrou nas eleições, dividido saiu e, como diria o ex-presidente Lula, resolveu “partir para cima”. Não somente quer a presidência da Câmara, mas a quer para um deputado considerado desafeto da presidente e que ela está tentando vetar abertamente, o que torna o eventual incômodo de uma derrota em desastre monumental.
Não é preciso estender-se longamente sobre o petrolão – agora que temos o mensalão e o petrolão, como se chamará o novo escândalo envolvendo 750 obras de infraestrutura do governo? –, mas é fatal que o enorme esforço para defender-se, não apenas pessoalmente como também das possíveis consequências dessas investigações (como, por exemplo, a suspensão de obras, desistências de investidores, rebaixamento das notas das agências de “rating”), envolve um desgaste que desvia a energia da presidente de suas tarefas governamentais – que não são banais.
Os três caminhos
Finalmente – e o episódio embaraçoso de seus encontros com movimentos grass-roots, pretensamente obsequiosos com as benesses que ela lhes tem proporcionado é exemplar –, a presidente nunca pareceu tão isolada quanto depois dessa vitória que Pirro dificilmente invejaria. Não é tarefa fácil apontar que grupos, de que partidos ou que setores das elites lhes são incondicionalmente fiéis neste momento.
A escolha de sua equipe econômica ilustra esse isolamento. Tornou-se claro, desde as primeiras especulações e pressões de dentro e de fora do governo e do PT, envolvendo inclusive o condestável Lula, que a presidente precisava de alguém que desse ao seu governo a credibilidade que era não é capaz de dar. Collor tentou o mesmo para sair de sua primeira crise de governo, trouxe para o Planalto grandes craques, cada um em sua posição, nenhum político profissional. Daquela vez, não deu certo.
Restam três caminhos até 2018. O primeiro consistiria em vislumbrar, no decorrer dos próximos quatro anos, lideranças que encarnem a “nova política” – cujo conteúdo ainda terá que ser construído – e acenem com compromissos críveis de uma gestão honesta e de ações decisivas para retomar o crescimento e estender, à imensa maioria, o bem-estar geral. Esse teria que ser o caminho das oposições, pois a viabilidade de vir do PT é totalmente incompatível com o petismo realmente existente.
Outro caminho seria governo e oposições voltarem ao business as always, apostando na omissão das elites e no conservadorismo popular para deixar como está, como diria Getúlio, e ver como é que fica. Mas, este caminho se cruza com o terceiro, um caminho retomado pela memória do levante de junho de 2013, agravada com as novas ofensas que os governantes não tardarão a causar. Seria o caldo de cultura para uma “revolução” em busca de suas lideranças.


José Augusto Guilhon Albuquerque é professor titular de Relações Internacionais da USP e pesquisador visitante no Fórum do Pensamento Estratégico da Unicamp.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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