O Resgate da Defesa Nacional
A defesa nacional não desperta interesse. Nosso poder militar é visto mais em seus papeis influentes no cotidiano e na síndrome da insegurança pública do que como instrumento de defesa. O preparo militar da Aeronáutica é irrelevante, mas a crise dos controladores de voo a evidenciou, porque ameaçava o transporte aéreo. A Marinha é cobrada quando ocorre acidente até com embarcação de recreio. Já o seu preparo militar não merece atenção. Em pesquisas de opinião, nossas Forças Armadas são bem hierarquizadas na confiabilidade, mas trata-se de uma confiabilidade difusa, num universo público medíocre – área em que elas se distanciam do generalizado clima venal. A defesa nacional em si é irrelevante na mesma avaliação, provavelmente sequer cogitada. O desinteresse se deve à propensão da base da pirâmide social e de parte de seus estratos superiores a só verem as questões concretas do varejo socioeconômico e lúdico da vida – e à concomitante relutância de se empolgarem com (até de entenderem) questões vistas como abstratas, entre elas a defesa nacional. Em segmentos da classe média, o desinteresse é reforçado pelo preconceito decorrente da interveniência militar na política, o que está em fase de superação, mas ainda resiste no sectarismo radical. Em outros segmentos, o desinteresse se dá pela ideia da implausibilidade de ameaça, que justificaria a ausência da dimensão militar em nossa inserção internacional. Influência incisiva: o desinteresse é forte na política porque a defesa nacional não gera votos, e a organização militar, refratária ao patrimonialismo e clientelismo, só é lembrada na questão salarial, que gera votos. Reflexo da visão do autor, este artigo não pretende transformar a apatia em fascínio e, muito menos, o não familiarizado em expert.Pretende apenas contribuir, em nível conceitual básico, para o resgate da defesa nacional do desinteresse vigente na sociedade, contribuindo para que o público pouco familiarizado, interesse-se pelo tema, aceitando o fato de que uma capacidade militar convincente, ainda que sóbria, ajudará o Brasil a ocupar a posição na ordem internacional a que o credenciam suas condições geopolítica, econômica e demográfica. Isso ajuda a respaldar a solução negociada de contenciosos.
Cenários
Que papeis cabem aos sistemas de defesa no mundo do século XXI e como eles devem ser configurados? Vamos delinear uma resposta para o Brasil, em nível conceitual básico e em termos adequados ao público não familiarizado, pautada por essa premissa realista: a agenda brasileira é global na economia e nos cuidados humanitários e ambientais, mas na segurança deve ser principalmente regional: América do Sul (e, ao menos por razões humanitárias, a América Central e o Caribe) e Atlântico Sul, em particular o ocidental. Fora dessa região é razoável admitir que a presença brasileira na esfera da segurança deva ser de cooperação ou até mesmo simbólica. Comecemos com os cenários que dão amparo lógico à concepção da defesa e ao preparo militar, sujeitos a alterações com a evolução dos acontecimentos.
a. A defesa brasileira associada à defesa coletiva regional, no figurino do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca / Tiar (de 1947) só terá sentido novamente se voltarem a ocorrer tensões globais como as do século XX. O Conselho de Defesa Sul-Americano (criado em 2008 sem os EUA), com seu envolvimento mundial, treinamentos conjuntos, intercâmbio de pessoal, participações conjuntas em forças de paz e complementação industrial-militar, pode manter discretamente a ideia de defesa coletiva, a ser desenvolvida se e quando for necessária.
b. A segurança compartilhada continua válida para propósitos limitados, definidos em acordos bilaterais ou multilaterais entre o Brasil e seus vizinhos, relativos às ameaças irregulares inerentes à época, por vezes interligadas, muito prováveis nas próximas décadas e já em curso: guerrilha com reflexos transfronteiriços, terrorismo, narcotráfico, contrabando, pirataria, exploração irracional de recursos naturais, deterioração ambiental e quaisquer outras modalidades de delito ou malfeito transnacional.
c. Não se vislumbram razões para que o Brasil venha a ser ameaçado (ameaça clássica) por Estado extrarregião. A volta e meia aventada intervenção por motivos ambientais amazônicos é implausível, até porque, para influenciar nosso comportamento ambiental, mais prática e sem risco é a coação econômica – embargos, selo verde, entre outros. Entretanto, a dinâmica da história não garante essa segurança no longo prazo e, como poder militar moderno não se improvisa, há que pensar moderadamente na hipótese: nossa tranquilidade deve ser protegida por poder militar sóbrio, mas convincente, capaz de dissuadir tal ameaça. Mostra-se, portanto, útil para estimular soluções negociadas.
d. A probabilidade de contenciosos territoriais na América do Sul é pequena, ainda que não nula. Exemplos em aparente recesso são o contencioso territorial Venezuela-Guiana, o acesso da Bolívia ao Pacífico e a pendência marítima Chile-Perú. Nos anos 1970, vivemos um caso que beirou o conflito: o do canal de Beagle, no extremo sul da América do Sul (Argentina x Chile). Nos anos 1990, a desavença territorial chegou a um início de conflito entre Peru e Equador. Mais que as territoriais, os recursos naturais e o meio ambiente são causas prováveis de contenciosos e tensões, já que por sua extensão e fronteiras imensas o Brasil não está imune (se não pelo contrário) a este tipo de conflito. Na década de 1930, Paraguai e Bolívia viveram a “guerra do Chaco”, inspirada no petróleo. Nos anos 1970, a controvérsia entre as hidrelétricas de Itaipu e Corpus (usina argentina não construída, cujo potencial seria prejudicado pela brasileira) induziu a uma preocupação militar, tanto na Argentina quanto no Brasil. Argentina e Uruguai vivem hoje o litígio das indústrias “papeleiras”, vistas pela Argentina como poluidoras do rio Uruguai. Quando envolvendo o Brasil, a simples existência de um poder militar entendido como capaz respaldará naturalmente a solução negociada. Ainda que não o envolva, qualquer conflito que afete a tranquilidade regional interessa ao Brasil, que deve fazer-se presente da intermediação política à atuação em força de paz, sob mandato internacional (ONU, OEA, Unasul, entre outras entidades).
e. Na hierarquia das preocupações estratégicas brasileiras, a região do Prata perdeu a força do passado, porque não existem hoje motivos para investir nela, mais ainda se os tropeços da integração econômica vierem a ser resolvidos. A Amazônia merece, neste momento, mais cuidado. Não se trata de ameaça clássica de Estado(s) vizinho(s), muito improvável, ao menos no horizonte do tempo imaginável. A hierarquia se deve fundamentalmente às supracitadas ameaças irregulares transfronteiriças, a que a permeabilidade da Amazônia brasileira a faz vulnerável, exigindo atenção militar coerente com suas características geofísicas, ecológicas, demográficas e socioeconômicas.
f. No mundo do século XXI, crescentemente integrado, continuarão prováveis as intervenções promovidas ou legitimadas por organizações internacionais (ONU, OEA e similares da África e Ásia) por razões humanitárias e/ou em prol da ordem de interesse supranacional, em conflitos entre países ou internos, decorrentes de contenciosos territoriais, tribais, étnicos, religiosos, migração descontrolada, uso controverso de recursos naturais, catástrofes da natureza e deterioração ambiental. Em nível global, cabe ao Brasil apenas a participação coadjuvante nas forças de paz (manutenção da ordem e defesa civil, com capacidade ofensiva de acordo com a situação), como foi o caso do “batalhão Suez”, em Gaza, há 50 anos, da presença de uma Fragata para apoiar o bloqueio de armas no Mediterrâneo oriental, atualmente, ou do envio de pequeno contingente terrestre para Timor Leste, de maneira simbólica. Já na nossa região, a participação brasileira deve ser significativa, como foi em Santo Domingo, na República Dominicana (guerra civil nos 1960) e está sendo no Haiti (terremoto, em 2010, e a consequente desordem interna).
g. Embora o poder militar se destine primordialmente à defesa externa (ameaças clássicas e irregulares) e, complementarmente, às missões de força de paz, cabe-lhe também a ordem interna, de acordo com a constituição e as leis, onde / quando a ação policial é insatisfatória (segurança em grandes eventos, controle de grave perturbação da ordem e participação transitória em ações policiais excepcionalmente exigentes de meios militares) ou impraticável (espaço aéreo, mar sob jurisdição brasileira, extensões fronteiriças). O uso das Forças Armadas na rotina da segurança pública é inconveniente: ele as compromete em questão interna além do razoável na democracia e tende a depreciar a missão militar precípua, na visão do povo.
h. No plano não propriamente de defesa, há que considerar as atividades subsidiárias das Forças, como a segurança da navegação aérea / aquaviária, a participação em projetos especiais, a exemplo da presença do Brasil na Antártica, a cooperação social (é o caso da assistência médica na Amazônia) e o apoio à defesa civil em catástrofes.
Esboço do poder militar
Cabe esboçar agora o poder militar coerente com os cenários, também sujeito a ajustes impostos pela evolução nacional, internacional e tecnológica. Sintético (talvez não tanto para a Marinha e pouco desenvolvido para o Exército e Aeronáutica, em razão do DNA profissional do autor), o esboço traduz uma idealização moderada compatível (ou ao menos conciliável) com os documentos oficiais vigentes – a Política de Defesa Nacional, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa. Rigorosamente conceitual, sem considerações sobre dimensão, número, tipo tecnológico, armas e complementos, assuntos próprios aos desdobramentos profissionais, o esboço respeita a premissa do início do tópico cenários e admite que o Brasil não é grande potência militar, mas deve ser convincente e capaz de: 1) praticar estratégias defensivas (cenários c / d ) que dissuadam ameaças de Estado(s) – hoje improváveis, mas não impossíveis no longo prazo histórico – e as abortem, se acontecerem; 2) controlar (cenários b / e / g) o espaço aéreo, o mar sob jurisdição brasileira e a fronteira terrestre – em modelo coerente com as circunstâncias locais; 3) exercer presença significativa (cenário f) na ordem regional e coadjuvante ou pelo menos simbólica, no mundo; e 4) contribuir para a ordem interna (cenário g).
Marinha: navios e submarinos são usados para a defesa contra ameaças clássicas e contribuem para a segurança geral no Atlântico Sul, sobretudo ocidental; unidades típicas de Guarda-Costa controlam rotineiramente o mar sob jurisdição brasileira e protegem instalações marítimas (onde se insere o tema do pré-sal); fuzileiros navais funcionam como força expedicionária de porte médio e participam em força(s) de paz, com a correlata capacidade de transporte, desembarque e apoio; unidades próprias às operações ribeirinhas (embarcações, fuzileiros navais, helicópteros) realizam o controle da Amazônia e do rio Paraguai; e unidades regionais de fuzileiros navais atuam em missões de segurança interna. O apoio de base ao longo do litoral é requisito do emprego do poder naval como conjunturalmente adequado.
No pós-Segunda Guerra Mundial, o porta-aviões tem servido à projeção de poder, não tendo ocorrido confrontos aeronavais, nem proteção aeronaval ao tráfego marítimo. Sua utilidade na defesa é discutível. O modelo argentino, por exemplo, não foi usado no conflito das Malvinas. O quadro brasileiro pode não enfatizá-lo hoje, mas as vicissitudes de nossa futura presença internacional sugerem uma força aeronaval que mantenha e desenvolva o know how na área e que seja ampliada se e quando for conveniente. Substituir nosso porta-aviões e seus aviões em fim de vida é um projeto para o prazo de dez anos.
Exército: unidades de elite (unidades clássicas e as de operações especiais, que o mundo contemporâneo vem evidenciando) devem estar preparadas para a defesa tradicional e, complementarmente, para a participação em forças de paz. Excepcionalmente também devem cooperar na garantia da ordem interna, dotadas de bom nível tecnológico e servidas por mobilidade estratégica que permita o deslocamento para a região que precise delas. Na Amazônia, há que se completar a rede de unidades de fronteira, em coerência com a região no tocante à organização, distribuição, equipamento, mobilidade e apoio logístico para a defesa territorial, atuação antiguerrilha e controle de fronteira. A rede de unidades de fronteira deve ser estendida ao restante da fronteira terrestre, em conformidade com as condições geofísicas, demográficas e socioeconômicas, variadas ao longo dela. As demais unidades distribuídas no território nacional precisam ter condições de contribuir para a defesa territorial, de participar como exigido pela situação e estar em conformidade com a Constituição e a lei na garantia da ordem interna e na proteção de instalações e serviços vitais contra ameaças irregulares. Força Aérea: um núcleo moderno e expressivo de defesa aérea no paradigma da defesa clássica se faz necessário, assim como unidade(s) aérea(s) de apoio aerotático a operações terrestres na defesa clássica e na antiguerrilha, unidade(s) aérea(s) de vigilância e controle rotineiro do espaço aéreo e de patrulha aérea marítima e, um aspecto importante no quadro territorial brasileiro, a capacidade de prover mobilidade aeroestratégica para unidades terrestres. Tal como no caso da Marinha, para que o poder aéreo possa ser usado em função da necessidade, é preciso dispor de apoio de base nas várias regiões do Brasil. Além do preparo propriamente militar esboçado, há que se atentar também para as atividades subsidiárias, em particular aquelas em que as Forças Armadas são imprescindíveis e por ora insubstituíveis (segurança da navegação aquaviária / aérea) ou muito convenientes (presença na Antártica e apoio a populações marginalizadas). Todo esse conjunto precisa ser apoiado por sistemas modernos de comunicações, de comando e de controle e vigilância. A vigilância tem importância, em particular, no espaço aéreo, no mar sob jurisdição brasileira e nas regiões fronteiriças – conceito espacial de profundidade variável com as circunstâncias geofísicas, demográficas e socioeconômicas, obviamente grande na permeável Amazônia. Inserem-se nesse tópico alguns desafios da modernidade, como, por exemplo, os Vant (veículos aéreos não tripulados) e o(s) sistema(s) de satélite(s) de comunicações e vigilância, sob controle brasileiro, inclusive na fabricação e no lançamento dos satélites.
Problemas
Nossa defesa nacional vive problemas de material, pessoal, organização e recursos, alguns comuns ao mundo e outros peculiares da nossa região. Vejamos alguns exemplos, que propiciam ao leitor não familiarizado uma ideia da amplitude e da complexidade da defesa nacional.
Tecnologia e indústria: O desenvolvimento tecnológico-industrial e a defesa nacional estão associados. No desenvolvimento da configuração material do poder militar é preciso ter presente a conveniência de ampliar a participação da indústria nacional. Tal como ocorre no mundo desenvolvido, há que engajar nesse processo instituições civis públicas e privadas de pesquisa, universidades e indústria, como vem fazendo a Marinha no caminho para a propulsão naval nuclear. O Brasil pode aproveitar o fato de não se vislumbrar ameaça grave, ao menos no horizonte de curto e médio prazos, para o desenvolvimento de tecnologia de defesa e sua industrialização no país. Nossa já razoável capacitação industrial sugere que a transferência de tecnologia e a produção no Brasil – sendo esta imprescindível no tocante à manutenção e ao consumo (mísseis, munição em geral) – devam ser quesitos condicionantes da importação. Isso implica a associação de indústria(s) estrangeira(s) e nacional(ais) e a capacitação de indústria(s) brasileira(s). O empenho tecnológico-industrial deve ser abrangente, em coerência com o desenvolvimento nacional, mas merece realce o que atende à autonomia logística, indispensável à soberania operacional. Os equipamentos de alta tecnologia julgados importantes, cuja obtenção com controle tecnológico (e, com ele, o controle operacional) são cerceados pelos países fornecedores. Alguns exemplos relevantes são os mísseis táticos (ar-ar, ar-superfície, superfície-superfície, antiaéreo) e o lançador de satélites (“primo tecnológico” do míssil balístico), a guerra eletrônica e a cibernética, a vigilância e as comunicações envolvendo sistema(s) de satélites, os Vant e a propulsão nuclear para submarinos. Nossas Forças continuarão, talvez, por algum tempo clientes limitados, e a exportação é dificultada pelas potências tradicionais no ramo. A viabilidade econômica aponta, portanto, para a produção de material de defesa em indústrias de produção civil e militar, a exemplo da Embraer.
Integração: Outro tema a ser enfatizado é o incremento da eficiência militar pela integração possível das Forças nos planos estratégico, tático, logístico e da inteligência, tanto mais racional quanto maior é o avanço tecnológico, que vem reduzindo as estanqueidades naval, terrestre e aérea do passado. O processo de integração, sujeito à influência da tradição de autonomia das Forças, foi vivido e está razoavelmente resolvido, ainda que com tropeços, onde o poder militar é preparado, visando à eficiência integrada – com exemplar sucesso nos EUA. A Amazônia, localidade inerentemente terrestre, fluvial e aéreo, é apropriada para a prática da integração, com a identificação de seus problemas e a procura das soluções. Ator importante no processo, o Ministério da Defesa é responsável por conduzir a conciliação das visões estratégicas, doutrinas e procedimentos operacionais, logísticos e de inteligência corporativos das três Forças e a compatibilização possível de equipamentos. Adotado o Ministério da Defesa nos países de poder militar moderno, seu desempenho no Brasil (onde ainda está em consolidação) exige adequada formação de civis para seus quadros, cuja escassez tem sido alimentada pelo desinteresse pela defesa nacional.
Serviço militar e profissionalização: O modelo de conscrição universal vigente no Brasil é útil à solidariedade social (atinge ricos e pobres), ao sentimento de unidade nacional (os recrutas passam a ver o país além de suas paróquias) e à valorização social (instrução). Mas, a realidade vem diferindo desse ideal: são recrutados menos de 10% dos inscritos, em geral da base da pirâmide social, que têm no serviço militar uma alternativa de emprego aos 18 anos. A maioria dos recrutas serve mesmo nas suas regiões de origem – tendência condicionada pela economia e também porque convém tê-los afeitos às peculiaridades locais, como é o caso da Amazônia (um recruta de Ipanema (RJ) não veria a ameaça de uma cobra ou jacaré com a mesma tranquilidade de um caboclo amazônico). Essa realidade inclui um tema que preocupa: a qualificação de pessoal. Um ano de serviço militar é pouco para preparar nosso jovem recruta, em geral de precária formação escolar, para atuar com equipamentos complexos, em situações táticas que as injunções tecnológicas as fazem comumente também complexas. Esse problema diz mais respeito ao Exército (um marinheiro nosso passa por escola de formação, antes de “embarcar”). Em países de poder militar moderno, Forças Armadas mais profissionalizadas estão substituindo as de recrutas anuais, ainda que não totalmente. Mas, a profissionalização um problema já sensível onde ela cresceu: a defesa nacional tende a ser vista pela sociedade como problema restrito aos profissionais. A tecnologia moderna reduz a necessidade de combatentes (um avião de bombardeio da Segunda Guerra Mundial precisava de dez tripulantes,; hoje, temos os Vant e mísseis). Em contrapartida, esse novo cenário exige mais pessoal técnico, que apenas parcialmente precisa ser militar. A participação de pessoal civil, até das empresas fabricantes, já acontece no mundo desenvolvido, em particular nos EUA. Merece atenção o preparo dos militares para o trato de questões intervenientes e de limites difusos, militares e civis. No mundo de hoje, o sucesso militar não é em si a solução, mas assegura condições para que ela aconteça nos complicados meandros políticos, sociais, econômicos, culturais e religiosos – haja vista o que ocorre atualmente no Oriente Médio (na verdade, nunca foi a solução definitiva, mas atualmente a miscelânea civil-militar é mais complexa). Cultura deixou de ser verniz atraente, passando a ser moldura conveniente, assim como o conhecimento de idiomas. O serviço militar exige análise cuidadosa, que avalie se e quanto os efetivos poderão e/ou deverão ser profissionalizados. Seja qual for a orientação, é imperativa a preservação da responsabilidade de todos pela defesa nacional e a possibilidade de convocação de todas as classes, quando e como necessária.
Na relação entre militares e sociedade, nossos efetivos são pequenos no mundo. Entretanto, não é razoável dimensioná-los pela população, e sim pelas vulnerabilidades e preocupações que condicionam a capacidade militar conveniente ao país. O tamanho da população como parâmetro pressupõe o controle do próprio povo como uma razão do sistema militar, e não é esse o caso brasileiro. Nossos efetivos militares têm que ser – e estão sendo – dimensionados ponderadamente.
Orçamento: Se a ameaça não é percebida como grave, fica difícil conseguir aumento significativo do orçamento da defesa que, embora seja menor apenas do que o da previdência, o do superávit primário, o das transferências constitucionais e o da saúde, é hoje insatisfatório. O que se pode esperar nos curto e médio prazos é o aumento discreto, dependente da dinâmica da economia e da receita fiscal. A restrição financeira exige sobriedade realista na identificação de preocupações e vulnerabilidades e na consequente definição de prioridades do preparo militar – provável razão de polêmicas e de resistência de visões corporativas militares, se não até de interesses industriais e, a reboque, político-paroquiais. É preciso compatibilizar o sistema militar e seu preparo com as limitações fiscais, compreensíveis diante dos graves problemas socioeconômicos brasileiros. Errado, no entanto, é a defesa nacional atuar menos por parâmetros de responsável opção racional e mais na onda do desinteresse pelo tema, como vem ocorrendo. Esse processo inclui temas complexos e controversos como, por exemplo, a existência de organizações ou unidades de relação custo e benefício discutível, cuja extinção frequentemente afeta interesses socioeconômicos locais ou corporativos das Forças. O tumulto criado por projetos novos, nem sempre inspirados em razões decisivamente imperativas, sobre a continuidade de projetos complexos e longos – problema comum no serviço público brasileiro –, faz com qu,e com frequência, nada fique totalmente pronto. O orçamento insatisfatório é agravado por seu perfil, problema que se assemelha ao de outros setores da estrutura pública nacional: cerca de 70% a 75% vinculados ao pessoal, cabendo aos 25% a 30% restantes, sujeitos a contingenciamentos, a obtenção / construção de meios e instalações militares (investimento), manutenção, treinamento e pagamento de compromissos. Esse perfil interage com as questões salarial e previdenciária. Simplesmente, aumentar a participação do pessoal no perfil agravaria a situação a um patamar absurdo. A condução sensata desse tema sugere um equilíbrio racional para todo o quadro salarial público: o comedimento será mais bem aceito pelos militares se estendido a todo ele, sem os despautérios vigentes.
Conclusão
À vista do exposto, estão corretos nossa concepção de defesa nacional e nosso modelo organizacional e preparo militar. São eles coerentes com nossas vulnerabilidades e preocupações verossímeis? Tal pergunta é corrente no mundo, não sendo apenas um problema brasileiro. Como dito no início, este artigo delineia sinteticamente uma ideia estritamente conceitual de resposta-paradigma, útil ao leitor pouco familiarizado (e geralmente pouco interessado) com a defesa nacional e o poder militar: uma concepção de defesa nacional realista e um poder militar comedido, mas convincente, capaz de respaldar o Brasil em coerência com sua presença relativa na sua região e no mundo, enquanto construímos um país economicamente mais forte e socialmente mais feliz. Trata-se de uma concepção de defesa e seu correspondente preparo militar não ufanistas e/ou utópicos, mas ponderadamente responsáveis, que não exageram as ameaças, mas não as inflacionam “patrioticamente”. Com o avanço socioeconômico aumentará a dimensão político-estratégica do Brasil, exigindo a cautelosa revisão do paradigma conceitual delineado e de seus desdobramentos concretos. Mais dia menos dia, a evolução haverá de incluir a questão da condição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Destaque dessa natureza não acontece por mera volição política ao estilo neoterceiromundista, mas exige capacidade para honrá-lo. A dimensão estratégica dessa capacidade o Brasil não alcançará enquanto prevalecer entre nós a apatia praticamente autista, societária e política, pela defesa nacional e seu correlato poder militar. Este artigo terá atingido seu propósito se contribuir para a superação dessa apatia, ainda que equilibrada e sem atropelos “patrioticamente” eufóricos.
Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado).
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