O Resgate da Defesa Nacional
A defesa nacional não desperta interesse. Nosso poder militar é visto mais em seus papeis influentes no cotidiano e na síndrome da insegurança pública do que como instrumento de defesa. O preparo militar da Aeronáutica é irrelevante, mas a crise dos controladores de voo a evidenciou, porque ameaçava o transporte aéreo. A Marinha é cobrada quando ocorre acidente até com embarcação de recreio. Já o seu preparo militar não merece atenção.
Que papeis cabem aos sistemas de defesa no mundo do século XXI e como eles devem ser configurados? Vamos delinear uma resposta para o Brasil, em nível conceitual básico e em termos adequados ao público não familiarizado, pautada por essa premissa realista: a agenda brasileira é global na economia e nos cuidados humanitários e ambientais, mas na segurança deve ser principalmente regional: América do Sul (e, ao menos por razões humanitárias, a América Central e o Caribe) e Atlântico Sul, em particular o ocidental. Fora dessa região é razoável admitir que a presença brasileira na esfera da segurança deva ser de cooperação ou até mesmo simbólica. Comecemos com os cenários que dão amparo lógico à concepção da defesa e ao preparo militar, sujeitos a alterações com a evolução dos acontecimentos.
Cabe esboçar agora o poder militar coerente com os cenários, também sujeito a ajustes impostos pela evolução nacional, internacional e tecnológica. Sintético (talvez não tanto para a Marinha e pouco desenvolvido para o Exército e Aeronáutica, em razão do DNA profissional do autor), o esboço traduz uma idealização moderada compatível (ou ao menos conciliável) com os documentos oficiais vigentes – a Política de Defesa Nacional, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa. Rigorosamente conceitual, sem considerações sobre dimensão, número, tipo tecnológico, armas e complementos, assuntos próprios aos desdobramentos profissionais, o esboço respeita a premissa do início do tópico cenários e admite que o Brasil não é grande potência militar, mas deve ser convincente e capaz de: 1) praticar estratégias defensivas (cenários c / d ) que dissuadam ameaças de Estado(s) – hoje improváveis, mas não impossíveis no longo prazo histórico – e as abortem, se acontecerem; 2) controlar (cenários b / e / g) o espaço aéreo, o mar sob jurisdição brasileira e a fronteira terrestre – em modelo coerente com as circunstâncias locais; 3) exercer presença significativa (cenário f) na ordem regional e coadjuvante ou pelo menos simbólica, no mundo; e 4) contribuir para a ordem interna (cenário g).
Marinha: navios e submarinos são usados para a defesa contra ameaças clássicas e contribuem para a segurança geral no Atlântico Sul, sobretudo ocidental; unidades típicas de Guarda-Costa controlam rotineiramente o mar sob jurisdição brasileira e protegem instalações marítimas (onde se insere o tema do pré-sal); fuzileiros navais funcionam como força expedicionária de porte médio e participam em força(s) de paz, com a correlata capacidade de transporte, desembarque e apoio; unidades próprias às operações ribeirinhas (embarcações, fuzileiros navais, helicópteros) realizam o controle da Amazônia e do rio Paraguai; e unidades regionais de fuzileiros navais atuam em missões de segurança interna. O apoio de base ao longo do litoral é requisito do emprego do poder naval como conjunturalmente adequado.
No pós-Segunda Guerra Mundial, o porta-aviões tem servido à projeção de poder, não tendo ocorrido confrontos aeronavais, nem proteção aeronaval ao tráfego marítimo. Sua utilidade na defesa é discutível. O modelo argentino, por exemplo, não foi usado no conflito das Malvinas. O quadro brasileiro pode não enfatizá-lo hoje, mas as vicissitudes de nossa futura presença internacional sugerem uma força aeronaval que mantenha e desenvolva o know how na área e que seja ampliada se e quando for conveniente. Substituir nosso porta-aviões e seus aviões em fim de vida é um projeto para o prazo de dez anos.
Nossa defesa nacional vive problemas de material, pessoal, organização e recursos, alguns comuns ao mundo e outros peculiares da nossa região. Vejamos alguns exemplos, que propiciam ao leitor não familiarizado uma ideia da amplitude e da complexidade da defesa nacional.
Na relação entre militares e sociedade, nossos efetivos são pequenos no mundo. Entretanto, não é razoável dimensioná-los pela população, e sim pelas vulnerabilidades e preocupações que condicionam a capacidade militar conveniente ao país. O tamanho da população como parâmetro pressupõe o controle do próprio povo como uma razão do sistema militar, e não é esse o caso brasileiro. Nossos efetivos militares têm que ser – e estão sendo – dimensionados ponderadamente.
À vista do exposto, estão corretos nossa concepção de defesa nacional e nosso modelo organizacional e preparo militar. São eles coerentes com nossas vulnerabilidades e preocupações verossímeis? Tal pergunta é corrente no mundo, não sendo apenas um problema brasileiro.
Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado).
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