O significado político da vitória da direita na eleição municipal
Este artigo apresenta uma tese e duas hipóteses sobre o resultado da eleição municipal recém-terminada e sua relação com o quadro político mais amplo do país. A tese, contrária a muitas interpretações acerca do significado da mensagem que saiu das urnas, é que o apurado no escrutínio revelou a persistência da sensibilidade ideológica de direita predominando no país e que o bolsonarismo segue na liderança objetiva e subjetiva deste campo político-ideológico. A primeira hipótese é que o ex-presidente Jair Bolsonaro, mesmo estando inelegível e talvez até preso, será um ator central na sucessão presidencial de 2026. A segunda hipótese é que — a despeito de não ser fácil nem provável surgir uma força política com pretensões presidenciais fora da polarização lulopetismo/bolsonarismo — o esgarçamento programático do modelo baseado na combinação de rentismo para ricos e para pobres (as bolsas e os auxílios de valores baixíssimos), sob o financiamento do extrativismo praticado pelas forças da polarização, com pequenas diferenças, abre o flanco discursivo e imaginativo para outsiders, como vimos no caso do município de São Paulo nesta eleição.
Em primeiro lugar, é preciso distinguir o que ocorreu nas eleições e o que se alterou antes delas. O crescimento do número de prefeituras de alguns partidos — com grande destaque para o PSD, mas também para outros, como o PT — aconteceu antes das eleições. Essas mudanças devem ser avaliadas a partir de critérios diferentes. Um partido usa recursos distintos para atrair prefeitos ao longo do mandato e para ganhar eleições. Quando se muda o foco para estas, o PSD não teve o resultado que os números agregados (sem distinguir o antes e o depois da eleição) sugerem. Já o PL de Bolsonaro cresceu muito. Isso foi especialmente relevante nos municípios mais populosos. Mesmo quando no final não elegeu os prefeitos, o PL foi a mais segundos turnos que qualquer outro partido, o que mostra a sua capilaridade. O fato de ter se consolidado nos municípios mais populosos revela ainda outro aspecto: as eleições para o PL foram mais ideológicas. Seu eleitorado votou em uma linha política com demarcação mais clara.
Nos municípios com mais de 200 mil eleitores, onde há a possibilidade de a disputa ir para o segundo turno, o PL foi o partido com o melhor desempenho, disparado na frente. Em 2020, o partido elegeu neste universo apenas dois prefeitos. E agora, em 2024, somou 16 prefeitos eleitos. O segundo colocado neste ranking específico foi o PSD, que em 2020 elegeu 11 prefeitos e nesta eleição subiu para 15. O União Brasil — criado em 2021 com a fusão do PSL, partido pelo qual Bolsonaro se elegeu presidente em 2018, e do DEM — passou de 12 para 14 prefeitos. Já o PP elevou de oito para 11 o número de prefeitos eleitos, enquanto o Republicanos, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, dobrou de quatro para oito as prefeituras sob o seu controle. O PT, o único partido do campo da esquerda que experimentou uma variação positiva, passou de quatro prefeitos eleitos em 2020 para seis no pleito deste ano. O MDB e o PSDB, respectivamente, declinaram de 17 prefeitos eleitos em 2020 para 12 e cinco nesta eleição.
Um segundo aspecto importante a considerar diz respeito às coligações nos municípios mais populosos. Muitos partidos tiveram bom resultado eleitoral porque integraram coligações amplas (pelo menos quando se tratava de reeleição), mas o PL se saiu bem em municípios populosos com coligações pequenas — às vezes, vejam só, coligado apenas com o Partido Novo ou com este último e mais um ou dois partidos. E, ainda mais interessante, com candidaturas de “bolsonaristas raiz”, quase que emulando a situação das eleições de governadores em 2018, em que vários foram eleitos só por serem os nomes mais bolsonaristas da urna. Parece um sinal muito claro da força e da resiliência políticas do bolsonarismo, pois as eleições municipais geralmente são moduladas por temas e questões menos afeitas aos contrastes ideológicos, como acontece nas eleições presidenciais.
No outro lado do espectro eleitoral, o lulopetismo não obteve um desempenho à altura de um grupo político que comanda o governo central. Na contramão dos resultados do PL bolsonarista, o PT apresentou dificuldades nos grandes municípios, só elegendo um prefeito de capital, o de Fortaleza, numa disputa renhida, voto a voto, com um jovem “bolsonarista raiz”. Num pleito no qual a máquina estadual comandada pelo PT participou ativamente e em um dos poucos palanques que o presidente Lula compareceu. Concorreu para o quadro negativo eleitoral do petismo nesta eleição um governo, o terceiro de Lula, que parece sem vigor e precocemente envelhecido. Sintoma disso foi a maneira como se deu a derrota do partido em São Paulo e em Belo Horizonte, capitais dos estados mais importantes do país do ponto de vista eleitoral. Outro fato digno de nota, embora com um peso menor, foi o avanço do PL bolsonarista em alguns espaços do Nordeste, uma região que tem sido refratária à sua presença significativa, em boa medida por causa da influência do lulopetismo.
Embora o resultado das eleições municipais tenha impacto limitado sobre o processo eleitoral presidencial, ele indica alguns fatores que concorrem para os cálculos e as decisões dos grupos políticos relevantes, tendo em vista o pleito de 2026. Um deles, talvez o mais importante, seja o de projetar o comportamento de Bolsonaro e de sua base social e ideológica diante de sua impossibilidade de se candidatar por causa da inelegibilidade — cuja probabilidade de reversão, hoje, é nula, acrescida da possibilidade de prisão. Num cenário como este, as expectativas acerca da indicação do nome que representará esse grupo têm peso especial. Bolsonaro já deu mostras suficientes de que não é um grande estrategista, muito ao contrário, mas que possui espírito de sobrevivência. Em um aspecto parece se comportar de maneira similar a Lula, seu principal concorrente: dá a impressão de preferir não correr o risco de perder o domínio em seu campo político-ideológico a perder a eleição geral. Sendo assim, a tendência de escolher um candidato sobre o qual tenha estrito controle é alta.
A busca pelo representante do centro moderado
No campo da direita há hoje três subgrupos em ação. O de Bolsonaro, ainda indefinido porque refém da decisão pessoal do líder, que é, como sabemos, uma personalidade ensimesmada e errática; o dos governadores em segundo mandato e com governos bem avaliados, como Ronaldo Caiado (Goiás), Romeu Zema (Minas Gerais) e Ratinho Júnior (Paraná); e o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, um bolsonarista dividido entre a lealdade ao chefe do grupo de onde emergiu e a autonomia que o cargo de governador do estado mais importante do país, econômica e eleitoralmente, acaba por suscitar. Neste segundo diapasão, tem ainda o desejo dos liberais órfãos da quase morte do PSDB, que cortejam e estimulam Tarcísio a representar o “centro moderado”, nome dado ao anseio por uma direita não bolsonarista. Mas o governador parece saber que sem o apoio de Bolsonaro, hoje difícil de ocorrer, abrir mão da disputa da reeleição ao Palácio Bandeirantes seria uma jogada altamente arriscada. E correr riscos não parece ser o traço mais característico do ex-ministro de Infraestrutura.
O lado lulopetista não se definirá em resposta às decisões da direita, mas levará em alta consideração os passos dados no campo adversário, até porque hoje as condições eleitorais derivadas de ser governo não permitem antever e sopesar com clareza os benefícios e os ônus desta conjuntura. A avaliação do governo tem oscilado e a fórmula de Lula operar a coalizão governista parece não surtir os efeitos de outrora. A possibilidade de o presidente mudar de orientação no restante de seu mandato é bastante baixa, seja por força da maneira de ser e de pensar que sempre cultivou na vida, seja pela natureza da coalizão político-partidária a que ele passivamente se adaptou. A chave mestra de sua postura é o papel prioritário que ela confere à cooptação. Começam na sedução e terminam na troca. Quase todos recebem benefícios, reais ou imaginários, sempre extremamente desiguais. Dos envolvidos se espera que se acomodem e ofereçam algo em troca. É a atualização, em moldes lulopetistas, do velho regime brasileiro de que é dando que se recebe.
Todas estas projeções de movimentos estão circunscritas a uma alteração relativamente profunda, porém lenta e muitas vezes imperceptível a “olho nu”, na consciência média do país. Um de seus traços mais importantes é de natureza religiosa: a substituição da teodiceia do sofrimento, tipicamente católica, por uma teologia da prosperidade e da secessão, de índole protestante. Essa mudança, por sua vez, se liga a uma dimensão que muitas vezes fica de fora da análise do processo político-eleitoral, mas que agora parece ter escalado uma posição que precisa ser equacionada nos esquemas interpretativos do comportamento eleitoral. Refiro-me à dimensão dos custos socioeconômicos da crise do modelo rentista-assistencialista que tem nos governado na Nova República.
O Estado brasileiro tem sido financiado pelo extrativismo agropastoril e mineral. Através dele organiza o rentismo financeiro para os ricos e o rentismo assistencialista para os pobres. É um regime que deixa de fora de sua beneficência uma parcela da sociedade, particularmente quando o crescimento econômico esporádico e baixo do modelo não acontece. E como depois de ter sido colocado no orçamento pelo lulismo, os pobres continuaram nele no governo Bolsonaro — que chegou até a turbinar a operação assistencialista, sempre por conveniências políticas, manipulando as bolsas e os auxílios do pobrismo petista —, a distinção socioeconômica ficou muito tênue, fazendo com que a diferenciação política dos agentes do mesmo modelo migrasse para outra dimensão: a cultural.
Como no fundo não há dissenso de projeto de economia política, mas uma briga entre duas “tribos” e seus líderes, o consenso expresso pelas duas vozes contrastantes em meio ao conflito eleitoral se camufla, dando a impressão de polarização. Ela, entretanto, aparece como realidade somente nas guerras culturais da direita e na política identitária da esquerda, nas quais os que se apresentam como representantes dos dois lados conseguem mostrar, de fato, alguma diferença. O Deus, a pátria e a família defendidos pelo lado bolsonarista contrastam com o discurso dos direitos dos identitarismos minoritários, que importamos dos Estados Unidos, abraçado pelo lulopetismo e seus satélites do tipo Psol. Como os dois lados convergem na economia e no assistencialismo, mas divergem na mensagem “espiritual”, falar em candidatura de centro é, paradoxalmente, ilógico. E, por isso, também de certa maneira paradoxal, as chances de aparecer um outsider com discurso antissistema que atraia a atenção de parte do eleitorado se torna passível de acontecer.
O rechaço ao que consideram o Brasil dos encostados
O bolsonarismo tem tido como base três grupos que, juntos, formam uma minoria cujo tamanho quase a torna uma maioria: o movimento evangélico, o universo do agro e o aparato da área de segurança pública. Eles são espiritualmente coesos. Compartilham o rechaço ao que consideram o Brasil dos encostados. E é a partir dessa cunha que podem se abrir a uma pregação de figuras no estilo de Pablo Marçal. Por quê? Porque na prática o governo Bolsonaro deixou sem resposta o anseio mais legítimo e importante dessa sua base, que é a aspiração de se construir, através da cultura do empreendedorismo, como agentes socioeconômicos. E como o governo Bolsonaro em momento algum dirigiu esforços na direção da construção de um capitalismo popular, esse vácuo pode ser ocupado por quem se disponha a tratar discursivamente dele. O fascínio exercido pela ideia da autoconstrução individual não deve ser percebido apenas como mais uma manifestação de captura e rendição ideológica, como insistem em afirmar os progressistas, mas pode também indicar a adesão a uma moralidade laboral que dispensa a hierarquia do trabalho supervisionado por patrões e seus gerentes.
Diante desse quadro geral e sua disposição das forças políticas, quais as tendências eleitorais em 2026? Se Bolsonaro pudesse ser candidato, o seria em condições melhores que em 2022, quando disputou como incumbente de um governo recém-saído da pandemia. Ele é o nome da direita que mais se beneficia da polarização com o lulopetismo. Este, por sua vez, também se beneficiará da polarização, embora ostente alguma dependência dos passos da direita para organizar a sua estratégia. O pior cenário para o PT seria o apoio de Bolsonaro a Tarcísio, hoje ainda improvável. O melhor para o lulopetismo na contenda presidencial parece ser a escolha, por exemplo, de um dos filhos de Bolsonaro para representar o campo bolsonarista. Mas uma dificuldade adicional para Lula e o PT relaciona-se ao fato de os partidos da direita fisiológica, chamados eufemisticamente pela imprensa de “Centrão”, terem percebido o aumento da disposição ideológica de uma grande parte do eleitorado, sensibilizado pelas guerras culturais, e terem se aberto também a um discurso e a uma prática mais identificados com o bolsonarismo.
A hipótese mais improvável é a emergência de um “aventureiro” que consiga se articular à sensibilidade de direita hoje predominante. As chances dessa alternativa poderão aumentar se Bolsonaro conduzir o processo de escolha de seu apoiado com os métodos atrapalhados que lhe são característicos — o caso do apoio, cheio de ambiguidades, à reeleição do prefeito de São Paulo neste ano foi mais um exemplo notório das inseguranças do principal líder da direita. O campo progressista, liderado por Lula e pelo PT, precisa, antes de tudo, reconhecer que a eleição de 2022 se configurou muito mais como uma derrota de Bolsonaro do que como uma vitória da esquerda. E, neste sentido, apesar de todas as enormes diferenças entre a situação brasileira e o contexto dos Estados Unidos, a recente eleição de Trump vale como espelho. A esta altura do jogo, Lula parece cingido a apostar na polarização. Mas uma estratégia ousada, tanto no governo como na dinâmica eleitoral, talvez pudesse diminuir a dependência dos erros do principal adversário como meio para tentar se manter no poder.
Seja qual for o desfecho do processo que redundará na eleição presidencial de 2026, nos próximos dois anos a cena política nacional estará sob o imperativo do segundo momento da grande onda de direita que se abateu sobre o Brasil a partir de junho de 2013. A primeira fase desse processo chegou ao ápice com a incrível vitória de Bolsonaro em 2018. A segunda etapa se iniciou no seu governo e ainda está em curso. Esse momento da história brasileira, desde sempre bastante acidentada, tem mostrado que o novo e o surpreendente são possíveis. Mas é inegável que o atual ciclo vem apontando menos para a possibilidade de abertura da história.
Agradeço os comentários e sugestões de meu amigo e colega Márcio Rabat, também cientista político, sem, obviamente, imputar a ele qualquer responsabilidade pelos argumentos apresentados.
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