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Interesse Nacional
10 outubro 2018

Os Desafios da implementação de reformas anticorrupção no Brasil

Introdução
A corrupção retira recursos do Estado, afetando políticas públicas em desfavor dos que mais necessitam de proteção. Não apenas a função social do Estado sofre com a corrupção. Ela também prejudica a economia, deturpando o ambiente de negócios, premiando ineficiência, e prejudicando a concorrência e a busca por produtividade e inovação. Também sofre a política – dados indicam que a queda recente no apoio à democracia é concomitante com a explosão de casos de grande corrupção, em particular na América Latina.
Mesmo a segurança e a paz são ameaçadas pela corrupção. O Conselho de Segurança das Nações Unidas fez em 2018 sua primeira sessão, na história, sobre as conexões entre corrupção e conflitos. Na ocasião, o secretário-geral da ONU, António Guterres, vinculou a corrupção a formas de instabilidade e violência, tais como tráfico ilegal de armas, drogas e pessoas. Guterres ressaltou pesquisas conduzidas pela Unodc – braço das Nações Unidas para Drogas e Crimes – as quais apontam que o pagamento de suborno a funcionários públicos é particularmente alto em áreas afetadas por conflitos[1].
Dado o impacto e a gravidade da corrupção em várias áreas da vida social, econômica e política dos diversos países e no mundo, impõe-se o questionamento: como controlar esse fenômeno? O que já se tentou no mundo e no Brasil? A partir dessas experiências, o novo governo brasileiro, responsável por conduzir os destinos do país entre 2019 e 2022, tem condições de implementar uma agenda de reformas de modo a aprimorar de maneira vigorosa a prevenção, detecção e o combate à corrupção?
O presente artigo busca explorar essas questões.
Começamos com uma breve descrição do fenômeno da corrupção, apresentando três tipologias. Em seguida, apresentamos brevemente experiências de reforma anticorrupção em cinco territórios (Grécia, Iraque, México, Ucrânia e União Europeia). Na seção seguinte, apresentamos a construção das Novas Medidas contra a Corrupção, pacote de 70 propostas construídas por diversos profissionais no Brasil, pessoas e entidades com distintas visões e formações. Por fim, apresentamos possíveis estratégias para impulsionar a discussão dessa reforma anticorrupção no Congresso Nacional.


  1. Definições de corrupção: pequena, grande e política

A Transparência Internacional define corrupção como “o abuso do poder confiado para ganhos privados”[2]. Isto é, a corrupção ocorre quando alguém (funcionário público ou não) abusa de um poder que lhe foi dado para auferir ganhos pessoais. Existem, ainda, classificações deste fenômeno.
A pequena corrupção (“petty corruption”) é definida como o abuso cotidiano de poder por parte de funcionários públicos em suas interações com cidadãos comuns, na tentativa destes de acessar serviços públicos em lugares como hospitais, escolas, delegacias de polícia ou outros órgãos e equipamentos públicos[3]. No fenômeno da pequena corrupção, em geral as vantagens auferidas pelo servidor público são menos vultuosas, e os ganhos do corruptor são imediatos e não recorrentes, como a priorização, naquela circunstância e data, em uma fila de atendimento.
Já a grande corrupção envolve atores bem diferentes. Ela é definida como o abuso de poder em alto nível que beneficia poucos às custas de muitos e causa danos graves e difusos a diversos indivíduos e à sociedade[4]. Os crimes da grande corrupção envolvem altas quantias e geralmente permanecem impunes. Aqui, o fenômeno se refere a grandes obras, grandes empresas, movimentações milionárias ou bilionárias, com uso de empresas offshore e sofisticados mecanismos de lavagem de dinheiro.
Pode-se categorizar, ainda, a corrupção como corrupção política. Esta seria a manipulação de políticas públicas, instituições e regras de procedimento na alocação de recursos e financiamento por parte de lideranças políticas e tomadores de decisão, os quais abusam de suas posições para sustentar seu poder, status e riqueza[5].
Por evidente, atos de corrupção específicos podem se enquadrar em mais de uma das categorias acima. Tome-se, por exemplo, a corrupção sistêmica revelada pelas recentes operações e investigações no Brasil, com destaque para a Lava Jato: revelou-se ali um esquema que reúne elementos da grande corrupção e da corrupção política.
Em síntese, o esquema identificado pelos investigadores na Petrobras, por exemplo, envolvia partidos, altas lideranças políticas, altos funcionários da estatal, grandes empreiteiras e profissionais da lavagem de dinheiro. E consistia em favorecer empresas, por meio de tomadores de decisão em alta posição na estatal. As empresas devolviam o favorecimento por meio de recursos, destinados tanto a políticos e a partidos políticos responsáveis pela indicação daquele alto funcionário da estatal como aos próprios funcionários. De forma a fazer chegar ao destinatário esse recurso indevido, empregavam-se doleiros e outros serviços de camuflagem de origem e destino do dinheiro.
Nesse esquema tem-se corrupção política e grande corrupção. Uma porque manipula procedimentos e políticas por meio de tomada de decisão que favorece lideranças políticas e altos funcionários de estatais, que se valem de suas posições para benefícios próprios. O líder político abusa de sua posição para influenciar na nomeação de altos funcionários que atendam a seus interesses. O alto funcionário nomeado abusa de sua posição para direcionar licitações e compras públicas, favorecendo empresas que lhe darão retorno. E, nesse caso, como se trata de quantias vultosas e de esquemas que favorecem poucos às custas de muitos, pode-se dizer que se trata de “grande corrupção”.
Mas, e a “petty corruption”? Como ela se manifesta e é percebida no Brasil? O Barômetro Global da Corrupção, maior pesquisa realizada no mundo sobre experiências pessoais com o fenômeno da corrupção, trouxe dados interessantes em relação à pequena corrupção no Brasil.
A pesquisa mais recente, publicada em outubro de 2017, entrevistou 22 mil pessoas em 20 países da América Latina e do Caribe. Especificamente no item sobre experiências de corrupção para acessar serviços públicos, apenas 11% dos brasileiros afirmaram que, sim, tiveram que pagar propina ou dar algum benefício indevido a um funcionário para ter acesso a serviços públicos[6]. É a segunda menor taxa da América Latina (à frente, apenas da pequena Trinidad e Tobago, com 6%). Isto é, 89% dos brasileiros – a base é a população de entrevistados que tiveram acesso a serviços públicos nos últimos 12 meses – puderam acessar serviços públicos sem precisar pagar propina.
A partir das categorias de corrupção aqui descritas e da percepção de que a grande corrupção e a corrupção política são fenômenos muito presentes no Brasil e altamente deletérios à nossa política e à nossa economia – muito mais do que a pequena corrupção – tem-se que é urgente a elaboração e implementação de políticas públicas robustas, que venham a promover adequadamente a prevenção e o combate à corrupção no Brasil.
Uma vez que o problema envolve formas de controlar não a pequena quantia ao guarda para evitar uma multa de trânsito, mas sim os abusos do alto poder político e econômico, resulta que é crucial desenhar políticas públicas vigorosas, ancoradas em leis e instituições fortes e com adequado “enforcement”. Políticas, normas e instituições que possam resistir à força de seus oponentes.


  1. Reformas anticorrupção ao redor
    do mundo

A necessidade de implementação de uma agenda anticorrupção nos leva à pergunta: como avançar nessa agenda legislativa? Quais fatores bloqueiam ou facilitam a aprovação de pacotes de reforma institucional na direção de Estados mais responsáveis e responsivos e de sociedades mais fortes e livres para pressionar seus representantes? Se olharmos para as experiências recentes de aprovação de pacotes de legislação anticorrupção, podemos aproveitá-las para aprender quais variáveis precisamos levar em conta nessa empreitada.
O estudo produzido pela Transparência Internacional sobre o assunto – Overview of National Approaches to Anti-Corruption Packages[7] – trata de cinco tentativas de reformas anticorrupção: México, Ucrânia, Grécia, Iraque e União Europeia. Abordar o problema da corrupção pela via de reformas sistêmicas foi a saída buscada por esses cinco territórios, com graus diferentes de sucesso. Todos adotaram a estratégia de enfrentar o problema através de pacotes de reformas amplos (tocando tanto na corrupção pequena, como na grande na e política). Esses pacotes são muito mais do que simplesmente legislações anticorrupção, podendo ser considerados como parte de uma ampla política pública anticorrupção, que objetiva mudar a estrutura legal, tocando em pontos econômicos, políticos e institucionais.[8]
De acordo com o Banco Mundial[9], esse tipo de abordagem – reformas através de pacotes anticorrupção – deve incluir ao menos referência a sete indicadores. No primeiro, políticas econômicas, deve-se coibir o uso de regulações que proveem oportunidades para a corrupção, como a transparência nos processos de privatização. No indicador sociedade civil, os cidadãos devem ser chamados a ser parte do processo, com acesso a informações que permitam a sua participação empoderada e plena. A liderança política é outro fator-chave, que deve demonstrar seu comprometimento com a pauta anticorrupção através de regulação de conflitos de interesse e de transparência financeira. Os servidores públicos devem ser nomeados meritocraticamente, com sistemas de monitoramento de desempenho e devolutivas dos usuários de serviços públicos. Controles financeiros devem ser fortalecidos, com sistemas de contratações competitivos, públicos, e um sistema de controle externo fortalecido. Ainda são necessárias reformas institucionais, que incluam setores-chave como educação e saúde. E, claro, medidas legais e judiciais, para fortalecer a independência necessária nos julgamentos dos casos de corrupção e medidas para que as próprias instituições de controle sejam submetidas a freios e contrapesos. Isso significa que estas últimas medidas, apesar de serem o que primeiro nos vem à cabeça quando pensamos em medidas anticorrupção, são apenas a ponta de uma abordagem ampla. Judiciário independente e instituições de controle fortalecidas são condições necessárias, mas não suficientes para que um pacote de reformas tenha, de fato, uma abordagem holística.
Dessa forma, fica claro que o debate sobre reformas anticorrupção não pode ficar completamente concentrado em medidas punitivas. Elas são importantes, sem dúvida, mas estão embebidas em um contexto social que toma a corrupção como a norma – e não como um problema. As reformas também têm que abordar esse ponto. No mais recente encontro da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) sobre essa temática – Global Anti-Corruption and Integrity Forum – foi ressaltado o enorme problema em se colocar como ator central de reformas anticorrupção “super-humanos” éticos.[10] Nas reformas, não podemos contar, ainda que bem-vindos, com funcionários e cidadãos super éticos e íntegros. É preciso estarmos atentos ao papel da ética comportamental e como resultados de experimentos e pesquisas podem contribuir para o desenho de políticas públicas anticorrupção – fatores como sanções, linguagem, pressão e recompensas.
Voltando aos cinco territórios em questão, alguns fatores foram essenciais para o sucesso das reformas pretendidas: liderança política, coalizões fortes que pressionaram o processo, impedindo o abandono das reformas e uma abordagem baseada em dados – que se preocupa em entender como a corrupção ocorre e em quais pontos é necessário mudar. No México e na Ucrânia, foi essencial o papel forte da sociedade civil local em iniciar o processo e reforçar a vontade política quando esta ameaçava enfraquecer. Do outro lado, na Grécia e na União Europeia, com a fraca adesão e participação da sociedade civil, as reformas foram apenas parcialmente bem-sucedidas. No Iraque, manobras políticas e a captura das reformas para outros propósitos políticos impediram o avanço do pacote.
A forte participação da sociedade civil nos esforços para se sair de ciclos viciosos de corrupção também é ressaltada pela pesquisadora Alina Mungiu-Pippidi.[11] De acordo com ela, as reformas anticorrupção levadas a cabo nos países em desenvolvimento em geral falham porque não são reformas políticas. Falham em perceber que a corrupção é parte de uma certa forma de governar, de uma certa organização social, viciada em regras não universalistas e formas particularistas de resolução de conflitos. Especialmente nesses países, é preciso atacar as causas da corrupção, que estão intrinsecamente conectadas com a distribuição de poder e de bens públicos de forma particularizada.
Nesse cenário, a autora propõe quatro eixos necessários para que as reformas contra o particularismo sejam bem-sucedidas: i) a formação de uma coalizão forte, envolvendo diversos atores da sociedade que perdem com a corrupção e também os atores políticos – qualquer reforma ou mudança estrutural funciona melhor quando os grupos atingidos têm consciência e veem as consequências negativas da corrupção –; ii) a institucionalização de normas universalistas, sendo preciso acordar critérios mínimos de justiça e integridade, amplamente debatidos e com decisão consensual; iii) estabelecer uma armadura institucional que pode ser usada pela sociedade civil para conseguir manter a supervisão sobre os detentores do poder – aqui, reformas institucionais envolvendo a publicidade de bens e interesses de políticos, funcionários públicos e magistrados, por exemplo; e iv) por último, mas não menos importante, é necessário criar incentivos para que os atores se comportem de maneira “limpa”, através de forte monitoramento público, especialmente durante períodos eleitorais.
O período vivido pelo Brasil agora, com ênfase na ruptura social e política causada pela Lava Jato, oferece uma janela de oportunidades para combatermos o particularismo e levarmos a sério a tarefa de uma reforma anticorrupção abrangente. Com essa preocupação em vista, setores da sociedade civil criaram um amplo pacote anticorrupção que fez parte dos debates eleitorais de 2018 e deverá pautar a atuação do Congresso Nacional na próxima legislatura em relação a essa agenda de reformas institucionais e normativas.

  1. As novas medidas contra a corrupção

As Novas Medidas contra a Corrupção são um conjunto de 70 projetos de lei, propostas de emenda constitucional e resoluções que oferece uma resposta sistêmica para a corrupção no Brasil – segundo a Transparência Internacional é o maior pacote de medidas anticorrupção já produzido no mundo.[12]
Porém, antes que fossem organizadas como um pacote de medidas, fez-se a avaliação do quadro normativo e institucional brasileiro para que ficasse claro se o caminho mais adequado a seguir seria o de novos instrumentos legais, particularmente considerando as leis aprovadas na última década, voltadas ao combate à corrupção, transparência e inelegibilidades. Embora não tenham tramitado no Congresso Nacional de forma unificada, foram importantes inovações jurídicas, esparsamente aprovadas, cujos efeitos são notados diretamente nos dias de hoje.
Destacam-se a Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013), que regulamentou a versão atual da colaboração premiada; a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010), que vem impedindo a participação nas eleições de condenados por alguns crimes em instância colegiada; a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) que estabelece a possibilidade de responsabilização de pessoas jurídicas nos âmbitos civil e administrativo; e a Lei de Acesso à informação (Lei nº 12.527/2011), que cria a transparência ativa e passiva para órgãos públicos. Como se percebe, “múltiplas são as legislações adotadas ao longo dos últimos anos que têm impacto no combate à corrupção. Essa multiplicidade, entretanto, não é sinônimo de eficácia”.[13]
As legislações mais relevantes no combate à corrupção vêm sendo testadas nos tribunais e na aplicação diária pelos órgãos de investigação, levando-nos à percepção que é necessária uma nova geração de normas. Por um lado, o próprio sucesso de regras matriciais como a de acesso à informação criou a perspectiva de que outros órgãos passem a se pautar pela transparência ampla sobre a atuação de interesse público. Por outro lado, percebeu-se que ainda havia inúmeras áreas de intersecção das esferas pública e privada que estavam fora do alcance de medidas de prevenção da corrupção, como as regras de financiamento político e o lobby, para citar apenas duas. Mas, não apenas nos pontos de imbricação entre público e privado, como também o universo exclusivamente privado, tradicionalmente no Brasil deixado de fora dos olhares fiscalizadores do Estado, como a hipótese ainda não existente da corrupção praticada entre entes privados.
Partindo desse diagnóstico, a Transparência Internacional e as escolas de direito da Fundação Getulio Vargas buscaram construir as Novas Medidas contra a Corrupção desde um processo que incluísse a sociedade civil. O processo desenvolveu-se em cinco etapas:
Primeiramente, buscaram-se boas práticas e experiência inovadoras em países com bom retrospecto no combate à corrupção, bem como o guia fornecido pelas principais convenções internacionais anticorrupção das quais o Brasil faz parte. Já na segunda etapa, foram convidados mais de 300 órgãos públicos, organizações não governamentais, instituições educacionais, instituições religiosas, associações comerciais e conselhos de classe. O propósito era que as instituições enviassem propostas legislativas ou ideias que pudessem se converter em bons anteprojetos de lei.
Na terceira etapa foram convidados os principais especialistas em cada um dos subtemas abarcados nas propostas inicialmente apresentadas pelas instituições. Ao final, foram mais de 200 colaboradores especialistas, entre advogados, juízes, procuradores, servidores públicos e acadêmicos, responsáveis por transformar as ideias apresentadas em proposições legislativas. A quarta etapa buscou tanto qualificar tecnicamente as propostas – ou vetá-las, quando o caso – como também passar cada proposta pelo crivo e pela opinião de outro especialista na matéria em questão. A revisão por pares – dois revisores ou mais por cada minuta – deu pluralidade ao conjunto de propostas e eliminou algumas propostas controversas, sobre as quais concluiu-se que poderiam suprimir direitos.
A quinta e última etapa foi uma consulta pública, em portal adequado ao processo de edição de projetos de lei, onde quase mil pessoas manifestaram-se pela supressão, adição, alteração ou concordância com os anteprojetos de lei. Esta consulta foi realizada por meio da plataforma Wikilegis, no site http://novasmedidas.transparenciainternacional.org.br. Ao final de todas as etapas, passaram a compor o pacote 70 medidas, divididas em 12 blocos temáticos.[14]
As Novas Medidas encaram a corrupção como um problema social sistêmico, multifacetado e dinâmico, que deve ser tratado com um marco legal adequado, políticas públicas e participação social em diferentes frentes e de modo permanente. Para que o esforço anticorrupção feito por meio desta iniciativa possa prosseguir de modo institucional, as Novas Medidas propõem a criação de um Sistema Nacional de Combate à Corrupção e Controle Social, além de um Conselho de Estado, que permitirão a contínua formulação de políticas públicas anticorrupção, com a essencial participação da sociedade. Some-se a isso que as contratações públicas de todo país, área sensível à prática de corrupção, passarão a ter seus dados reunidos em uma única plataforma eletrônica acessível a todo cidadão, ampliando não só a competitividade, mas também a transparência e o controle social.
A participação social é, aliás, um ponto forte do pacote. A criação de leis de iniciativa popular é facilitada, desenvolve-se o processo legislativo participativo, amplia-se o acesso à informação e cria-se uma política nacional de dados abertos. Também são avançados canais diretos de denúncia e controle social, por meio da proteção do reportante de suspeita de irregularidades (whistleblower) e do aperfeiçoamento da ação popular.
São oferecidas também propostas concretas no sentido de prevenir a corrupção. A partir da compreensão de que o excesso de entraves multiplica as oportunidades para o desenvolvimento de esquemas de corrupção, cria-se uma política de desburocratização do Estado. Pretende-se também limitar a circulação de dinheiro em espécie¸ já que esse tipo de operação – não rastreável – é utilizada com frequência para o pagamento de propina. Aumentar a transparência do beneficiário final é outra forma de se eliminar os mecanismos, como as empresas-laranja, por meio dos quais aqueles esquemas se materializam.
Um dos principais canais de participação da sociedade no governo, aliás, são os partidos políticos. Contudo, os sistemas partidário e eleitoral têm tido sua legitimidade erodida pela corrupção, minando a representatividade. A fim de contribuir para maior integridade nessas áreas, são propostas medidas que promovem transparência e responsabilidade dos partidos, assim como democracia partidária. Entre as sugestões, está a responsabilização dos partidos políticos que se envolvem com corrupção, de modo similar ao que acontece, hoje, em relação a outras pessoas jurídicas de direito privado. São feitas também alterações na lei eleitoral para torná-la mais efetiva, deveres da lei de lavagem são estendidos a partidos políticos e a prática do caixa dois é criminalizada de modo mais amplo e efetivo do que na legislação atual.
Além disso, a iniciativa amplia a responsabilização dos agentes públicos. Nesse aspecto, promove uma redução drástica do foro privilegiado, que acaba servindo de proteção a poderosos que se envolvem em crimes. Essa tem sido uma das principais reivindicações da sociedade nos últimos anos. Diante da evolução histórica e amadurecimento da democracia brasileira, propõe-se a extinção da imunidade parlamentar contra prisão, que pode ser deturpada, como já foi, numa proteção à corrupção institucionalizada. No atual contexto, o tratamento privilegiado não se justifica mais, devendo imperar a igualdade. Ainda, promove-se a criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos, medida recomendada por convenções internacionais da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos.
Ao mesmo tempo em que se amplia a possibilidade de responsabilização de agentes públicos corruptos, são estabelecidas medidas de integridade no setor privado. Para promover maior integridade no mercado, propõe-se a regulamentação do lobby. Além disso, são criados incentivos para programas de compliance, os quais passam a ser exigidos de empresas que pretendam celebrar contratos públicos de valor superior a R$ 30 milhões, o que é uma proposta que nasceu no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), a qual conta com mais de 80 órgãos e entidades participantes. Permite-se também que empresas resgatem bônus e incentivos pagos a executivos que venham a se envolver com corrupção. Reconhecendo que corrupção pública e privada têm importante relação, pessoas físicas e jurídicas passam a ser passíveis de punição por atos de corrupção privada.
Outra pauta relevante da sociedade é a melhoria dos critérios de seleção de agentes públicos, seja para garantir maior imparcialidade e independência em relação ao poder político, seja para proporcionar melhores quadros de servidores, seja para vedar o ingresso de fichas sujas no serviço público em geral. Dentro desse escopo, propõem-se critérios para seleção de ministros dos Tribunais de Contas e se promove maior transparência na escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, abrindo-se a possibilidade de que a sociedade avalie os nomes antes de sua nomeação. Na mesma linha, aperfeiçoa-se a escolha de juízes de Tribunais Eleitorais. Estabelece-se um processo seletivo para a escolha de ocupantes de cargos em comissão e se estende a Lei da Ficha Limpa para todo o serviço público. São ampliadas também as garantias de imparcialidade e independência de órgãos bastante relevantes no combate à corrupção, a Controladoria-Geral da União e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
A iniciativa aprimora também medidas de investigação. Como o dinheiro da corrupção cada vez mais é lavado através de fronteiras, são fortalecidos instrumentos de cooperação jurídica internacional e se facilita a criação de Equipes Conjuntas de Investigação. Sugere-se a introdução em nosso Direito da unexplained wealth order, que é um procedimento judicial em que se requer explicação sobre possível riqueza incompatível na posse de Pessoa Politicamente Exposta (PEPs) ou de pessoas vinculadas a atividades criminosas. São aperfeiçoados, ainda, os acordos de leniência da Lei Anticorrupção e da Lei de Improbidade, um instrumento de investigação que se revelou da maior importância em operações recentes. É resolvido também um problema enfrentado em diversas investigações quando surgem evidências do envolvimento nos crimes de pessoas que têm foro privilegiado. Hoje, as investigações são suspensas e ficam sujeitas a futuro desmembramento pelo Supremo Tribunal Federal ou Tribunal competente, o que pode atrasar por meses ou anos a continuidade da apuração na primeira instância. Propõe-se, seguindo a lógica da jurisprudência do próprio Supremo, que as investigações sigam em relação às pessoas que não têm foro especial, remetendo-se cópia dos autos para o Tribunal, que poderá, se for o caso, avocar os autos.
A impunidade e os privilégios de poderosos são um fenômeno largamente reconhecido pela literatura especializada brasileira e diversos autores a apontam como uma das principais causas da corrupção sistêmica. Entre os fatores que contribuem para a impunidade está o assoberbamento de feitos criminais que poderiam ser arquivados, por ter menor perspectiva de resultado social útil, ou ser objeto de acordo. Propõem-se, assim, a ampliação da possibilidade de arquivamento, com o devido controle, e a possibilidade de acordo penal, de medidas que contribuem também para evitar a resposta penal quando é desnecessária e, inclusive, para restringir o encarceramento, ampliando-se a possibilidade de prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica.


  1. Os caminhos para a deliberação  das Novas Medidas pelo
    Congresso Nacional

Superada a etapa pré-legislativa, o pacote de novas medidas será apresentado aos parlamentares. Há diversas formas de conduzir a etapa de debates no Congresso Nacional, e as estratégias escolhidas podem influenciar tanto no tempo de tramitação quanto no conteúdo eventualmente aprovado.
A primeira questão a ser considerada é a forma de introduzir as medidas no processo legislativo. Para transformar os anteprojetos em projetos de lei, será necessário que sejam apresentados na Câmara dos Deputados por quem tenha a prerrogativa de iniciar o processo legislativo. Essa via poderia ser a iniciativa popular, mas dependeria do enorme esforço de coleta de assinaturas. Como o propósito é que na próxima legislatura o processo de debate e deliberação, a ser iniciado em 2019 avance desde o começo, outra opção deve ser buscada. Os projetos poderiam também iniciar sua formalização nas casas legislativas por meio das comissões de legislação participativa.
Além da via de iniciativa participativa de projetos de lei, poderiam ser tentados os caminhos de iniciativa parlamentar ou de comissões. No caso de que sejam iniciadas por parlamentares, as autorias das iniciativas poderiam ser tanto lideradas por diferentes autores, com boa reputação relacionada à agenda de combate à corrupção, quanto por um grupo pequeno de coautores para todas as medidas. A primeira opção – diversos iniciadores – traria incentivos aos autores e respectivos partidos para que direcionassem esforços pela aprovação, mas poderia fragmentar o pacote de modo que algumas iniciativas tramitassem mais rapidamente do que outras em razão do prestígio e da capacidade de articulação de alguns parlamentares.
Uma vez definida a autoria, a questão a ser considerada é a estratégia de tramitação. A primeira possibilidade é a tramitação do pacote de forma unificada. Esta opção tem a vantagem de possibilitar que uma única comissão especial da Câmara dos Deputados se debruce sobre o conteúdo e o analise de forma integrada, tratando as medidas como um pacote de reformas. Como resultado dos trabalhos da comissão, poderia haver um único projeto que unificasse as versões consolidadas das medidas após o debate na comissão, ou ainda um parecer único sobre todas. Mas, a opção pela tramitação em bloco elevaria o risco de que muitas medidas fossem rejeitadas.
Quando um conjunto de medidas legislativas é debatido em bloco, os parlamentares são direcionados a deliberar sobre a totalidade de projetos. Caso alguns projetos não sejam integralmente apoiados por parte dos partidos – o que pode ser reflexo de discordância ou de mera incompreensão –, haverá rejeição das partes em que não há acordo. Ademais, como se trata de um pacote muito extenso, ainda que muitos projetos não sejam aprovados, é possível que se entenda que ainda há um pacote de porte razoável, aumentando, assim, as possibilidades de rejeição.
Outra possibilidade seria buscar a tramitação das medidas de forma desagregada, e, assim, permitir que os projetos adquiram vida própria, de modo independente uns dos outros. Essa opção teria a grande vantagem de preservar os projetos que ainda não estiverem amadurecidos no debate político – e, portanto, prontos para a votação – para o momento certo. Neste contexto, o momento ideal de deliberação de cada projeto poderia ocorrer quando um fato notório ou uma notícia relevante sobre o tema do qual trata respectivo projeto ganhasse atenção nacional. O método também teria vulnerabilidades. A mais importante é que, ao ser desmembrado, o pacote perderia força política e poderia ter partes esquecidas ou logo arquivadas nas casas do Congresso Nacional.
Conclusão
Na sessão do Conselho de Segurança da ONU sobre as conexões entre corrupção e conflitos, em setembro de 2018, o secretário-geral da ONU, António Guterres, citou dados do Fórum Econômico Mundial, com estimativas de que a corrupção custa, globalmente, US$ 2,6 trilhões ao ano ou 5% do Produto Interno Bruto mundial, e ressaltou ainda que, segundo dados do Banco Mundial, empresas e indivíduos pagam anualmente mais de US$ 1 trilhão em suborno.
Mas, o impacto da corrupção, como se mencionou neste artigo, não se restringe às perdas econômicas. O papel do Estado como regulador e provedor de proteção social fica claramente disfuncional em contextos de corrupção. E toda essa disfuncionalidade, com relevantes perdas econômicas e sociais, afeta profundamente a confiança na democracia, chegando ao limite de fortalecer grupos que flertam abertamente com o autoritarismo.
Assim, a concertação política que vier a conduzir o Brasil a partir de janeiro de 2019 deve ter, na prevenção e no combate à corrupção, uma de suas agendas centrais. Caso mobilize capital político no esforço de aprovação de um pacote de reformas anticorrupção, o novo governo terá apoio popular na empreitada, além de contar com um conjunto já mobilizado de especialistas e entidades da sociedade civil que poderão fornecer subsídios ao debate no Parlamento. E, caso tenha êxito na aprovação de uma vigorosa reforma para prevenir e sancionar atos de corrupção, o novo governo liberará recursos do Estado e da iniciativa privada para promover a paz social e o desenvolvimento econômico.
A corrupção e seu combate levaram o Brasil a uma situação de profunda crise política e social. A frágil democracia brasileira também vem sofrendo pesadamente por conta dos crimes cometidos contra a administração pública e pelo vigoroso enfrentamento a essa corrupção empreendido por órgãos do sistema de Justiça, desarranjando o sistema político.
A agenda anticorrupção se impõe. Mas, desta vez, o novo governo vale-se da fortuna de ter à sua disposição conhecimentos e ferramentais. Vamos ver se terá a virtú.
[1]
“Pervasive corruption costs $2.6 trillion; disproportionately affects ‘poor and vulnerable’ says UN chief, disponível em https://news.un.org/en/story/2018/09/1018892
[2]
Transparency International – Anti-corruption Glossary: Corruption, disponível em https://www.transparency.org/glossary/term/corruption
[3]
Transparency International – Anti-corruption Glossary: Petty Corruption, disponível em https://www.transparency.org/glossary/term/petty_corruption
[4]
Transparency International – Anti-corruption Glossary: Grand Corruption, disponível em https://www.transparency.org/glossary/term/grand_corruption
[5]
Transparency International – Anti-corruption Glossary: Political Corruption, disponível em https://www.transparency.org/glossary/term/political_corruption
[6]
Brasileiro é quem menos paga ‘propinas do dia a dia’ na América Latina, diz ONG. Disponível em https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2017-10-09/brasileiro-menos-corrupto-latinos.html
[7]
OLDFIELD, Jackson. Overview of National Approaches to Anti-corruption Packages, 2017, disponível em <https://knowledgehub.transparency.org/helpdesk/overview-of-national-approaches-to-anti-corruption-packages> acesso em 14/09/2018.
[8]
Khan, M. H. 2006. Governance and Anti-Corruption Reforms in Developing Countries: Policies, Evidence and Ways Forward. G-24 Discussion Paper Series. United Nations Conference on Trade and Development. Acessado 9 Set. 2018 http://eprints.soas.ac.uk/9920/1/UNCTAD_GDS_MDPB_G24_2006_4.pdf
[9]
Kaufmann et al. 1998. Fighting Systemic Corruption: Foundations for Institutional Reform (Draft). World Bank Institute Governance Team. Acessado 9 Set. 2018 http://siteresources.worldbank.org/INTWBIGOVANTCOR/Resources/1740479-1149112210081/2604389-1149112222692/norway_paper1.pdf
[10]
OECD, ‘Ethical superhumans? Behavioural Insights for Integrity. Disponível em http://www.oecd.org/gov/ethics/behavioural-insights-for-public-integrity-9789264297067-en.htm
ics/behavioural-insights-for-public-integrity-9789264297067-en.htm
[11]
Mungiu-Pippidi, Alina.
2006. Corruption: Diagnosis and Treatment. Journal of Democracy, Volume 17, Number 3 July.
[12]
O documento “já é considerado o maior pacote anticorrupção do mundo”. Transparência Internacional lança 70 medidas legislativas contra a corrupção. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,transparencia-internacional-lanca-70-medidas-legislativas-contra-a-corrupcao,70002339213, acesso em 14/09/2018.
[13]
MOHALLEM, Michael; RAGAZZO, Carlos. Diagnóstico institucional: primeiros passos para um plano nacional anticorrupção. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2017. Disponível em <http://hdl.handle.net/10438/18167>, acesso em 14/09/2018, p. 69
[14]
MOHALLEM, Michael Freitas; BRANDÃO, Bruno [et al.] Novas medidas contra a corrupção, Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2018.

Ana Luiza Aranha é doutora (2015) e mestre (2011) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp) e professora na Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). Colabora com institutos de pesquisa internacionais como a Transparency International (Alemanha) e International Anti-Corruption Academy (Áustria). Consultora da Transparência Internacional Brasil para o desenvolvimento do seu Centro de Conhecimento Anticorrupção. Foi bolsista do Programa Cátedras Brasil da Escola Nacional de Administração Pública (2017-2018) e pesquisadora visitante do Centre for the Study of Democratic Institutions, da University of British Columbia (Canadá). Ganhadora do prêmio nacional Construindo a Igualdade de Gênero (2010) e da competição internacional 'Youth Research Edge Competition' por apresentar o artigo 'A map of corruption control flux' no Global Anti-Corruption and Integrity Forum da OCDE (2018). Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela UFMG (2008) e certificada em gestão de projetos pela University of British Columbia (2016). Tem experiência na área de Ciência Política, Corrupção, 'Accountability', Administração Pública, Instituições Políticas, Democracia, Descentralização, Governo Local, Gênero, Educação e Direitos Humanos.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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