01 outubro 2008

Paraguai-Brasil: A Necessidade de uma Nova Agenda

O pós-Guerra Fria representou mudanças importantes na agenda internacional dos países do Norte e do Sul A globalização implicou colocar a agenda econômica e comercial no centro das disputas internacionais, e, pelo lado político, a luta se manifestou em unipolaridade versus multipolaridade.

Nesse contexto, o papel que as potências emergentes começaram a desempenhar na Ásia e na América Latina é importante para entender esse processo de gestação de uma nova ordem internacional.

Coube ao Brasil converter-se num dos atores principais desse novo jogo de forças político e econômico internacional . O caráter terceiro-mundista e desenvolvimentista da política externa brasileira foi substituído gradualmente por uma posição mais de abertura e de alianças regionais, para enfrentar os novos desafios da globalização e aumentara capacidade de negociação do país como global trader.

Segundo os próprios analistas brasileiros,essa nova inserção do Brasil no pós-Guerra Fria manifestou-se de duas formas . A primeira delas, denominada “autonomia participativa”, consiste no papel clássico de uma potência média de adesão às normas e instituições multilaterais em processo de construção, de maneira a colaborar com a governabilidade internacional. Essa posição correspondeu ao governo de Fernando Henrique Cardoso. A segunda é a chamada “autonomia para a mudança da ordem internacional”e se caracteriza por ser mais ofensiva que a primeira estratégia e pela necessidade de articular uma ação coletiva de países médios ou emergentes, como o Brasil, com o objetivo de mudar as normas da ordem internacional vigente por meio de pólos regionais de poder, de forma a atenuar uma excessiva unipolaridade resultante do pós-Guerra Fria Essa segunda posição é exercida pelo governo Lula A criação do Mercosul marcou o início de um período em que a integração e a cooperação começaram a substituir as históricas rivalidades geopolíticas na América do Sul,ao mesmo tempo em que se foram dissipando os temores do denominado“ expansionismo brasileiro” Os acordos de livre-comércio entre o Mercosul e o resto dos países do subcontinente e o posterior surgimento do projeto União das Nações Sul-Americanas (Unasul) foram aparentemente criando as condições necessárias para que o Brasil despontasse como poder regional, e com maior capacidade negociadora nos foros internacionais, principalmente na Organização Mundial de Comércio (omc).

Porém a liderança brasileira de novo cunho não está consolidada na região . Por um lado, Chile,Peru e Colômbia aparecem com agendas próprias não-coincidentes com a estratégia de política comercial e externa do Brasil, embora se mostrem cooperativos em assuntos de interesse regional, principalmente no que tange à integração física Por outro lado,a Venezuela se apresenta com uma agenda internacional e regional mais ideológica que pragmática e disputa a liderança brasileira como poder regional, enquanto a Bolívia reivindica seus direitos contra os “abusos”brasileiros do passado recente na questão energética.
 
Dentro do Mercosul,a Argentina não é um parceiro muito confiável, e, entre os pequenos,o Uruguai se transforma em crítico permanente do Brasil,por negar-se este último a aprofundar o processo de integração regional Além disso, o Uruguai sofre as conseqüências de uma abertura regulada do mercado brasileiro aos seus produtos Assim,as concessões que o Brasil ofereceu ao resto do subcontinente para exercer uma “liderança benévola”ainda não permitem ao país contar com todo o apoio necessário para se tornar poder regional.

Dentro desse contexto, o Paraguai aparece como o país mais leal aos interesses brasileiros,tanto nas práticas do período da Guerra Fria,que ainda persistem em relação a esse país, como também nos novos alinhamentos da estratégia brasileira de inserção regional e internacional. A chegada do governo Lugo pode pôr fim a essa “lealdade”, que tem trazido poucos benefícios ao Paraguai,e substituí-la por um novo tipo de relação,mais eqüitativa e mais justa .

Os eixos de dependência

Para entender os principais campos onde se tecem as relações entre Paraguai e Brasil e quais têm sido os resultados dessa relação, é preciso fazer uma breve resenha histórica das últimas décadas.

A tradicional dependência comercial, econômica e política paraguaia em relação à Argentina foi substituída, a partir da década de 70, por uma aproximação mais estreita em relação ao Brasil, em termos financeiros,comerciais e militares A aproximação se traduziu na abertura de novas vias de comunicação interna e externa, no início da agricultura comercial e na modernização socioeconômica, pela via da construção da hidrelétrica Itaipu Binacional,que colocou o país mais perto dos fluxos comerciais e financeiros internacionais .

A abertura de uma conexão física e comercial com o Brasil trouxe mudanças importantes. Em primeiro lugar,com a entrada da soja,a partir do desenvolvimento dessa cultura empresarial na zona fronteiriça com o Brasil, o aumento do cultivo de algodão, estimulado pelo Estado paraguaio, e a alta dos preços internacionais desses produtos,surgiu uma agricultura comercial em maior escala e fortaleceu-se a estratégia de especialização do país como exportador de commodities agrícolas. Em segundo lugar, a abertura em relação ao Brasil não só significou fluxos crescentes de exportação de commodities agrícolas, como também um trânsito elevado de importações paraguaias, com altos níveis de ilegalidade ou contrabando, em várias modalidades. A mais importante de todas teve início em meados dos anos 80, incentivada pelas altas cargas tributárias internas dos vizinhos ao Paraguai e pelos altos níveis de proteção alfandegária dos mesmos.

Ela consistia em um comércio de triangulação de bens de consumo de luxo ,importados principalmente do Leste asiático e dos Estados Unidos de forma subfaturada ou ilegal, e sua subseqüente reexportação, pelo Paraguai,para os países vizinhos,de forma também ilegal Esse comércio de triangulação já se formalizou do lado paraguaio a partir dos anos 990,o que não aconteceu do lado brasileiro,ao permanecer ainda pendente a eliminação da dupla tributação alfandegária no Mercosul.

Em terceiro lugar, a construção da hidrelétrica binacional de Itaipu (Paraguai-Brasil)aumentou muito os fluxos de capital em direção à economia paraguaia,tornando-se um dos principais,e sempre cedentes históricos,fatores de crescimento da economia,especialmente no período 975– 98 Com Itaipu,e mais tarde com a construção de outra hidrelétrica com a Argentina (Yacyretá),o Paraguai tornou-se um exportador importante de energia elétrica na região, o que passou a representar importante receita para o Tesouro nacional.

Apesar de a abertura em relação ao Brasil ter sido um processo planejado gradual-mente pelo regime autoritário de Stroessner,os seus resultados não representaram exatamente as conseqüências de uma estratégia decrescimento econômico . Ao contrário, foram produzidos pelo próprio processo de abertura e aproveitados pelo regime dominante, que acumulou rendas em benefício de um grupo político-econômico próximo ao ditador. Assim, por exemplo, o Estado paraguaio nunca estimulou medidas em favor da agroindustrialização para aumentar o valor agregado e a oferta exportável do país; tampouco teve um plano de aproveitamento da energia elétrica para fins de industrialização ou de desenvolvimento; e, finalmente, apostou em um modelo informal de triangulação comercial com poucas bases de sustentabilidade no tempo .


Pouco mudou após as ditaduras

Esses eixos da relação entre ambos os países continuaram depois da ditadura, sem que os governos da transição democrática (da mesma orientação política de Stroessner) se preocupassem em realizar qualquer modificação em benefício do país. A soja,a venda da energia elétrica e o comércio de triangulação se tornam como tempo a base do crescimento econômico do país Mas esse modelo econômico muito rapidamente acabou diminuindo a qualidade devida dos habitantes do Paraguai, provocando altos níveis de pobreza e de desemprego O Paraguai desenvolveu com o Brasil uma dependência muito forte a partir das décadas de 970 e 980 . Atualmente, essa dependência se observa na venda de energia hidrelétrica, que se traduz em receitas significativas para o Tesouro paraguaio; no comércio de reexportação, que tem como principal mercado de destino o Brasil e representa cerca de 50% das receitas tributárias do país; e na exportação de soja,principal cultivo de exportação,em grande parte produzida por imigrantes brasileiros ou “brasiguaios” Além disso, cerca de 20% das exportações do Paraguai têm como destino o mercado brasileiro e quase 30% dos fluxos de investimento externo direto que o Paraguai recebe provêm do Brasil,situando-se este país como segundo investidor mais importante, logo depois dos Estados Unidos .

O modelo econômico do Paraguai, construído nos últimos trinta anos com a ajuda do Brasil, não lhe permitiu um pleno aproveitamento da abertura comercial que o Mercosul representou, tampouco uma inserção competitiva nos mercados regional e internacional Além dissonem a ditadura de Stroessner nem os governos que a sucederam tiver a ma vontade de retomar o tratamento do tema da cessão de um recurso natural, como a energia hidrelétrica, satisfazendo-se com uma compensação mínima e postergando assim um rápido desenvolvimento industrial do país .

Uma nova agenda bilateral

O Governo de Lugo, em seu Plano Estratégico Econômico e Social, propôs-se a trabalhar para sustentar o crescimento econômico dos últimos anos, mas com uma melhor distribuição de renda, maior geração de emprego e uma redução da pobreza extrema que no Paraguai chega a níveis alarmantes Isto significa uma mudança gradual, mas sustentada, do atual modelo econômico . Significa, ao mesmo tempo, uma reformulação dos principais eixos de relação com o Brasil para favorecer um Paraguai mais competitivo e ao mesmo tempo mais equitativo Uma relação mais fluida com o Brasil a partir da década de 970, embora tenha contribuído para a modernização do país, não se reverteu, entretanto, em aumento da produtividade e do crescimento econômico do país, mesmo dentro do Mercosul Isso porque as duas atividades principais derivadas dessa relação – produção de soja e comércio de reexportação – não tiveram um efeito importante sobre o desenvolvimento do país e a geração de emprego, porque, além de tudo, o Paraguai decidiu não aproveitar boa parte da energia hidrelétrica que lhe pertence para um processo de industrialização do país.

Complementaridade produtiva

Portanto, o primeiro tema de uma nova agenda de relação com o Brasil deve consistir em negociar a eliminação gradual do comércio de reexportação, para substituí-lo por um vínculo produtivo que gere maior valor agregado e emprego no Paraguai e diminua as restrições de acesso de produtos nacionais ao mercado brasileiro.

O comércio de reexportação tem como origem a demanda brasileira de produtos baratos e como beneficiário o consumidor brasileiro, além de gerar emprego no próprio Brasil e não precisamente no Paraguai . Por exemplo, o Paraguai importa da Ásia grandes volumes de componentes e peças de computadores que,reexportados para o Brasil, terminam em pequenas e médias empresas montadoras de computadores em torno da cidade de São Paulo,gerando assim emprego no Brasil e não no Paraguai. No fluxo de reexportação do comércio fronteiriço de Ciudad del Este, os principais postos de trabalho são dos “sacoleiros”,empregados de atacadistas no Brasil,e dos empregados brasileiros das principais lojas dessa cidade Aos paraguaios sobra o emprego informal dos pequenos negócios (mesiteros /camelôs).

Esse comércio de caráter ilícito sempre teve a conivência das autoridades brasileiras Criou uma rede delituosa fronteiriça de comércio de drogas,armas e lavagem de dinheiro. A responsabilidade de combater essa rede transfronteiriça de operações ilegais é compartilhada por ambos os países, porém o peso maior dessa responsabilidade cabe ao Brasil,já que as operações ilícitas se originam nesse país, pois ali são planejadas, ainda que sua execução ocorra em território paraguaio . A eliminação dessas operações de triangulação, portanto, depende principalmente da vontade do Brasil, vontade à qual o Paraguai deve somar esforços para substituir o círculo vicioso da triangulação comercial pelo círculo virtuoso da complementaridade produtiva.

O Paraguai deve abandonar seu papel de simples fornecedor de matérias-primas para o Brasil e aproveitar seu potencial agrícola para exportar maior valor agregado em cadeias produtivas que tenham como destino final o mercado brasileiro e o mercado internacional. Uma agroindustrialização exportadora tem como principal motor a zona fronteiriça com o Brasil, onde se concentra a maior parte do PIB agrícola do país,bem como os “brasiguaios”,os principais produtores Estes últimos têm condições de liderar o processo de agroindustrialização,que poderá gerar empregos seja nas próprias indústrias, seja nas pequenas e médias unidades de produção agropecuária, se integradas a cadeias produtivas.

A propósito, já existem vários empreendimentos agroindustriais na zona dos “brasiguaios”. Um aprofundamento da agroindustrialização, como, por exemplo, a produção de rações (a partir de grãos) para alimentar a produção de suínos e frangos e aumentá-la,beneficiará a pequena e média produção, reduzindo os conflitos existentes entre camponeses e “brasiguaios”. Para que a complementaridade agroindustrial com o Brasil tenha êxito, este deve abrir seus mercados tanto ou mais que a abertura oferecida, por décadas,para itens de reexportação Ao mesmo tempo,o Paraguai deverá negociar com o Brasil a chegada de maiores investimentos deste país, mas orientados para a agroindustrialização e com o objetivo de fornecer insumos para as cadeias agroindustriais do Brasil, ligadas ao mercado internacional Isto é,além de negociar compensações pela perda de receitas fiscais, devido à eliminação do comércio de reexportação, o Paraguai deverá exigir do Brasil que seus mercados se abram definitivamente a itens que realmente contribuem para o crescimento e a geração de emprego no Paraguai e para uma integração efetiva ao Mercosul.

O Paraguai abriu suas portas à migração de brasileiros sem nenhum tipo de condição, como não o faria o próprio Brasil É verdade,os “brasiguaios” fizeram da soja o produto campeão das exportações do Paraguai Mas os benefícios se fizeram à custa da expulsão de camponeses, o que provocou constantes conflitos de terras,desmatamento maciço e degradação ambiental. Todos esses aspectos,assim como a regularização do status migratório dos brasiguaios”,devem ser objeto de negociação na agenda bilateral.

Deve-se considerar,ainda, o surgimento de um novo fluxo migratório brasileiro, desta vez no Chaco paraguaio . Além disso, com a nova migração brasileira, surgiram bandos delinqüentes e de narcotráfico que operam a partir do Brasil e ameaçam os produtores agrícolas paraguaios e os próprios produtores brasileiros assentados no Paraguai .

Itaipu: energia para a agroindustrialização

O segundo tema da agenda, e não menos importante, diz respeito à utilização e ao preço da energia hidrelétrica de Itaipu Não há dúvida de que o Paraguai deve exigir a renegociação do Tratado de Itaipu por seu caráter muito injusto, principalmente no que diz respeito ao preço de venda da energia Um tratado firmado entre duas ditaduras militares, que atendeu exclusivamente aos interesses do Brasil, em troca de benefícios para um grupo de empresários e políticos privilegiados pela ditadura paraguaia.

O governo de Lula declarou que não existe vontade brasileira de renegociar o tratado Porém uma posição intransigente do Brasil sobre uma reivindicação justa do Paraguai deixa de enxergar o futuro,quando em quinze anos terminar a vigência do tratado Nesse momento,o Paraguai terá o direito de fixar o preço da energia e de escolher os clientes para vender a energia que hoje,pelo tratado,só pode vender para o Brasil Além de um preço justo pela venda da energia de Itaipu,o Paraguai deve deixar de utilizar apenas marginalmente o caudal energético que lhe cabe, para iniciar um processo de agro industrialização que dê base a um crescimento sustentável de sua economia.

Diante dessas realidades, vários são os cenários de negociação que podem ser considerados. Em primeiro lugar, o Brasil pode concordar em elevar o preço de compra da energia, mas em troca de que o Paraguai não aumente substancialmente o uso da energia de Itaipu,dadas as necessidades da demanda elétrica brasileira Um segundo cenário seria outorgar ao Paraguai um maior uso da energia hidrelétrica para promover a industrialização do país,porém em troca de não elevar o preço de compra de energia ou de elevá-lo apenas minimamente . Outros cenários podem resultar de combinações dos dois primeiros Mas,se a opção é a primeira,o Paraguai poderia receber pagamentos de Itaipu muito superiores aos que atualmente recebe e utilizá-los para fins de redução de assimetrias estruturais do Mercosul, com um impacto muito maior que o possibilitado pelos Fundos de Convergência Estrutural do Mercosul (focem). Sem um uso da energia de Itaipu, não é possível pensar no aumento da capacidade industrial do país, e, portanto, tampouco é possível aumentar os investimentos no setor produtivo ou atrair investimentos do próprio Brasil. O governo de Lugo deverá avaliar os prós e contras do conteúdo de uma renegociação do Tratado de Itaipu, mas o que não deverá postergar é um maior uso da energia hidrelétrica de Itaipu para promover o crescimento econômico do país. Por mais de 30 anos, os benefícios de Itaipu se concentraram quase exclusivamente no Brasil, e a energia renovável resultante não foi objeto sequer de um processo de integração energética na região As concessões que hoje o Paraguai deve fazer em um processo de negociação da venda e do uso da energia hidrelétrica devem ser mínimas,e muito maiores são as compensações que o Brasil deve fazer,com ousem renegociação do Tratado De outra forma, Itaipu não continuará sendo um fator de desenvolvimento e de melhoria da qualidade devida para o Paraguai .

Uma nova partida

O Governo de Lugo busca em sua relação com o Brasil uma reparação histórica e está disposto a jogar essa partida. Mas a reparação não se limita nem deve limitar-se a Itaipu. A agenda bilateral com o Brasil é uma agenda para o desenvolvimento do Paraguai,que deve deixar de lado os eixos do atual modelo econômico paraguaio, construído com o apoio do Brasil, e substituí-lo por outro modelo, que faça sentido para o país e sua integração ao Mercosul.

Daqui para a frente,o Paraguai pode ser “leal” a um Brasil que deixe de lado seus alinhamentos da Guerra Fria com o Paraguai e se proponha a ajudar este país em bases diferentes, respeitando sua soberania e sua vontade de integração real.

É sociólogo e economista, e diretor do Centro de Análisis y Difusión de la Economía Paraguaya (cadep).

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