Número 71

Ano 18 / Out - Dez 2025

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Pax Americana, Pax Sinica e o Brasil

A economia mundial vem enfrentando uma série de percalços nas últimas décadas: a crise financeira global, a crise da zona do euro, os impactos da pandemia da Covid 19 e conflitos geopolíticos (por exemplo, no Leste Europeu e no Oriente Médio). O ano de 2025, por sua vez, vem sendo marcado por mudanças significativas na política comercial dos EUA e por uma atitude de descaso da administração Donald Trump com relação à governança multilateral.

O momento atual alimenta especulações sobre a possiblidade de que a era da Pax Americana esteja chegando ao seu final. Ao mesmo tempo, o crescente poderio econômico e militar da China vem gerando questões sobre a possibilidade de uma versão contemporânea da Pax Sinica. Esse artigo analisa as implicações potenciais dessa transição para a governança multilateral e para o Brasil.

Pax americana: o final de uma era?

A história da civilização é marcada por vários episódios de paz e estabilidade relativa associados com a dominância de diferentes “impérios”. A Pax Romana, por exemplo, está associada com os quase 200 anos da história do império romano a partir do imperador Augustus (27 AC) até o reinado de Marcus Aurelius (morto em 180 AD). O conceito de Pax Sinica, por sua vez, está identificado com várias dinastias chinesas, em particular, a Dinastia Han no período 202 AC até os primeiros anos da era cristã. Já a Pax Britannica é usualmente identificada com o período 1815 -1914. Independentemente da sua duração esses episódios têm fases de auge e declínio. A estabilidade do “império” não é inevitável, seja por causa da acumulação de problemas domésticos seja por pressões externas.

O conceito de uma Pax Americana está associado com o período pós-Segunda Guerra Mundial, uma era marcada pela hegemonia econômica e militar dos EUA, a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a consolidação do dólar como moeda de referência para o sistema financeiro internacional, o papel relevante de instituições de governança multilateral como o FMI e o Banco Mundial, a influência cultural dos EUA e a globalização econômica facilitada por negociações multilaterais de comércio, ancoradas nos princípios do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT, 1947), que se tornaria um dos pilares da Organização Mundial de Comércio (OMC, 1995).

No âmbito militar e geopolítico, a dominância dos EUA era contestada pela União Soviética e o seu bloco “aliado”. A Guerra Fria caracteriza boa parte desse período, como ilustrado por numerosos conflitos regionais (Coréia, Vietnam, guerras civis na África etc.). O colapso da URSS (1991), no entanto, é geralmente interpretado como o marco final da Guerra Fria.

Nesse contexto, a proposição de que a Pax Americana teria encaminhado a sociedade global para o “fim da história”, como discutido por Francis Fukuyama em seu ensaio de 1989, gerou um debate acalorado. Fukuyama observou que com a dissolução iminente da União Soviética não existiriam mais competidores sérios para a ordem global associada com a Pax Americana e os seus pilares no capitalismo de mercado, globalização e, em particular, em sistemas democráticos liberais.

Ele observava que as últimas décadas do século XX estavam sendo caracterizadas pelo colapso de regimes totalitários de direita (ditaduras militares na América Latina) e de esquerda (os regimes comunistas do Leste Europeu). Ele reconhecia que os regimes políticos que estavam surgindo não tinham necessariamente as características plenas de democracias liberais. Mas na sua avaliação havia uma aspiração global para a adoção de sistemas democráticos, bem como a favor do neoliberalismo no âmbito de políticas econômicas.

Mas as “sementes” das crises que viriam a contestar essas teses já estavam germinando. A crise financeira global e a crise da zona do euro alimentaram movimentos populistas nos EUA e na Europa, culminando em 2016 com a eleição de Trump e o referendo a favor do Brexit no Reino Unido. A resiliência e o dinamismo da China, o exemplo mais evidente de uma alternativa política à democracia liberal, contribuíram para solapar a crença no “fim da história”.

Escrevendo em 2017, observei que a experiência histórica ilustrava que na falta de liderança explícita das principais potências econômicas, instituições multilaterais dificilmente alcançariam os seus objetivos, caso da experiência da Liga das Nações. Nesse contexto, a ideologia e os atos da primeira administração Trump com respeito à política comercial dos EUA não permitiam otimismo com relação ao futuro da governança global no século XXI.

Os primeiros meses da segunda administração Trump em 2025, por sua vez, ampliaram de forma dramática essa preocupação. As ações desse período vêm solapando ainda mais os pilares da Pax Americana seja com respeito ao papel de instituições multilaterais, bem com a adoção de uma política comercial explicitamente protecionista e dúvidas sobre a estabilidade de alianças militares.

Historicamente os EUA utilizaram tarifas com base nos seguintes objetivos: gerar receitas tributárias, restringir importações para proteger produtores domésticos e promover reciprocidade. E no pós-Segunda Guerra Mundial, os EUA tiveram um papel fundamental na adoção do GATT. No GATT, o conceito de reciprocidade é articulado em termos do princípio incondicional de nação mais favorecida (Most Favored Nation, MFN).

O tratamento comercial oferecido por uma parte contratante do GATT deve replicar os termos mais favoráveis disponíveis em suas relações bilaterais com outros membros signatários do GATT (com exceções nos casos de acordos de livre-comércio e práticas desleais de comércio). Essa abordagem gera incentivos para uma liberalização comercial progressiva. Em contraste, a administração Trump vem adotando uma abordagem baseada em reciprocidade negativa, em que as tarifas dos EUA devem refletir o nível das tarifas aplicadas às exportações dos EUA em cada caso.

Com o objetivo de acelerar a implementação e a flexibilidade de suas medidas de política comercial, a administração tem utilizado o International Emergency Economic Powers Act (IEEPA, 1977), que autoriza intervenções na regulamentação de transações econômicas internacionais no caso de emergência nacionais. Ao declarar o déficit comercial dos EUA como uma emergência nacional, o IEEPA passou a fornecer a base legal para a adoção das tarifas recíprocas anunciadas no Liberation Day (02/04/2025).

Tarifas recíprocas para cerca de 185 países e territórios foram anunciadas. O cálculo dessas tarifas foi recebido com um misto de incredulidade e observações sobre a arbitrariedade dos cálculos. A fórmula basicamente utiliza o déficit comercial em bens dos EUA com cada país dividido pelo valor das importações que vêm do parceiro comercial. Esse resultado foi dividido pela metade para refletir, segundo Trump, a magnanimidade dos EUA.

O anúncio das tarifas recíprocas gerou reações nos mercados financeiros. No dia 8 de abril, os EUA observaram movimentos inesperados nos mercados de ações, de títulos governamentais e do dólar. Pela primeira vez desde 2002, esses três mercados sinalizaram resultados negativos simultaneamente – um episódio que o mercado caracteriza com um triple red. O dólar dos EUA é beneficiado pelo seu papel de moeda de referência para a economia global. Em momentos de crise, quando o mercado acionário declina, tipicamente o dólar aprecia e os títulos do Tesouro atraem mais compradores. Em abril, o cenário mudou com quedas observadas no mercado acionário, depreciação do dólar e dos títulos governamentais, um comportamento típico de mercados em economias emergentes.

Os mercados se estabilizaram rapidamente, mas o susto foi suficiente para a administração Trump postergar a imposição das tarifas recíprocas em 9 de abril. Essa pausa deveria durar até 8 de julho e negociações com China, Reino Unido e União Europeia foram marcadas por acordos parciais com o objetivo de desescalar as tensões. Em 9 de julho, os EUA iniciaram o envio de cartas para diferentes países anunciando novas tarifas que passariam a ser aplicadas a partir de 1 de agosto.

No caso do Brasil, a tarifa anunciada foi de 50% em contraste com os 10% anunciados em 2 de abril. Essa tarifa tem uma motivação política – o processo judicial contra o ex-presidente Bolsonaro – ao invés de um objetivo econômico associado com redução de déficits comerciais. No dia 30 de julho, os EUA anunciaram uma lista de exceções à tarifa de 50%, abrangendo cerca de 694 produtos (incluindo aviões, óleos brutos de petróleo, suco de laranja congelado, ferro fundido bruto e pastas químicas de madeira). As exceções amenizam o impacto das medidas protecionistas dos EUA, já que cerca de 41% das exportações brasileiras em termos de valor no primeiro semestre de 2025, continuariam a ser taxadas com uma tarifa de 10%.

O caso da Índia também ilustra a dimensão política das decisões tarifárias dos EUA. A tarifa recíproca inicial anunciada para a Índia foi de 25%. No dia 6 de agosto, porém, a administração Trump anunciou tarifa adicional de 25% contra a Índia, aumentando para 50% a tarifa que passou a prevalecer a partir de 27 de agosto. Se a lógica utilizada para a decisão original era corrigir o déficit comercial dos EUA com a Índia (cerca de US$ 45,7 bilhões em 2024), a sobretaxa adicional é racionalizada como uma forma de punir a Índia pelas suas importações de petróleo russo, que seriam uma fonte importante de financiamento da “máquina de guerra” da Rússia.

A arbitrariedade das decisões tarifárias dos EUA vem contribuindo para o redesenho de alianças econômicas ao redor do mundo. Essas medidas também afetam a relevância da OMC. Cabe assinalar que cerca de 74% dos fluxos de comércio de bens ainda ocorrem nos termos das tarifas MFN da OMC. Mas essa cifra era de cerca de 80% no início de 2025. Além disso, a política errática dos EUA vem contribuindo para a desaceleração do comércio internacional.

A incerteza associada com as idas e vindas da política comercial dos EUA continuará nos próximos meses. No dia 29 de agosto, a Federal Circuit Court of Appeals votou (7 a 4) para confirmar que o presidente teria excedido a sua autoridade ao utilizar a IEEPA para a imposição de tarifas. O executivo irá apelar para a Corte Suprema dos EUA contra essa decisão, mas nesse interim as tarifas permanecem.

O uso de tarifas como uma forma (equivocada) de reduzir o déficit comercial dos EUA e promover a reindustrialização da economia americana é o instrumento mais marcante da estratégia econômica da administração Trump. Mas essa estratégia também se baseia na tese de que o papel dos EUA como “polícia global”, bem como a função do dólar como moeda de referência para a economia mundial, gera mais custos do que benefícios.

Pressões sobre países aliados para aumento dos seus orçamentos militares e uma preferência por uma política monetária que favoreça a desvalorização do dólar complementam a estratégia atual. Em síntese, a estrutura de instituições e práticas econômicas subjacentes à Pax Americana não são mais consistentes com as prioridades da Era Trump. Nesse contexto, a questão inevitável é: há uma opção em termos de governança global frente ao declínio da Pax Americana?

Uma nova pax sinica?

O crescente poderio econômico e militar da China sugere uma alternativa possível. Evidentemente os princípios de uma nova Pax Sinica são bem distintos daqueles que marcaram as últimas décadas sob a Pax Americana. A retórica a favor do multilateralismo permanece, mas a prática das políticas econômicas chinesas tem um viés intervencionista em contraste com os princípios liberais que tipicamente permearam a política externa e econômica do Ocidente. Em particular, fica a questão: qual o papel de valores associados com democracias ocidentais no contexto de uma Pax Sinica?

O encontro recente da Organização de Cooperação de Xangai (OCS) em Tianjin tem um simbolismo claro nesse contexto. Mais de 20 líderes – muitos deles associados com os princípios do Sul Global com ênfase em princípios de soberania, autodeterminação e justiça social – participaram no evento. As presenças da Rússia, da Bielorrússia, do Irã e de Myanmar, porém, ilustram o viés autocrático do projeto chinês.

É evidente que a atratividade da coalizão liderada pela China está associada com as oportunidades de relações econômicas com uma das maiores economias do mundo em termos de comércio e investimentos em infraestrutura. Cabe, porém, reconhecer que a OCS como coalizão militar é caracterizada por rivalidades históricas entre alguns dos seus membros (Índia e Paquistão). Em síntese, uma Pax Sinica dificilmente alcançará o nível de adesão global e influência econômica e geopolítica que outrora caracterizou a Pax Americana.

Considerações finais

O declínio da Pax Americana e as limitações da Pax Sinica sugerem que estamos entrando em uma era de rivalidade multipolar. A competição geopolítica irá moldar uma ordem global caracterizada por esferas de influência e interdependência econômica.

Para o Brasil, isso irá exigir não apenas pragmatismo e agilidade diplomática, mas também o reconhecimento dos limites de declarações de neutralidade. Os nossos laços econômicos com a China devem continuar a se fortalecer, muito embora oportunidades no contexto de um eventual acordo União Europeia-Mercosul possam diminuir essa dependência.

Infelizmente, as relações com os EUA continuarão a ser dominadas por um contencioso político alimentado por preferências ideológicas da administração Trump nos próximos anos. Há uma certa ironia nessa situação na medida em que, se utilizarmos como referência as votações na Assembleia Geral das Nações Unidas, observa-se que o Brasil, dentre os países do BRICS+, é o que, na prática, mais se aproximava das posições ideológicas tradicionais dos EUA.  


Notas

. Veja Fukuyama (1989).

. Veja Primo Braga (2017), pp. 43-44.

. Para maiores detalhes veja Primo Braga (2025a, 2025b).

.Cabe assinalar que nos últimos 15 anos o Brasil acumulou um déficit de US$410 bilhões em suas transações em bem e serviços com os EUA. Em 2024, o déficit brasileiro na balança comercial de bens com os EUA foi da ordem de US$7,4 bilhões.

.A estimativa de crescimento do volume de comércio de bens em 2025 diminuiu para 0,9%, em contraste com a previsão de um crescimento de 2,7% anterior à imposição das tarifas. Veja https://www.wto.org/english/news_e/news25_e/tfore_08aug25_e.htm.

. Veja Seong, J. et al. (2025).


Referências bibliográficas

Fukuyama, F., 1989, “The End of History?” The National Interest 16 (Summer): 3 – 18.

Primo Braga, C.A., 2017, “The Threat of Economic Disintegration,” in C.A. Primo Braga and B. Hoekman, eds., Future of the Global Trade Order, 2nd ed. Florença: EUI, IMD, FDC.

Primo Braga, C.A., 2025a, “Brics, tecnologia, bullying e ‘desdolarização’,” Valor Econômico (21 de fevereiro).

Primo Braga, C.A., 2025b, “A “Guerra” das Narrativas na Era Trump,” Capa Brasil (25 de agosto).

Seong, J. et al., 2025, “A new trade paradigm: How shifts in trade corridors could affect business,” McKinsey Global Institute (June).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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