01 abril 2011

Perspectivas de Mudanças no Padrão Gerencial e Ético do Modelo Político-eleitoral

A análise parte do pressuposto de que o modelo político-eleitoral brasileiro, fundado na cons- trução de maiorias parlamentares de apoio ao presidente da República, mediante a aglutina- ção de partidos heterogêneos, não deverá sofrer alterações substantivas no futuro previsível. O autor propõe uma agenda mínima de uma re- forma voltada para a eficiência administrati- va e a recomposição da base ética do governo. A primeira providência é identificar os órgãos mais suscetíveis a desvios de conduta. Em se- gundo lugar, desburocratizar os processos licitatórios, instituir pré-requisitos para a nomeação para cargos de confiança e restabelecer a auto- nomia efetiva de órgãos e entidades da admi- nistração indireta.

Breve retrospectiva da evolução do modelo político-eleitoral

A presente análise parte do pressuposto de que o modelo político-eleitoral brasileiro, fundado na construção de maiorias parlamentares de apoio ao presidente da República, mediante a aglutinação de partidos heterogêneos, não deverá sofrer alterações substantivas no futuro previsível. Cabe indagar, então, se tal modelo comportaria algum aperfeiçoamento no sentido de torná-lo mais eficiente do ponto de vista gerencial e mais confiável em termos éticos. Esta é a questão que procurarei enfrentar neste artigo.

A lógica do modelo é bem conhecida. Do ponto de vista dos governadores e dos parlamentares, trata-se de uma visão predominantemente extrativista de recursos federais.
É também a forma de estados e municípios participarem da formulação de políticas regionais e setoriais.

Uma vez instalado em determinado órgão, o representante da coligação tratará de beneficiar o seu estado e reduto eleitoral, assim como atender aos objetivos eventualmente comuns aos partidos. Do ponto de vista do Executivo federal, a barganha assegura quórum básico para a aprovação de projetos de lei, medidas provisórias e emendas constitucionais. Todavia, a manutenção do bloco de apoio ao Executivo é de administração complexa, a qual exige cuidados permanentes. Assim, não basta um acerto global no início da nova legislatura. Ao longo do tempo, diversos fatores influirão nas composições previamente negociadas. Podem ser questões relacionadas com o maior ou menor crescimento econômico, a inflação, as eleições municipais, emergências climáticas e assim por diante. Mas também é certo que o modo de operação do modelo estará exposto a denúncias de corrupção e, portanto, à necessidade de troca de alguns dos prepostos da coligação.

Neste momento inicial da nova legislatura, ainda não se percebem no horizonte político pressões internas nos partidos coligados no sentido de melhorar o padrão gerencial e ético de operação desse modelo. Ao contrário, o resultado das eleições parlamentares de 2010 aponta no sentido da consolidação do modelo de troca de votos por cargos e verbas.

Na legislatura anterior, e principalmente nos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a necessidade de ampliar a base partidária de apoio ao governo se acentuou sobremaneira. Salvo situações especialmente escandalosas, a variável ética não parece ter constituído motivo de preocupação na gestão do modelo. Emblemático foi o exemplo dado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, que entregou ao estado da Bahia, justamente onde o ministro foi candidato a governador, metade dos recursos extraordinários destinados a socorrer as áreas e populações atingidas pelos temporais de 2009/2010.

A expectativa de que a maior visibilidade das transgressões éticas dos últimos anos contribuísse para alguma elevação do padrão ético do processo eleitoral tampouco se confirmou. Iniciativas moralizadoras, como a Lei da Ficha Limpa (ainda sujeita ao teste de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal) e a atuação mais incisiva da Justiça Eleitoral não foram suficientes para modificar o perfil parlamentar. O discurso da moralidade pública não transcendeu o plano retórico. De outro lado, nada indica que o Congresso Nacional irá retomar a missão constitucional de fiscalizar o Executivo; ao contrário, continuará a reduzir a ação parlamentar à produção legislativa. Apenas no mês de fevereiro deste ano foram apresentadas cerca de oitocentas proposições de natureza legislativa.

Congresso e distanciamento dos eleitores

O que fica evidente neste início de legislatura é o imenso distanciamento da atividade político-partidária da motivação dos eleitores. Isto nada tem a ver com o velho refrão de que o brasileiro não sabe votar. Mais adequado é reconhecer que o eleitor brasileiro não tem condições objetivas de votar corretamente. Dos 513 deputados eleitos, apenas 35 (6,8%) se elegeram exclusivamente com os votos que lhes foram dados diretamente, ou seja, com o mínimo do quociente eleitoral aplicável. Todos os demais foram eleitos com as “sobras” eleitorais. Finda a eleição, não há como o eleitor, por mais atento que seja, acompanhar direta ou indiretamente o desempenho do parlamentar em quem votou. Isto ficou claro na composição das comissões permanentes da Câmara dos Deputados.

Vários outros expedientes procedimentais impedem o eleitor de acompanhar minimamente o desempenho dos candidatos eleitos. Entre esses expedientes, destacam-se o “voto de liderança” (que substitui o voto em plenário) e a decisão “terminativa” das comissões permanentes, também com dispensa da votação em plenário.

Portanto, quando se constrói um acordo para nomear alguém para um ministério ou órgão de primeiro nível, os que têm assento à mesa de negociações não estarão preocupados com a opinião dos eleitores. Estes, por seu turno, não terão informações suficientes para fazer qualquer juízo de valor sobre a substância do que vier a ser deliberado em matéria de cargos e distribuição de verbas.

Executivo e distribuição de cargos

Do ponto de vista do Executivo, ainda não se notam mudanças relevantes no modus operandi em torno da distribuição de cargos (a disputa por verbas ainda não se põe). Não obstante, parece inevitável que o governo da presidente Dilma Rousseff seja compelido a agir de forma mais prudente na escolha de quadros para o preenchimento de cargos de mais responsabilidade decisória.

A mídia e certos setores da sociedade continuarão a exercer pressão sobre o Congresso e o Executivo. A Controladoria Geral da União (CGU) desenvolveu nos últimos anos maior capacidade de fiscalização e o número de funcionários demitidos por conduta ilegal vem crescendo significativamente. Há, porém, uma limitação de natureza política, qual seja, a impossibilidade de a CGU atuar de forma independente no plano político posto que ela pertence à estrutura do próprio Executivo e o ministro titular é subordinado ao presidente da República.

O Tribunal de Contas da União (TCU) também teve a sua estrutura técnica bastante reforçada nos últimos anos e tem competência institucional ampla em matéria de aplicação de recursos públicos. Além disso, atua preventivamente – ainda que com certa lentidão – sobre o sistema de compras públicas.

O Ministério Público Federal e a Polícia Federal também atuam de maneira ostensiva na detecção de desvios de conduta que tipifiquem corrupção ou improbidade. Ocorre que a eficácia dessas iniciativas depende da agilidade do Judiciário. E, apesar dos esforços recentes de reforma, é ainda muito lento em matéria processual penal.

O fato político concreto e incontornável é que se fixou na opinião pública a convicção de que a atividade político-partidária é essencialmente corrupta. Em torno dessa constatação, alguns tentam fazer a distinção entre “percepção” de corrupção e corrupção “efetiva”, como se a primeira fosse um fenômeno menos grave que a segunda. Na realidade, a percepção é pior na medida em que pode se confundir com inação ou tolerância do Poder Público com desvios de conduta. Algo semelhante ocorreu na Grã-Bretanha em meados dos anos 1990, quando mais de 70% dos eleitores opinaram no sentido de que os membros do Parlamento eram desonestos. Daí resultou a criação, em 1994, do Committee on Standards in Public Life . Resta saber se algo com o mesmo impacto poderá vir a ocorrer no ambiente político e administrativo brasileiro.

Obsolescência do modelo de partilha de cargos como instrumento de manutenção da base de apoio parlamentar

Desde o retorno ao governo civil, em 1985, ficou estabelecido que as áreas governamentais ligadas à formulação e execução da política econômica ficariam excluídas da negociação de cargos. Essas áreas “técnicas” abrangem principalmente o Banco Central, o Ministério da Fazenda, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, a Secretaria do Tesouro e a Secretaria da Receita Federal.

A partir do governo Fernando Henrique, a preocupação foi primordialmente o controle da inflação e o reequilíbrio das contas públicas. Ou seja, o esforço de gestão desenvolvia-se, do ponto de vista prático, em duas frentes: aumentar a arrecadação, de um lado, e conter a despesa, do outro. Portanto, os órgãos críticos eram o Ministério da Fazenda, o Banco Central em matéria de câmbio e juros, e a Secretaria do Tesouro na contenção da despesa. À Receita Federal competia primordialmente a ampliação da arrecadação de tributos federais. O controle orçamentário dos órgãos setoriais era assegurado pelo contingenciamento de recursos. Essa estratégia foi, como se sabe, bem-sucedida para alcançar o reequilíbrio das contas públicas. A base parlamentar de apoio ao governo foi mantida, sem pôr em risco a complexa gestão da economia.

As dificuldades de manutenção da integridade desse modelo de gestão compartilhada começaram a surgir quando o governo Lula optou por uma política ativa de crescimento econômico e social. Apesar de o controle da política econômica continuar severa nos órgãos-chave – as “áreas de exclusão” – os órgãos setoriais se tornaram mais importantes como instrumentos de aplicação de recursos. No entanto, seus dirigentes continuaram a ser recrutados por critérios essencialmente político-partidários. Daí resultou a ampliação da área de risco de desvios de conduta, sem que fossem tomadas providências para prevenir a ocorrência de corrupção.

Simultaneamente, a necessidade de acomodar uma base de apoio mais ampla, com novos partidos, levou o governo a triplicar em curto espaço de tempo o número de ministérios e secretarias. Ainda que vários desses órgãos não tenham orçamentos expressivos, sua simples existência implica a expansão de uma burocracia ociosa, que gera controles onerosos para a própria administração e não contribui para a agilidade do processo decisório administrativo. E nem constituem centros de excelência. Esta é a estrutura hoje cobiçada politicamente e que caberá ao novo governo administrar.

No entanto, as “áreas de exclusão” da partilha política não foram ampliadas para retratar essa nova geometria do Executivo. Resta saber que providências poderão ser tomadas para que se preserve a eficiência gerencial e ética da administração pública federal.

Agenda mínima (ou emergencial) de uma reforma voltada para a eficiência administrativa e a recomposição da base ética do governo

1. Como controlar os órgãos partilhados
A primeira providência é identificar os órgãos mais suscetíveis a desvios de conduta. Há na experiência internacional diversos modelos adotados com essa finalidade. A Comissão de Ética Pública da Presidência da República publicou, em 2002, um trabalho específico de classificação de órgãos e entidades mais vulneráveis à corrupção baseado em estudo rea¬lizado pelo professor Antonio Sergio Seco Ferreira . Em essência, o modelo consiste na combinação de diversos fatores, a partir de três vetores básicos: 1) o poder de compra, ou seja, o volume de recursos administrados pelo órgão ou entidade; 2) o poder de regulação, ou seja, o poder desse órgão ou entidade de regular determinado mercado; 3) as medidas compensatórias, ou seja, a adoção de mecanismos que sejam capazes de detectar e corrigir desvios de conduta dentro da organização. O modelo foi aplicado a dez organizações, o que permitiu tabulá-las numa escala de zero a dez, sendo dez a nota de identificação do maior risco. Em primeiro lugar, com nota dez, figurou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), tendo em vista o seu grande poder de compra proveniente de substancial fonte de receita, o poder de regulação (monopólio postal) e a inexistência de medidas compensatórias. Vale ressaltar que esse estudo precedeu em mais de um ano o escândalo dos Correios.

A conclusão óbvia é que órgãos com esse grau de risco deveriam, idealmente, ser excluídos da partilha política ou então ser submetidos a um tratamento diferenciado em matéria de controle. No primeiro caso, trata-se de um pacto de exclusão negociado com a base aliada. No segundo, de prevenção da corrupção, uma proposta que certamente viria ao encontro de anseios sociais profundos e poderá ser um adicional ao capital político do governo .

Aqui – insisto – estamos tratando especificamente de prevenção da corrupção, tendo em vista que a repressão segue o modelo reativo convencional, ou seja, a cada novo “escândalo” mobiliza-se o aparato policial e do Judiciário, e o Congresso trata de instalar uma CPI.

No documento “Combate à Corrupção: Compromisso com a Ética”, integrante do Programa de Governo do Presidente Lula, estão previstas diversas iniciativas, entre as quais: a) ação coordenada de diversos órgãos da admi¬nistração pública no campo da ética; b) a transparência das decisões administrativas e o controle pela sociedade; c) a modernização da gestão pública com vistas à boa governança; d) o aperfeiçoamento dos controles interno e externo, inclusive com a participação de entidades da sociedade civil; e) a educação para a cidadania democrática, de modo a inserir a ética de forma permanente na agenda dos servidores e dos cidadãos; f) o combate à promiscuidade nas relações entre os setores público e privado, de modo a prevenir conflitos de interesse; g) novo padrão de relacionamento do Executivo com o Legislativo. Portanto, sequer seria necessário conceber um novo programa para o atual governo.

Certamente, o regime de compras públicas deveria ser monitorado, nos órgãos e entidades mais suscetíveis à corrupção, a partir de matrizes de risco já elaboradas. Feita a identificação, esses órgãos e entidades passariam a ter tratamento diferenciado mais rigoroso mediante monitoramento em tempo real dos processos de licitação. As respectivas comissões de licitação seriam integradas por técnicos de outras áreas e, se possível, com a participação de representantes do TCU e do Ministério Público. É inevitável que, quanto mais burocratizado for o processo de compras, maior será o risco de corrupção.

2. Desburocratização dos processos licitatórios
As licitações públicas devem ser simplificadas para delas expurgar o excesso de controles formais e que constituem um manancial de conflitos e impugnações. A atual legislação (Lei nº 8 666) foi concebida com vistas a um quadro inflacionário fora de controle e, portanto, imprevisível quanto a preços. Hoje, com moeda estável, são dispensáveis as mensurações físicas para fins de liberação de pagamentos – verdadeiros convites à corrupção.

Outra providência, já adotada em algumas esferas estaduais, é inverter a ordem da licitação. Com efeito, a fase de pré-qualificação de licitantes se transformou em verdadeiro tormento para a administração pública. Nela os interessados são obrigados a comprovar estado de regularidade fiscal completa, quando tal exigência só faz sentido – se é que faz – em relação ao vencedor.

3. Instituição de pré-requisitos para a nomeação para cargos de confiança
Na Grã-Bretanha, que praticamente inventou o civil service, hoje funciona um serviço de seleção de candidatos a diferentes cargos nos chamados Non-Departmental Public Bodies ou “Quangos”. Não são exatamente cargos de confiança no sentido que nós aqui adotamos, mas se assemelham na medida em que não fazem parte integral do quadro de servidores públicos de carreira. A criação dessa figura resultou de uma recomendação feita em 1995 pelo já referido Committee on Standards in Public Life . Uma das funções do Commissioner é fixar critérios e padrões para o processo de seleção de candidatos ao preenchimento de cargos públicos. Cabe-lhe estabelecer um Código de Práticas e fiscalizar o processo de seleção de modo a assegurar que as nomeações sigam o critério do mérito e se deem dentro de uma justa e aberta competição (fair and open competition).

Não vejo dificuldade para que se adote algo semelhante nas nomeações para cargos de confiança na administração federal. Imagino – e aqui vai uma sugestão – que a Comissão de Ética Pública da Presidência da República, dotada de completa independência decisória, possa fazer um exame prévio de adequação de candidatos a cargos de confiança, com base no currículo profissional do indicado. Aliás, esse exame já é feito em relação à situação patrimonial das autoridades submetidas ao Código de Conduta da Alta Administração Federal. O governo de Minas Gerais faz algo semelhante por meio da certificação de pessoas interessadas em trabalhar em cargos de livre nomeação, que se submetam a cursos de qualificação na universidade estadual.

4. Restabelecimento da autonomia efetiva de órgãos e entidades da administração indireta Na realidade, todo o esforço desenvolvido com a definição do grau de autonomia gerencial e financeira de entidades da administração indireta (autarquias, autarquias especiais, agências executivas), desde a Constituição de 1988, é, no fundo, uma tentativa de voltar aos princípios norteadores constantes do Decreto-lei nº 200, de 1967. Se assim é, por que não voltarmos àqueles princípios e, corajosamente, repristiná-los. Refiro-me, em particular, aos seus artigos 4° e 5°, que definem as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas; ao artigo 6°, que estabelece os cinco princípios fundamentais da administração federal: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competência e controle; e às definições constantes dos artigos 7° a 14. Seria um bom começo.

Conclusão

Em síntese, o fato de que o modelo político-eleitoral funciona basicamente por meio da partilha de cargos não significa que se abandonem os princípios da eficiência, competência e probidade. Ao contrário, a explicitação de tais princípios é de fundamental importância para a manutenção da respeitabilidade da vida política e administrativa. Houve algum progresso em várias frentes, principalmente na detecção de desvios de conduta e na repressão à corrupção. Porém, pouco se progrediu na prevenção da corrupção. • JOÃO GERALDO PIQUET CARNEIRO, advogado, foi secretário executivo e coordenador do Programa Nacional de Desburocratização (1979–1985) e presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (1999–2004).


É advogado, foi secretário executivo e coordenador do Programa Nacional de Desburocratização (1979–1985) e presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (1999–2004).

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