10 outubro 2018

Perspectivas para o Combate à Corrupção no Brasil Pós-Eleições

Passados quatro anos e meio do início da operação Lava Jato e caminhando o país para novas eleições de presidente da República, de governadores e dos parlamentos federal e estaduais, parece muito apropriada a discussão sobre o papel que o combate à corrupção vem desempenhando em nosso país e suas perspectivas no Brasil pós-eleições.

Passados quatro anos e meio do início da operação Lava Jato e caminhando o país para novas eleições de presidente da República, de governadores e dos parlamentos federal e estaduais, parece muito apropriada a discussão sobre o papel que o combate à corrupção vem desempenhando em nosso país e suas perspectivas no Brasil pós-eleições.
Embora haja outras operações de combate à corrupção sendo empreendidas nos âmbitos federal e estaduais, a operação Lava Jato tornou-se o símbolo desse combate pela amplitude e profundidade de suas investigações, que revelaram ao país as vísceras de um sistema político-administrativo intensamente contaminado e orientado pela corrupção, independentemente de siglas partidárias ou bandeiras ideológicas.
A democracia brasileira foi como que sequestrada pela corrupção. A forma como se deu o financiamento das campanhas até as eleições presidenciais pretéritas determinou um modo de exercício do poder orientado à retribuição dos financiadores de campanhas e ao enriquecimento pessoal dos agentes públicos, num ciclo vicioso permanente. Campanhas ricamente financiadas tiveram mais sucesso eleitoral. O agente público beneficiado usava o poder alcançado para retribuir o financiamento obtido na eleição passada e garantir o financiamento da próxima campanha para poder se manter no poder. Assim, corruptos e corruptores, em perfeita simbiose, encenavam um grande show eleitoral em que o dinheiro público era o fio condutor da narrativa.
Grandes corporações faziam doações com o intuito de obter contratos favorecidos ou medidas legislativas de seu interesse, como incentivos fiscais ou barreiras a concorrentes. Aquilo que era imaginado e presumido foi de tal modo exposto e comprovado que colocou a sociedade brasileira perplexa com o volume de recursos movimentados, da ordem de bilhões de reais, e com o modus operandi dos corruptos. A realidade se revelou muito mais grave do que aquilo que permeava o inconsciente coletivo da sociedade e fez nascer, agora já na consciência da nação brasileira, a percepção de que a corrupção é seu maior problema e de que seu combate deve ser uma prioridade, como comprovaram diversas pesquisas de opinião feitas nos últimos anos.
O Instituto Datafolha detectou, pela primeira vez, a corrupção como principal problema na percepção dos brasileiros em 2015. Também a pesquisa Latinobarômetro 2017 (www.latinobarometro.org/lat.jsp), importante análise de indicadores econômicos, políticos e sociais, detectou que a corrupção é o tema número um como angústia nacional, deixando para trás temas caros como desemprego, violência e criminalidade, saúde, educação, etc.
Os prejuízos causados pela corrupção vão muito além do dinheiro desviado. Numa perspectiva ainda meramente utilitarista, pode-se afirmar que o custo de oportunidade do dinheiro público não corretamente usado é virtualmente infinito. Não se perde apenas a escola, mas todos os engenheiros, médicos e professores que seriam formados com aquela escola e toda a riqueza e a inovação que esses profissionais proporcionariam ao país. Não se perde apenas o hospital, mas a vida de todos os cidadãos e toda a riqueza que essas vidas poderiam produzir. Não se perdem apenas as estradas e pontes, mas a vida e a saúde de todos os envolvidos em acidentes de trânsito, os recursos gastos com seus tratamentos, a perda de produtividade pelos dias afastados do trabalho e, ainda, toda a riqueza que deixa de ser gerada pelos negócios que sequer são iniciados por falta de infraestrutura. Não é à toa que o principal coordenador da operação Lava Jato, o Procurador da República Deltan Dallagnol, costuma apontar que a corrupção é uma serial killer disfarçada de buracos nas estradas, falta de remédios em hospitais e falta de escolas.
Além da perda do capital humano que a falta de escolas e hospitais provoca, há também toda a perda de eficiência econômica causada pela corrupção em obras públicas e outros tipos de contratos, como publicidade e serviços de informática. Há obras que custam muito mais do que precisariam custar, outras demoram muito mais tempo e há ainda aquelas que jamais deveriam existir, como as recentes obras megalomaníacas iniciadas pela Petrobras apenas para que dessem ensejo ao desvio de recursos, tais como as refinarias nos estados do Ceará e Maranhão. O país poderia talvez ter o dobro de infraestrutura com rodovias, ferrovias, portos e aeroportos se não desperdiçasse tanto dinheiro e oportunidades por causa da corrupção.
Combate à corrupção é um movimento mundial
A corrupção produz o oposto de uma economia de mercado, porque com ela não vence o mais eficiente, o mais inovador, o melhor gestor, mas a empresa que se empenha em obter canais de relacionamento por meio dos quais angaria contratos em condições favorecidas. Além disso, corrupção é custo de transação, encarece o produto final, tira competitividade da economia.
É até difícil mensurar a perda econômica acumulada em tantos anos de prática intensa de corrupção. Quão mais rico o país poderia ser se tivesse experimentado outra realidade, de intolerância e baixa prática de corrupção? Quão mais alta seria a renda per capta?
Teorias em voga na década de 1970 e 1980 sustentavam que a corrupção seria um mal menor, algo inerente à condição humana e até mesmo necessária e benéfica, como o óleo lubrificante das engrenagens políticas e econômicas. Países do primeiro mundo admitiam que suas empresas deduzissem do cálculo de seus impostos as despesas com o pagamento de propinas em outros países para obtenção de negócios. Essas teorias, felizmente, estão todas superadas. O combate à corrupção hoje é um movimento mundial. Há convenções da ONU e da OEA tratando do tema e diversos tratados bilaterais de colaboração entre países para trocas de informação que permitam o combate à corrupção envolvendo a movimentação de capitais no exterior. O mundo desenvolvido percebeu que a corrupção é causa de atraso e caminha de mãos dadas com outras formas de criminalidade, como o terrorismo, o tráfico de drogas, de armas, de pessoas e até de órgãos humanos. Os canais de sigilo financeiro que protegiam fortunas acumuladas com a corrupção serviam de igual modo para proteger todo tipo de criminoso.
Ultrapassando a visão meramente utilitarista, há ainda toda a degradação do ambiente político-institucional do país e toda a degeneração moral da cultura de valores e ideais que alicerçam uma sociedade democrática, como os ideais de justiça, de igualdade perante a lei, de confiança nas instituições públicas e privadas. A corrupção constrói um ambiente de desconfiança permanente nas relações públicas e privadas. É como se, por trás de todo ato ou gesto, tivesse de haver sempre uma má intenção dissimulada, um interesse escuso sendo defendido ou um interesse econômico não revelado sendo promovido. Essa desconfiança permanente e a consequente descrença nas pessoas e nas instituições constituem um importante fator de enfraquecimento da democracia. Não é por acaso que discursos de apologia ao autoritarismo encontram ressonância na sociedade brasileira.
A pesquisa Latinobarômetro 2017 concluiu também que 97% dos brasileiros têm a percepção de que os políticos usam o poder em benefício próprio e não para o bem comum (97%). Esta conclusão corrobora a obtida pelo Fórum Econômico Mundial, em análise de 137 países feita no segundo semestre de 2017, que coloca o Brasil em último lugar no quesito credibilidade dos políticos.
Percepção de impunidade
Aqui há que se fazer uma importante distinção de efeitos sobre a credibilidade de certas instituições produzidos ora pelo combate à corrupção, ora pela falta de combate efetivo à corrupção, algo muitas vezes maliciosamente confundido.
É fato que as sucessivas investigações de escândalos de corrupção contribuíram para minar a credibilidade da classe política e, em alguma medida, da classe empresarial que mantém contratos com o poder público. Quando se revela que alguém ou algum grupo cometeu atos ilícitos, é lógico e esperado que sua imagem pública seja prejudicada. Mas, se por um lado, essa revelação cria decepção e descrença, por outro lado, é fato também que a correta e exemplar punição de quem comete corrupção funciona como restaurador da confiança nas pessoas e nas instituições. A punição de quem comete crime pode até fazer aumentar a confiança antes existente, porquanto somente quando adequadamente testadas é que as pessoas e as instituições comprovam sua capacidade de ação e reação.
Disso deriva que a maior preocupação da população brasileira com a corrupção e a maior descrença na classe política e nas instituições talvez não decorram apenas da consciência adquirida pela revelação de práticas antes ocultas, mas também da percepção de impunidade ainda muito fortemente presente em nossa sociedade.
Embora alvissareiro o fato de que, pela primeira vez, políticos e empresários poderosos estão sendo punidos por corrupção, há ainda, inegavelmente, a percepção de que a lei ainda não é igualmente aplicada a todos e de que há segmentos ou figuras políticas que contam com especial leniência ou ineficiência das instituições.
Como reage a sociedade quando percebe que políticos já condenados por corrupção não são expulsos de seus partidos políticos ou não têm seus mandatos cassados pelas correspondentes casas legislativas? Quando assim se omitem, partidos políticos e casas legislativas minam os próprios alicerces de sua credibilidade. Há caso de partido que expulsou quem celebrou acordo de colaboração premiada, mas, não só não expulsou, como protegeu e apoiou quem foi delatado e condenado.
Como interpreta o cidadão o fato de que políticos sem foro privilegiado tiveram suas ações penais julgadas em primeira e segunda instância com relativa celeridade, ao passo que aqueles que contam com o foro privilegiado sequer tiveram suas investigações concluídas ou denúncias recebidas pelo STF? O projeto “Supremo em Números”, da Fundação Getulio Vargas (www.fgv.br/supremoemnumeros/), revela que, de 404 ações penais levadas ao STF de 2011 a 2016, somente 0,74% resultou em condenação.
Que pensa, ainda, o brasileiro quando vê cotidianamente habeas corpus sendo deferidos por alguns ministros do STF para investigados ricos e poderosos, com celeridade exemplar, enquanto milhares de outros habeas corpus, muitos impetrados pela Defensoria Pública em favor de investigados pobres e desassistidos, não conseguem sequer ser examinados pelo STF?
Há um mal-estar na sociedade brasileira com a percepção de que a mais alta corte de justiça do país não tem uma atuação uniforme e efetiva no combate à corrupção, podendo servir como instrumento de impunidade. Uma visão de mundo ultrapassada de leniência com a corrupção, como sendo um crime menos perigoso, por não envolver diretamente violência, tem conduzido à soltura de investigados, presos por ordem de juízes de primeiro grau como forma de preservar as investigações, uma vez que pessoas poderosas têm elevados meios e formas de suprimir provas e intimidar possíveis testemunhas. Ressalta em vários casos a circunstância de ministros do STF atuarem com destacada celeridade, concedendo ordens de soltura em prazos de algumas horas, com a supressão de todas as instâncias que a própria jurisprudência do STF indica que devem ser percorridas antes que a ele se apele.

Ministros incapazes de se declararem suspeitos
 Esse mal-estar cresce com a percepção de que os ministros são incapazes de se declararem suspeitos, mesmo em casos em que mantêm ou mantiveram alguma proximidade com as partes envolvidas. Recentemente, um ministro concedeu três habeas corpus a um único investigado de cujo casamento da filha foi padrinho, além de ter jantado com o investigado no exterior, segundo informou veículo de comunicação. Outro se empenhou na concessão de um habeas corpus de ofício para libertar réu reincidente, que cumpria pena por condenação em segunda instância, que fora seu chefe e destacado líder do partido para quem o ministro advogava em período anterior ao seu ingresso na magistratura. Isso é grave. Não se trata de questionar o sentimento íntimo do ministro quanto ao investigado, réu ou condenado. Não se cuida de sua isenção subjetiva, mas de sua isenção objetivamente considerada com vistas a proteger a credibilidade da instituição. A suspeição não é um instituto contra ou a favor do juiz ou do jurisdicionado; é um instituto a favor da credibilidade da Justiça, patrimônio maior dessa instituição. Não é sobre como o julgador se sente em relação à parte; é sobre como a sociedade percebe o julgador e a Justiça.
Da Justiça e do Ministério Público se exige que ajam com destemor, sem qualquer favor ou preconceito contra quem quer que seja. A Justiça, em especial a Suprema Corte, é a guardiã e a fiadora de democracia por sua presumida e esperada característica de neutralidade política, fazendo valer a lei com igual rigor para todos, sem distinção de coloração política, de posição social ou de qualquer outra ordem.
É fundamental para a democracia que haja uma profunda confiança na Justiça e na Suprema Corte. Se a sociedade não confia em alguma instituição, é de se esperar que discursos que preconizem a reavaliação do papel dessa instituição ganhem pouco a pouco espaço e força. Nenhuma instituição deve esperar que a sociedade lhe devote confiança sem que essa confiança tenha como contrapartida efetiva demonstração de merecimento quando a instituição é testada pelos desafios que os fatos da vida apresentam.
A corrupção no Brasil destruiu a confiança não apenas em certos indivíduos ou grupos políticos, mas atingiu a credibilidade de toda a classe política, de todas as instituições e da própria democracia. É preciso resgatar a democracia brasileira, sequestrada pela corrupção, sob pena de pôr-se em risco a própria sobrevivência da democracia. É preciso renovar, apesar de todas as dificuldades, a política e suas práticas. É preciso exigir de instituições como o Ministério Público e o Poder Judiciário postura de intolerância com a corrupção.
Com a corrupção sistêmica, a política deixou de ser instrumento para a realização de objetivos coletivos e passou a ser um fim em si mesma. Um meio de viver e de enriquecer. Pessoas entram na política com o principal objetivo de nela permanecer e de, por meio dela, gozar uma boa vida custeada com recursos públicos.

Pessoas mais competentes não se interessam pela política
 As pessoas mais competentes e capazes não se interessam pela política. Elas se afastam, e o espaço tende a ser ocupado por incompetentes ou mal-intencionados. Logo, as melhores decisões não são tomadas, mas apenas aquelas que interessam ao grupo político que quer se perpetuar no poder. Por isso mesmo, a pergunta sobre o que seria pior, a má gestão ou a corrupção, não faz sentido, porque a corrupção implica má gestão. A corrupção afasta o bom gestor e enviesa a tomada de decisão a partir da introdução de critérios não técnicos em sua análise.
Esse quadro se agrava com o loteamento dos cargos na administração pública entre os que apoiam o governo. Significa dizer que não há apoio automático, não há apoio gratuito, por mera afinidade de pensamento. O apoio tem de ser retribuído com a possibilidade de indicação de correligionários que cumprem duplo papel: atuam para favorecer os interesses de quem os indicou e constituem base de apoio eleitoral permanente para seus padrinhos. É como se os parlamentares que fazem as indicações contassem com permanentes comitês eleitorais mobilizados para apoiá-los em seu objetivo de permanecer no poder. O fato de tantos cargos em comissão serem ocupados a partir de indicações políticas resulta numa administração pública de muito pior qualidade, já que o que prevalece para a indicação não é a capacidade técnica do indicado, mas a força política de quem indica.
Com tão extensos efeitos negativos sobre a economia, a administração pública e a própria democracia, não há lugar para imaginar que seja possível deixar de lado esse combate em nome de conceitos tão vagos quanto enganosos, como governabilidade, como se houvesse oposição entre governabilidade e legalidade. Não interessa ao povo brasileiro uma governabilidade baseada na impunidade e no abafamento dos casos de corrupção. Essa governabilidade não transforma, não constrói, não faz o país avançar. Ao contrário, representa manter o país estagnado, com uma administração pública medíocre, sem capacidade de investimentos ou de realização, com uma economia viciada em relacionamentos privilegiados.
O momento do país é de forte preocupação com a corrupção e de exigência de seu combate efetivo, constante e sem concessões. Esse momento não passará com as eleições. Muito embora haja uma forte preocupação no sentido de que vários atores políticos possam pretender o fim, o fracasso e o esquecimento da operação Lava Jato, já não há lugar na consciência brasileira para uma volta ao teatro de ilusões em que a sociedade brasileira vivia, em que se sabia ou se presumia que alguma corrupção havia, mas não se imaginava quão extensa, disseminada e deletéria era na vida da nação. Não há como devolver ao povo brasileiro a inocência perdida.
A sociedade brasileira está amadurecendo e passando a ser mais exigente com os políticos, os administradores públicos e as instituições. Não obstante tanta miséria, pobreza e ignorância ainda no país, a classe média brasileira parece ter acordado de sua proverbial letargia. Somem-se a isso os efeitos das redes sociais, que permitem a livre e instantânea circulação de informações e, ainda, todo o instrumental da era digital para acompanhar os gastos públicos, e temos uma nova configuração de ambiente para o exercício da política e funcionamento da administração e das instituições. Já não é raro ver medidas anunciadas pela manhã serem desmentidas ou revogadas no fim do dia em face das reações provocadas na sociedade. O sentimento de participação do cidadão aumenta na mesma proporção do sentimento de vigilância e de accountability que o político e o administrador público experimentam.

Mudanças são graduais
As mudanças são graduais, mas estão em curso. Outros países venceram a corrupção sistêmica. O Brasil também pode fazer essa travessia. Reduzir ao máximo a corrupção e eliminar todo sentimento de impunidade não serão, por certo, suficientes para fazê-lo ingressar no mundo desenvolvido, mas constituem condições absolutamente necessárias para isso.
Para isso, no momento pós-eleições que se avizinha, há que se redobrar as atenções e esforços não só para promover medidas legislativas que possam prevenir e melhorar o combate à corrupção, como também para evitar retrocessos legislativos que certamente serão intentados por aqueles que se beneficiam com o atual quadro de corrupção, que são muitos e influentes. O subdesenvolvimento brasileiro não ocorre por acaso; é o resultado de muitas escolhas conscientemente feitas para beneficiar apenas alguns grupos em detrimento de toda a sociedade. O atraso, a corrupção e a impunidade no país são muito bem defendidos. Igual ou superior denodo há que existir no polo oposto para fazer o país avançar em suas práticas e costumes.
Pequenas alterações legislativas podem fazer grande diferença para o bem e para o mal no combate à corrupção. Basta observar o quanto a nova legislação voltada para as organizações criminosas impactou as possibilidades de investigação dos crimes de corrupção. A colaboração premiada permitiu que a operação Lava Jato e outras em andamento pudessem ter celeridade e profundidade antes nunca experimentadas no país.
Observe-se, ainda, o efeito na prevenção e no combate à corrupção que a possibilidade de prisão após a condenação em segundo grau traz. A corrupção é um crime racional, frio, calculado, sem emoção. Quem a pratica, baseia-se numa análise muito simples de custo-benefício da conduta. De um lado da balança, pesa-se o benefício auferido ou a riqueza conquistada. No outro prato da balança, mede-se o risco de ser descoberto e o risco de, sendo descoberto, sofrer alguma punição. Poder ser preso após a condenação em segunda instância constitui um risco extremamente mais palpável de sofrer uma punição efetiva que somente poder ser preso após o esgotamento de todos os recursos possíveis e imagináveis no STF ou mesmo no STJ, como se cogita.
O tempo de processamento das ações nos tribunais superiores e a quantidade virtualmente ilimitada de recursos à disposição da defesa produzem, para quem pode pagar bons e diligentes advogados, a certeza da impunidade decorrente da prescrição das ações penais pelo mero decurso do prazo. Veja-se o caso do ex-senador Luiz Estevão, condenado por corrupção por desvio de recursos na obra de construção de um fórum trabalhista em São Paulo. A defesa do ex-senador impetrou mais de 70 recursos! Só houve o início do cumprimento da pena após o STF restaurar sua interpretação inicial de que essa prisão é possível.
Essa, sem dúvida alguma, é uma variável decisiva na prevenção e no combate à corrupção. Se o STF modificar novamente o entendimento atual, que permite a execução provisória da pena após o julgamento de segundo grau, entendimento este que vigorou por mais de 25 dos 30 anos da nossa Constituição, para adotar o critério de esgotamento de recursos no STF ou no STJ, estará consagrando a impunidade penal para ricos e poderosos; estará sinalizando fortemente que a corrupção não será efetivamente combatida no país.

No Estado de Direito a lei vale para todos
Não há lugar para ingenuidade com esse tema. Não se deve brincar com o estado de direito. Ninguém tem o direito de desconhecer as consequências práticas de um entendimento como esse, que não tem paralelo nem mesmo nos países que são o berço do iluminismo, do devido processo legal, da presunção de inocência e dos direitos e garantias fundamentais. Tanto na França, como nos Estados Unidos, admite-se a prisão já após a condenação em primeira instância, e ninguém por lá avalia que direitos fundamentais da pessoa humana estão sendo violados. Estado de Direito é Estado em que vigora o império da lei, em que a lei vale igualmente para todos e em que há sanção efetiva para quem comete crimes.
Um Estado que consagra a impunidade para ricos e poderosos não é Estado de direito, mas Estado de compadrio, nas oportunas palavras do ministro do STF Luiz Roberto Barroso. Não é razoável imaginar que a interpretação da Constituição Federal que vigorou desde sua promulgação até ser alterada mais de duas décadas depois e restaurada em 2015 possa ser inconstitucional. Veja-se, ainda, o caso do jornalista Pimenta Neves, réu confesso em crime de homicídio, condenado pelo tribunal do júri. Mais de 13 anos após sua condenação, ainda não havia começado a cumprir a pena a que tinha sido condenado, em razão da interposição ininterrupta de recursos e mais recursos aos tribunais superiores, situação inexplicável para qualquer operador do direito no mundo. Também ele só começou a cumprir sua pena quando o STF restaurou sua interpretação inicial.
Além da questão do início do cumprimento da pena, há muitas outras medidas que podem e devem ser adotadas para incrementar a prevenção e o combate à corrupção. Aliás, quanto mais bem-sucedido o país for na prevenção da corrupção, menos traumas terá com as ações de combate.
Uma medida que faz todo o sentido na prevenção à corrupção é a de adoção plena da transparência em todos os assuntos de governo, ressalvados apenas aqueles cuja abertura do sigilo poderia comprometer a segurança ou o interesse nacional. Processos administrativos, de controle e judiciais devem ter seus atos todos públicos. Audiências de autoridades devem ser registradas e divulgadas. Transparência cria expectativa saudável de controle e sentimento de permanente accountability, um dos pilares das democracias modernas.
As dez medidas contra a corrupção idealizadas pelo Ministério Público Federal e abraçadas por parcela significativa de nossa população – mais de 2 milhões de assinaturas de cidadãos brasileiros endossaram a apresentação daquelas medidas ao Parlamento – constituíam um conjunto de propostas de alterações e inovações legislativas que visavam dar melhores instrumentos para a prevenção e o combate à corrupção. Aquelas medidas foram integralmente rechaçadas pela Câmara dos Deputados. Nenhuma delas foi acolhida.

Redução do tamanho do Estado é importante no combate à corrupção
Felizmente, a sociedade brasileira é resiliente em seu propósito de combater a corrupção. A Fundação Getulio Vargas e a Transparência Internacional convidaram mais de 200 especialistas para propor e avaliar medidas de prevenção e combate à corrupção em diversas áreas. O resultado foi um conjunto com cerca de 70 medidas enfeixadas num movimento denominado Unidos Contra a Corrupção, com uma agenda para o legislativo brasileiro com o objetivo de influenciar não só os futuros eleitos, mas também a própria eleição, na medida em que candidatos comprometidos com essa agenda de mudanças podem desde logo declarar sua adesão e, com isso, angariar votos nessa parcela da população mais consciente e preocupada com o fenômeno da corrupção.
A redução do tamanho do Estado e de suas intervenções na atividade econômica é também uma poderosa diretriz para reduzir a corrupção. Empresas estatais são grandes oportunidades para a prática de corrupção. Veja-se o exemplo da Caixa Econômica Federal. É público e notório que sua presidência, vice-presidências e diretorias são preenchidas a partir da indicação de partidos políticos que apoiam o governo federal. Qual será o interesse dos políticos pelos assuntos da empresa? Direcionar empréstimos para amigos? Colaborações premiadas celebradas no âmbito da Lava Jato revelaram como a Caixa foi usada para conceder empréstimos a grupos indicados por políticos mediante o pagamento de propina. A Caixa é usada ainda para financiar estados e municípios em períodos pré-eleitorais, para aquelas obras de última hora, que fazem vista, que dão votos às custas do equilíbrio fiscal desses entes nas gestões seguintes.
Por que razão mesmo existe a Caixa? Ou melhor, por que razão mesmo ela é mantida como empresa pública? O que faz ela como ente estatal que não poderia ser feito melhor como ente privado? Financiamento imobiliário? Todos os bancos operam no segmento, e a Caixa já não é a instituição com maior volume de empréstimos concedidos nem a que tem menor taxa de juros. Patrocínio de clubes de futebol?
O mesmo vale para o Banco do Brasil. Muito embora haja maior proteção contra a indicação de pessoas estranhas aos quadros do banco para os cargos diretivos, afinidades políticas ainda se fazem presentes nas indicações. Qual a necessidade para o país de manter dois bancos de varejo? Nenhuma. O que faz o Banco do Brasil que não pode ser feito por qualquer outro banco privado? Ou o que faz ele como banco estatal que não poderia fazer melhor como instituição privada? Seus defensores costumam apontar o financiamento agrícola, esquecendo que o banco é apenas um agente operador da política pública de financiamento da agricultura, aliás um agente operador muito bem remunerado pelas tarifas cobradas de quem realmente é o responsável pelo financiamento subsidiado da safra agrícola, que é o Tesouro Nacional. Sem o Banco do Brasil como principal operador dessa política, todos os bancos poderiam operacionalizá-la sem maiores dificuldades.

Importância da reforma dos tribunais de contas
A presença do Estado no sistema financeiro, com dois bancos de varejo de grande porte, não se justifica por nada. Deformam o mercado, produzem seleção adversa de clientes e produzem ineficiência. Esse é apenas um exemplo num setor específico. Muitos outros poderiam ser dados. Fato é que a quantidade de oportunidades de corrupção é diretamente proporcional ao tamanho do Estado e ao quanto ele interfere no ambiente econômico.
Ainda no campo das medidas legislativas, uma reforma dos Tribunais de Contas, com o fim das indicações políticas, impõe-se como medida fundamental para a prevenção e o combate à corrupção. Aliás, essa é uma das 70 medidas apresentadas pelo movimento Unidos Contra a Corrupção e uma das mais promissoras, com maior potencial de transformação da realidade.
Curioso notar como, até há bem pouco tempo, a sociedade brasileira mal sabia que existiam tribunais de contas. Menos pessoas ainda sabiam o que eles fazem ou podem fazer. Praticamente, apenas aqueles que lidam com o controle da administração pública os conheciam. Mesmo no âmbito do Poder Judiciário, poucos são os magistrados com adequado conhecimento sobre o funcionamento e as competências desses órgãos de controle externo.
Com o advento da primeira emissão de um parecer pela rejeição das contas da presidente da República em mais de 70 anos, em razão das graves fraudes fiscais apontadas pelo Ministério Público de Contas e confirmadas por meio de auditoria do TCU, e com a consequência de este trabalho ter servido de base para o impeachment da presidente da República Dilma Rousseff, fato inegavelmente de elevada importância histórica, a sociedade brasileira descobriu que havia um tribunal de contas responsável por essa fiscalização e que junto a ele funcionava um Ministério Público especializado em contas públicas.
Em razão desse desconhecimento é que muitos ainda não se deram conta da verdadeira revolução no correto funcionamento da administração pública, especialmente nos municípios e órgãos estaduais, que pode ser promovida com uma adequada reforma dos tribunais de contas. Se os números da corrupção na esfera federal assustam, os valores agregados dos desvios de recursos públicos nas esferas estaduais e municipais podem ser ainda maiores.
Como órgãos constitucionalmente concebidos para o controle da legalidade na administração pública, os tribunais de contas constituem a primeira trincheira externa no combate à corrupção. Isto é, para além de mecanismos internos de prevenção em cada órgão ou entidade, o controle externo exercido pelos tribunais de contas é a primeira linha de combate à corrupção na administração pública.
Com sua capilaridade e com a capacidade técnica de seu corpo de auditores, conjugadas com o poder mandamental de suas decisões, os tribunais de contas são os órgãos do Estado com maior capacidade e vocação para atuar na prevenção à corrupção e na sua detecção precoce, a ensejar, na sequência, a ativação de órgãos com maiores poderes de investigação, como a polícia e o Ministério Público. Quando realizam ações de controle de forma inteligente, com seleção baseada em materialidade, risco e impacto, os tribunais de contas geram expectativa de controle nos gestores públicos.
A literatura aponta que atos de corrupção ocorrem quando presentes as variáveis de motivação, capacidade do agente, racionalização e oportunidade.
Interferência política nos tribunais de contas
A expectativa de controle opera exatamente sobre a variável oportunidade. Expectativa de controle reduz a percepção de que há uma oportunidade para a corrupção. Se o agente público souber que seu ato tem probabilidade de ser descoberto pelo órgão de controle externo, há como consequência uma menor probabilidade de ele decidir praticar o ato. Se isso for conjugado com a expectativa de sofrer efetiva punição, na forma da lei, então haverá reduzida probabilidade de que a corrupção ocorra.
Daí ser muito importante que todos os tribunais de contas do país funcionem plenamente, exercendo com excelência suas competências constitucionais, o que não se tem verificado em razão da interferência política em sua composição. Não é razoável que órgãos com a missão constitucional de fiscalizar a administração pública, com poderes de aplicar sanções, possam ter seus membros escolhidos por critérios políticos, em prejuízo da formação e da experiência técnica.
Nossa experiência histórica demonstra que a indicação política favorece a captura do órgão de controle pelo grupo político dominante, especialmente em estados em que se verifica o domínio de um grupo por largo período ou de forma muito intensa, o que produz órgãos de controle omissos ou lenientes com os governantes integrantes desse grupo, sem falar no risco de corrupção sempre presente no próprio órgão de controle, que não pode ser ignorado ou subestimado, como ilustra de forma emblemática a operação Quinto do Ouro, que levou ao afastamento de seis dos sete conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro por envolvimento em práticas de corrupção consistentes no recebimento de propina para não fiscalizar adequadamente as obras do governo do estado.
O critério de indicação política, seja no nível federal, seja no estadual, tem dado azo a diversas aberrações na composição dos tribunais de contas brasileiros. Conselheiros há sem nenhuma formação superior. Há outros com formação incompatível com o exigido, como veterinária, jornalismo, etc. Há ainda chocantes indicações de pessoas processadas por improbidade administrativa ou criminalmente, por crimes contra a administração, algumas até com condenação em segunda instância. Há até mesmo casos identificados de compra de vaga de conselheiro por meio de pagamento pela antecipação de aposentadoria, com prévio acerto político acerca de quem vai ocupar a cadeira de magistrado de contas. Por óbvio, quem se presta a pagar por uma cadeira de conselheiro atuará para lograr retorno compensador para o seu criminoso investimento.
Em abril de 2014, o Senado da República estava prestes a indicar para compor o Tribunal de Contas da União um senador alvo de seis inquéritos no STF por condutas que poderiam configurar crimes contra a administração pública. Além disso, esse senador já ostentava condenação por improbidade administrativa em segunda instância.
Intensa reação da sociedade civil, das associações do Ministério Público de Contas e dos Auditores de Controle Externo, secundada, posteriormente, pelo próprio TCU, que sinalizou que negaria posse ao referido senador caso seu nome fosse indicado pelo Senado, resultou na desistência do senador-candidato. Algum tempo depois, já sem mandato e, portanto, sem o anteparo do foro privilegiado, passou a cumprir pena em Curitiba, após ser processado e condenado no âmbito da operação Lava Jato.
Destaca-se nesse relato o baixo nível de qualidade da indicação que o Senado estava a ponto de fazer para o principal órgão de controle das contas públicas brasileiras, apesar de ser amplamente conhecida a trajetória conturbada do senador, a revelar a visão deformada que a classe política tem dos tribunais de contas como órgãos em que esse tipo de indicação seria natural e aceitável.

Controle omisso incentiva o desvio
Política é veneno para os tribunais de contas. Em sua atuação, eles nada diferem, em necessidade de isenção e distanciamento da política, do Ministério Público ou do Poder Judiciário. Eliminar as indicações políticas é resgatar os tribunais de contas da captura política a que estão submetidos e promover um grande avanço na prevenção e combate à corrupção.
Não se deve subestimar o potencial dessa proposta. Assim como o controle atuante induz melhorias na administração, o oposto também ocorre. O controle omisso, leniente ou corrompido incentiva o desvio e o mau uso do dinheiro público, porquanto aumenta a percepção da existência de oportunidades para a corrupção. Parece evidente a relação direta entre a profunda crise fiscal, financeira e moral que atingiu vários estados, como o Rio de Janeiro, e a atuação deficiente ou ausente dos respectivos tribunais de contas.
O momento pós-eleições será intenso em lutas para impedir retrocessos e em dificuldades para promover avanços na prevenção e no combate à corrupção. Apesar de todas as resistências, há razões para otimismo. Ninguém disse que seria fácil mudar toda uma cultura de convívio e naturalização da corrupção, de aceitação do “rouba, mas faz”. São tantos os que se beneficiam da corrupção que seria mesmo improvável que não reagissem com vigor proporcional à magnitude de seus interesses contrariados ou postos em risco. O ex-ministro do STF Ayres Britto ensina que essa luta não será vencida por nocaute, mas por pontos, e exigirá de quem combate a corrupção resistência e resiliência.
Saber que o país poderia estar muito melhor em tantos aspectos causa indignação, mas sustenta também o desejo de mudança, porque mostra o quanto se tem a ganhar com esse combate e o quanto se deixará de ganhar se ele não ocorrer. Há muito em jogo. Todo o futuro de uma das maiores democracias do mundo está em jogo.
O político brasileiro era visto há até bem pouco tempo como uma figura superior, inquestionável, merecedora de privilégios e da mais absoluta reverência. Já não é assim. Está cada vez mais próximo do que é de fato, um servidor público qualificado, importante para o país, que merece todo o respeito, mas que tem o dever de prestar contas permanentemente à sociedade daquilo que faz. Assim, o país está mais próximo de alcançar o modelo de democracia preconizado por Louis Brandeis, notável juiz da Suprema Corte norte-americana, que afirmava que “o único título superior ao de presidente é o de cidadão“.
Condenações de personalidades que muito recentemente eram vistas como todo-poderosas, como a do ex-presidente da República, ex-presidentes da Câmara dos Deputados e ex-governadores, demostram que a aplicação da lei, de forma republicana para todos, é não só factível, como também o único caminho aceitável para edificar um país decente.
Temos uma imprensa livre, requisito fundamental para uma democracia vibrante. A transparência dos gastos públicos tem aumentado. Organizações não governamentais de controle social têm sido criadas em diversos municípios brasileiros. Há um nítido despertar da cidadania para a importância do controle permanente do exercício do poder.
Sim, as mudanças estão em curso. Um novo Brasil está sendo construído por uma geração que já não aceita viver e conviver com a corrupção e com tudo o que ela traz de deletério para a economia, para as instituições, para a cidadania, para a democracia, enfim, para a vida digna que cada cidadão merece viver no país.


Júlio Marcelo de Oliveira é graduado em Ciência da Computação e em Direito pela Universidade de Brasília. Ocupou os cargos de auditor federal de Controle Externo no TCU e de consultor legislativo do Senado Federal, nas áreas de Direito Constitucional, Administrativo e Eleitoral. Desde 2004, exerce o cargo de procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU. Exerce atualmente a presidência da Associação Nacional do Ministério Público de Contas – Ampcon.

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