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Interesse Nacional
23 dezembro 2021

Pobreza, o secundário e o principal

A pobreza numa sociedade superficialmente moderna, subcapitalista, como a nossa, só incomoda quando sua visibilidade perturba e desmente a aparente calmaria cotidiana. Sem traduzir-se, propriamente, em consciência social enquanto consciência dos seus fatores e causas. E sem expressar-se em inquietação social e política com o drama que compromete as possibilidades históricas da sociedade inteira.

As sociedades são relacionais, mesmo quanto aos grupos e categorias cuja afluência se expressa na falsa consciência de que esse é um problema apenas da vítima. De muitos modos, até imperceptíveis e invisíveis, a pobreza dos outros entra na casa e na vida de quem pobre não é, especialmente nas da classe média. A desorganização social e o estado de anomia que alcança a vida das vítimas da pobreza chega até a vida de quem pensa que é imune em relação a ela. Ninguém escapa de suas consequências.

A tolhida revolta dos pobres contra a injustiça e a degradação que a pobreza lhes impõe tem explodido, nas últimas décadas, como revolta dos fartos e nauseados filhos dos ricos, nas universidades, como observou Fernando Henrique Cardoso em As Ideias e seu Lugar: “milhões de seres que acabam por descobrir coisas contraditórias. Percebem que também de pão vive o homem e que este pão é escasso para a maioria. E percebem que só pão não basta para os já saciados”. São novas e outras as necessidades radicais a que se refere Agnes Heller, no que é cada vez mais expressão da socialização moral das carências. A rebelião do espírito, até mesmo nas frações conscientes do empresariado, é uma boa indicação do quanto a consciência social já não é prisioneira da situação de classe social.

Vimos algo parecido na década de 1970 quando multidões famintas, no Nordeste brasileiro, começaram a descer do sertão em direção às cidades para saquear o comércio. Compreensivelmente, houve medo. Tiveram, porém, a compreensão e a solidariedade de setores sensíveis e críticos da sociedade, cuja situação social era outra.
Chegamos agora a uma fase da história econômica e social brasileira em que o problema já não é propriamente a pobreza, mas a miséria e nem mesmo só a miséria, mas a fome.

Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) indicam que 19,1 milhões de brasileiros, 9% da população, estão na situação de fome. A mesma fonte indica que 116,8 milhões de pessoas estão em algum grau de insegurança alimentar, famintos ou à beira da fome. Mais da metade da população do País.

Comida do lixão

É de melancólico despistamento analisar e interpretar a miséria e a fome como questões que se atenuam com bolsas ou auxílios mensais precários e de duração incerta. Ainda assim, esses auxílios são necessários.

A alimentação insuficiente é apenas um dos aspectos visíveis do problema social. O drama está no modo de ter comida para colocá-la na mesa. Catar comida no lixo é uma delas.

Numa visita que fiz ao lixão da cidade de Vitória, no Espírito Santo, há alguns anos, vi o momento em que era virada a caçamba do caminhão de lixo para fazer o despejo da carga. Gente, urubus e cães atiravam-se para catar o que pudessem, seres humanos levando imediatamente à boca um resto de fruta ou de pão velho que a sorte lhes pusera na mão. Na conversa que tive com a moradora da favela que era líder daquelas pessoas, contou-me que tempos antes encontravam carne no lixo e a aproveitavam. Foi descoberto, porém, que lixo hospitalar estava sendo jogado no monturo e que aquela carne era placenta humana.

A recente abordagem de um caminhão de lixo num bairro rico de Fortaleza para tomar dos funcionários da limpeza os sacos e vasculhá-los em busca de restos de comida é uma indicação significativa do que se passa na consciência da vítima.

São mulheres, mães de família. Elas sabem quais são os bairros da cidade em que as pessoas têm mais do que precisam para viver e jogam no lixo o que poderia saciar a fome de moradores de outros bairros da cidade. De vários modos, isso está ocorrendo em diferentes pontos do Brasil. O muro invisível que separa ricos e pobres está sendo escalado.

A pobreza é também pobreza de lugares para dormir, para estar, para ter a sociabilidade mínima que na tradição popular brasileira tem na casa o lugar de referência. As multidões de moradores de rua, habitantes de cafofos de papelão ou de barracos de amontoados de detritos, indicam outro atravessamento da linha da demarcação social. A favela já não é o limite. Nos anos 1950, as poucas favelas e os cortiços eram o espaço residual de refúgio dos desabrigados de moradia. Quarto de Despejo, da favelada Carolina Maria de Jesus, catadora de papel, é uma etnografia vivencial da pobreza. A disseminação de sua obra fez dela instrumento de uma consciência social acima dos limites deterministas da situação de classe ou categoria social.

Urbanização patológica

A favela foi tomada, porém, também ela, pela especulação imobiliária, pela miséria de espaço, pela pobreza de horizontes. A miséria social que está se difundindo empurra os sem teto para baixo das marquises dos prédios, dos viadutos, das reentrâncias dos estabelecimentos comerciais.

A urbanização patológica faz da habitação precária um lugar de dessocialização, de perda das referências sociais. Essa dessocialização desumaniza suas vítimas, mas desumaniza também o conjunto da sociedade. O efeito desorganizador da pobreza se dissemina por uma rede invisível de relacionamentos de que todos dependem, o que dá sentido à essa espécie de usurpação da consciência dos pobres pelas novas gerações de ricos.

A pobreza de hoje, no Brasil, teve suas raízes anunciadas num estudo realizado pelo Dieese em 1974. Ele mostra os efeitos sociais da política econômica liberal e do chamado arrocho salarial que dela decorreu. O salário real de um chefe de família trabalhadora teve redução de um terço. Mas a real redução dos rendimentos da família foi de 10%, atenuada por um segundo membro que ingressou no mercado de trabalho.

O sustento de uma família passou a depender do trabalho de duas pessoas. Mesmo que com isso tenha crescido o mercado interno e que possam ter ocorrido mudanças qualitativas na estrutura de dispêndios das famílias de trabalhadores. Esse segundo membro no mercado de trabalho não raro significou trabalho precoce e suas consequências na situação social não só da mulher, mas também de adolescentes e crianças.

Num momento em que já se podia prever que a geração seguinte seria alcançada pela provável reestruturação produtiva, o estímulo à entrada antecipada de adolescentes e de crianças no mercado laboral, afastava-os da escola e da ampliação da formação escolar. O que seria um requisito para facilitar-lhes o upgrade profissional quando chegasse o momento.
Não só a mão de obra industrial foi alcançada pelo barateamento forçado do trabalho às custas da dependência das famílias em relação aos menores de idade. Na agricultura, aconteceu o mesmo, nos anos 1970. Para completar o salário, como diziam, no sustento da família, os pais tiravam os filhos da escola e colocavam-nos no trabalho duro e insalubre do corte de cana.

As vítimas improvisam. Na alimentação e na moradia, há um mundo paralelo ao mundo oficial dos teóricos do óbvio. Eles não conhecem a economia também paralela, a arquitetura, a refeição, a culinária, o sono e o sonho paralelos. Esses dois mundos econômicos, discrepantes, têm nexos de recíproca necessidade. Um gera o outro nos modos de sobreviver dos que vivem na informalidade, na precariedade e na incerteza.

Em várias de suas obras, Fernando Henrique Cardoso tem sublinhado que o problema da pobreza no Brasil não é simplesmente resultante da má distribuição da renda, mas da exploração do trabalho e da apropriação desigual da renda.

Sendo um dos fatores da pobreza o desemprego e sendo ele não só resultado da crise econômica, mas também o da reestruturação produtiva, é pouco imaginar que o problema por ela gerado será resolvido pela incorporação ao mercado de trabalho daqueles que forem excluídos em consequência da adoção de tecnologias substitutivas de trabalho.

Hiato de carência cultural

Isso porque entre o emprego extinto e o novo emprego há um hiato que só pode ser superado com a atualização tecnológica de quem perdeu o emprego. Mas o hiato é também de carência cultural, do abismo entre gerações, da pobreza de formação. E aí a probabilidade de reintegração no mercado de trabalho em condição social equivalente à que foi perdida é pequena ou nenhuma.

Especialistas em economia partem do pressuposto falso de que esse hiato é preenchido automaticamente, o próprio desemprego reeduca o desempregado. Isso certamente acontece numa escala insuficiente para reempregá-lo,
sobretudo com o salário que lhe assegure o padrão de vida de sua situação empregatícia anterior.

Para compreender a questão social que decorre dessa ruptura em que o capital constante cresce às custas do capital variável e o crescimento do capital propriamente dito empregado em equipamentos, instalações de produção, matérias-primas, infraestrutura da produção – a chamada acumulação de capital aumenta, enquanto o capital empregado no pagamento de salários diminui-, é preciso considerar que o desenvolvimento capitalista é desenvolvimento desigual, e não homogêneo, mesmo nos países ricos.

Diferentes momentos do processo de produção se desenvolvem em ritmos diferentes: uns se modernizam mais depressa que outros e outros até mesmo ficam estagnados por fatores tecnológicos. Além disso, setores inteiros da economia tornam-se mais modernos que outros. Esses avanços criam desemprego sem criar empregos substitutivos na mesma proporção. Durante muito tempo, a comparação clássica desse desenvolvimento desigual foi entre indústria e agricultura. Até os anos 1950, isso era visível e intenso. Mas a agricultura passou a se desenvolver tecnicamente num ritmo tão intenso quanto a indústria.

Todos se lembrarão de que até os anos 1970, em certos ramos da agricultura, o corte da cana e a colheita do café eram feitos pelos chamados boias-frias, os assalariados temporários. Eles eram as vítimas do primeiro grande salto na reorganização da produção agrícola, com o fim dos regimes de trabalho que com o fim da escravidão substituíram o trabalho escravo sem disseminar o trabalho assalariado e sem modernização do processo de trabalho. Na medida em que os fazendeiros se deram conta de que a industrialização criara um mercado interno de gêneros alimentícios que eram produzidos na agricultura de colonos e moradores das fazendas, decidiram fazer, eles próprios, esses cultivos com técnicas modernas, mais produtivas, otimizando o uso da terra. Nos últimos anos, tanto a colheita de café quanto o corte da cana passaram a ser feitos com sofisticadas tecnologias poupadoras de mão-de-obra.

A mão de obra temporária até então utilizada passara em boa parte a ser a de migrantes sazonais, no caso dos canaviais de São Paulo, vindos de Minas e do Nordeste, pequenos produtores agrícolas, pobres, que enviavam os jovens e os pais de família para o trabalho temporário no Sudeste durante o período de vacância da lavoura local, nos lugares de origem. Os ganhos dos ausentes asseguravam a sobrevivência da agricultura familiar.

Portanto, a pobreza tem sido aqui um fenômeno social de visibilidade distorcida, o que contribui para que a consciência social que dela temos seja inócua porque geralmente tardia. Poucos se dão conta do desencontro que há entre a visibilidade da pobreza, sobretudo nas ruas das grandes cidades, e as estatísticas que a medem. O que as estatísticas de pobreza medem são indícios quantitativos do que a pobreza é. Mas ela não é apenas nem principalmente quantidades do quanto de carne, de pão, de arroz, de feijão, de verdura uma pessoa come por dia ou deixa de comer.

Nesse sentido, não induzem medidas, providências e reações que se possa reconhecer como providências adequadas para resolvê-la. Providências insuficientes, são, não raro, tomadas com motivações impróprias, meramente adjetivas em relação a medidas que tem outros objetivos. Caso de bolsas e auxílios.

Arte da mendicância

Há no Brasil uma disseminada falsa consciência do que a pobreza efetivamente é. Os ricos e a classe média têm da pobreza, entre nós, uma compreensão deformada que ainda é herança dos tempos dos esmoleiros de porta de igreja e dos de entrada da estação de trem. Hoje, pobre não é propriamente esmoleiro. O esmoleiro era o sujeito de certo modo conformado com sua situação, comum nos anos 1950. Resquício dos desvalidos da sociedade estamental. Aparecia em referências e estatísticas como uma categoria social, de pessoa em situação permanente, definido como mendigo e “profissionalmente” dedicado à mendicância. No modo de apresentar-se e de pedir esmolas, seguia um roteiro, usava uma linguagem apropriada, teatral, gestos correspondentes.

A mendicância era uma arte. O que não quer dizer que não se tratasse realmente de uma vítima da pobreza porque doente, aleijado, abandonado. Aquele sem condições de trabalhar porque, no geral, emprego havia. Não era raro que a mendicância caísse sob suspeita de malandragem, no fingimento de doenças, de aleijões forjados. Essa modalidade de pobreza era definida como não tendo remédio ou até como “não tendo cura”.

A pobreza de agora é outra, radicalmente diferente da pobreza que se resolvia com esmola. O esmoler dava visibilidade explicativa à pobreza. Já não é assim a pobreza de hoje, do faminto e do desabrigado. Se causa e efeito da pobreza chegassem à consciência social sem a demora do desvendamento, haveria mais clareza sobre ela. De modo geral, a consciência social da gravidade da pobreza contemporânea tem sido aqui, consciência tardia.

Por tudo isso, o Brasil pode ter chegado ao ponto sem retorno na questão da pobreza. Nos numerosos artigos que na mídia e mesmo nas publicações especializadas têm dela tratado, no geral, não toca-se no essencial. Muitos dos que a ela se referem acham que o desenvolvimento científico e tecnológico criará automaticamente os empregos substitutivos dos empregos descartados pela modernização do processo produtivo nos diferentes setores da economia.

Não está criando nem criará. A economia brasileira não se desenvolve harmonicamente, coisa que também acontece em outros países que, como o nosso, têm um considerável débito histórico com o passivo estrutural da dominação colonial e da escravidão que a sustentou. A sociedade brasileira carrega esse passado no seu presente anômalo e postiço. A mentalidade da maioria dos nossos empresários ainda é a mentalidade de quem chegou tardiamente ao capitalismo e não sabe o que fazer com esse capitalismo retardatário. Modernizam destruindo as bases sociais de sua própria sobrevivência, o mercado.

Nossos políticos, na maioria, não ficam atrás. Ainda são personagens interesseiros da estrutura de poder de um país atrasado. Representam a contrapartida própria do subcapitalismo brasileiro. O atraso social e econômico é um sistema conexo de degradações que puxam o País para baixo.

É sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e pesquisador emérito do CNPq. Foi Professor da Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge (UK) e fellow de Trinity Hall

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