14 outubro 2019

Populismo Autocrático e Resiliência Constitucional

Após 25 anos de estabilidade política, alternância de poder, adoção de reformas e de políticas econômicas que favoreceram equilíbrio fiscal e certa racionalidade econômica, além da implementação de políticas sociais que geraram melhorias incrementais nas condições de vida da população, seria correto afirmar que a democracia constitucional, estruturada em 1988, vinha sendo bem-sucedida.
Apesar das inúmeras deficiências e da falta de avanços mais significativos em áreas tão importantes como segurança pública, aumento da produtividade econômica e, sobretudo, redução da profunda e persistente desigualdade, com efeitos perversos sobre os mais vulneráveis, o sistema político se demonstrava estável. As distintas forças partidárias vinham competindo e coordenando seus conflitos em conformidade com os procedimentos democráticos estabelecidos pela Constituição.
Mesmo quando suas discordâncias se referiam a preceitos e escolhas constitucionais, foi possível alcançar consensos e promover reformas, sem traumas ou rupturas. Importante destacar que constante processo de adaptação constitucional, que gerou a aprovação de mais de 100 emendas em três décadas, jamais colocou em risco o cerne do pacto de 1988, composto por um regime democrático pluralista, uma generosa carta de direitos, assim como um robusto sistema de separação de poderes.
O Brasil, nesse sentido, poderia ser considerado um caso em que a democracia se estabilizou e promoveu avanços em relação ao período autoritário. Esses avanços são certamente insuficientes, face aos inúmeros problemas enfrentados pela população brasileira, mas não devem ser ignorados. Essa também parece ser a conclusão dos cientistas políticos Scott Mainwaring e Fernando Bizzaco, após analisar a trajetória das 91 democracias que surgiram, entre 1974 e 2012, no que se convencionou chamar de “terceira onda de democratização”. Os autores, que levaram em consideração variáveis relativas ao fortalecimento institucional, respeito a direitos e alternância no poder, classificaram os 91 regimes em 4 grupos. A democracia colapsou em 34 países; em 28 países, a democracia entrou em estagnação; em 4, houve retrocesso; e o Brasil foi colocado no grupo de 23 países em que a qualidade da democracia avançou entre o momento da transição e 2017, ponto final da pesquisa[1].
A partir de junho de 2013, no entanto, a estabilidade política obtida pelo presidencialismo de coalizão, os avanços incrementais no campo social promovidos pelas políticas públicas de saúde, educação e assistência, a própria racionalidade econômica estabelecida a partir do plano Real e mantida nos sucessivos governos, assim como a lealdade às regras e valores constitucionais parecem ter entrado em processo de regressão[2].
Os escândalos de corrupção, que tiveram um primeiro ato com o Mensalão, a partir de 2006, tomaram uma dimensão avassaladora com os avanços da operação Lava Jato, a partir de 2013. Se o Partido dos Trabalhadores foi o principal alvo da operação, que teve forte influência no impeachment da ex-presidente Dilma e levou à contestável prisão do ex-presidente Lula, seu maior líder, a Lava Jato também afetou duramente os partidos que dominaram o centro da arena política brasileira nos primeiros 25 anos de democracia. Mais do que isso, ao expor as entranhas dos esquemas relacionados ao financiamento de campanhas políticas, a operação Lava Jato provocou um declínio da confiança da população nos partidos políticos e no Congresso Nacional.
As eleições de 2014 se deram num ambiente de crescente acirramento e polarização política. Pela primeira vez neste ciclo democrático, o resultado de uma eleição presidencial é contestado judicialmente pelo candidato derrotado. Os desencontros do governo Dilma no plano econômico, assim como o tensionamento das relações entre o Executivo e o Legislativo colocaram o governo em uma posição de vulnerabilidade. As ruas voltaram a ser ocupadas, agora não mais por jovens demandando melhorias nas políticas de saúde e educação ou maior representatividade na política, mas, sobretudo, por grupos conservadores, pautados pelo discurso anticorrupção, pelo liberalismo radical e antiestatal, assim como pelo patriotismo, o militarismo e mensagens explicitamente antidemocráticas[3].
STF deixa de ser visto como árbitro imparcial
Com o avanço da Lava Jato e do processo de impeachment de Dilma Rousseff, percebe-se uma mudança no padrão de funcionamento das instituições, que passaram a utilizar as suas competências e prerrogativas de maneira cada vez mais incisiva e arbitrária, com o objetivo de debilitar adversários ou entrincheirar-se no poder. O próprio Supremo Tribunal Federal, marcado por divisões internas, é tragado pela crise política, deixando de ser visto como um árbitro imparcial do conflito entre Legislativo e Executivo.
Dentro deste contexto de crise econômica, forte polarização política e acirramento do conflito institucional, a desconfiança da população no sistema político aumentou. De acordo com o informe 2017 do Latinobarômetro, os brasileiros passaram a ser aqueles que menos acreditam na democracia, entre os 18 países da região, o que se demonstrou um solo fértil para a ascensão de forças populistas de matiz autoritária.
Bolsonaro enfeixa uma demanda difusa por “acabar com tudo isso que está aí”. Promete governar sem conluios e esquemas que marcaram o presidencialismo de coalizão. Promete acabar com o ativismo e “coitadismo”, contrapondo-se a diversas pautas progressistas, muitas delas ancoradas na Constituição, que sempre geraram enormes resistências por parte da direita não liberal brasileira, como a defesa do meio ambiente ou dos direitos humanos. Acena aos ultraliberais sua intenção de remover todos os obstáculos regulatórios, assim como custos sociais postos à atividade econômica. Também se propõe a ser mais duro no combate ao crime e na manutenção da ordem, flexibilizando os limites legais ao exercício da violência pelo Estado e agentes paraestatais, como as milícias. Declara ainda guerra a políticas identitárias e de gênero, como forma de atrair grupos religiosos mais conservadores. Em resumo, Bolsonaro articula não apenas uma agenda de desconstrução das políticas adotadas pelos governos anteriores, o que é natural no processo de alternância democrática no poder, mas também de ataque à própria matriz constitucional de 1988.
Passados quase nove meses de governo, duas questões de natureza política se impõem: em primeiro lugar, se o governo conseguirá promover suas reformas sem contar com uma sólida base de sustentação no parlamento; em segundo lugar, se nossa democracia constitucional, que se demonstrou bastante resiliente nas últimas três décadas (apesar da crise aberta em 2013), resistirá às estocadas de um presidente expressamente hostil a diversos valores e princípios assegurados pela Constituição.
O presidencialismo sem coalizão
 A Constituição Federal promulgada em 1988 estabeleceu uma democracia altamente consensual, ao conjugar o presidencialismo com multipartidarismo, bicameralismo, robusta separação de poderes, federalismo, constituição rígida, com uma extensa carta de direito e um forte sistema de controle de constitucionalidade. Isso deveria exigir daquele que é eleito presidente da República a capacidade de gerar amplos consensos para levar a cabo suas pretensões e colocar em prática suas políticas.
Em primeiro lugar, deve ser capaz de formar uma base aliada para promover as mudanças legislativas e manter seu orçamento para transformar suas preferências em políticas públicas. Isso implica uma constante negociação com um grande número de partidos políticos, mas também a construção de apoios junto aos governadores das distintas regiões do país. De outro lado, se o resultado das negociações políticas ameaçarem direitos ou afetarem interesses constitucionalmente entrincheirados, o Judiciário poderá anular a legislação ou atos administrativos em questão. Em face da amplitude e ambição de nosso pacto constitucional, o poder daqueles que têm por responsabilidade promover e guardar a Constituição também cresceu. Daí a centralidade alcançada pelas agências de aplicação da lei, como o Ministério Público, o Judiciário e, em especial, o Supremo Tribunal Federal, a partir de 1988.
Para muitos cientistas políticos, como Giovani Sartori, essa conjugação entre presidencialismo e multipartidarismo é uma receita para o fracasso, que levará inevitavelmente à paralisia ou à crise. Esse pessimismo é partilhado por Sérgio Abranches, para quem o “presidencialismo de coalizão” é “caracterizado pela instabilidade”. Fernando Limongi e Argelina Cheibub perceberam, no entanto, que a Constituição de 1988 entregou uma série de instrumentos ao presidente, como as medidas provisórias, a iniciativa legislativa, mecanismos de controle da agenda parlamentar, além do controle da realização do orçamento, que permitem ao chefe do Executivo obter uma razoável taxa de sucesso junto ao legislador.
Após diversos governos bem-sucedidos, mas também dois processos de impeachment, é necessário reconhecer que em termos de governabilidade, o presidencialismo de coalização brasileiro pode ser tanto profundamente funcional quanto disfuncional. O fator determinante entre o sucesso e o fracasso parece ser o interesse e a capacidade do presidente da República de manejar seus poderes institucionais para construir uma coalizão sólida no Legislativo, cujo resultado de negociações sobreviva ao controle pelo Judiciário. Não se pode desprezar, evidentemente, aquilo que abala a estabilidade de qualquer governo, que é o sucesso econômico, bem como crises políticas decorrentes de grandes escândalos de corrupção, associadas à própria manutenção de coalizões partidárias amplas e heterogêneas. Mas, como o curto governo de Michel Temer deixou claro, mesmo sob forte ataque e baixíssima aprovação, aquele que for capaz de contar com uma forte coalizão parlamentar será capaz de sobreviver e governar.
Nesse contexto, o governo Bolsonaro oferece uma espécie de teste ao argumento, pelo menos no período inicial de seu mandato. Isso porque Bolsonaro desde a campanha – e durante o mandato – rejeitou a ideia de realizar os tipos de negociação que o presidencialismo de coalizão demanda. A questão que se coloca, portanto, é se um presidente da República que se nega a construir uma base de apoio pela lógica da negociação partidária, assim como distribuição de postos governamentais, consegue governar com estabilidade.
Há que se fazer uma ponderação preliminar, no entanto. Embora Bolsonaro condene a concessão de emendas parlamentares e de cargos públicos como parte de uma “velha política”, a ser combatida e criminalizada, na prática, o Executivo tem liberado emendas parlamentares como contrapartida ao atendimento de interesses do governo, como no caso das votações da reforma da Previdência.
Na composição dos 22 ministérios e órgãos equiparados, apenas sete possuem filiação partidária. Isso não significa que as nomeações não tenham atendido a pressões específicas de bancadas parlamentares (BBB – Bíblia, Bala e Boi), seja na indicação de nomes ou no seu veto, o que ocorreu no caso do educador Mozart Ramos, impedido de assumir o ministério da Educação.
Nesse sentido, o governo Bolsonaro não é tão avesso a negociações ou concessões ao Congresso Nacional, como propaga, mas o faz de maneira mais pontual, caso a caso, como tem sido noticiado em referência à pretensão do presidente de nomear seu filho como embaixador do Brasil em Washington. Se existe um processo de construção da base partidária, ele não se dá pelas vias usuais. Ao contrário, a atuação política mais visível da presidência de Bolsonaro ocorre na comunicação com sua base eleitoral, que pressiona os parlamentares, gerando muitas vezes crítica e antagonismo por parte dos congressistas.
Porém, diferentemente do que se poderia imaginar, esse discurso antagônico em relação ao Congresso não inviabilizou sua atividade com o Legislativo. É fato que Bolsonaro apresentou um desempenho ligeiramente abaixo da média nos primeiros seis meses de governo, pelas métricas tradicionais de eficiência: calculadas pela taxa de dominância e taxa de sucesso. Pela taxa de dominância, analisa-se quanto da legislação aprovada pelo Congresso foi proposta originalmente pela presidência da República; uma forma de verificar quanto da pauta de debate do Legislativo gira em torno da agenda do Executivo. Pela taxa de sucesso, verifica-se quanto das propostas enviadas pelo Executivo ao Congresso são aprovadas; uma forma de examinar o grau de deferência do Legislativo às propostas do Executivo. Em conjunto, tais métricas devem indicar se a política legislativa gira em torno e nos termos da presidência da República. Nos dois casos, Bolsonaro teve resultados próximos ao de Dilma, com números abaixo de Collor, Itamar Franco e, de forma muito expressiva, Lula. Porém, teve desempenho ligeiramente superior a Temer e a Fernando Henrique Cardoso.
A despeito das semelhanças quantitativas em dados agregados, Fernando Limongi apontou em recente apresentação na FGV para as peculiaridades do desempenho de Bolsonaro. Em primeiro lugar, o presidente tem obtido uma taxa de sucesso muito baixa na aprovação de medidas provisórias. Das 27 MPs editadas, apenas três foram convertidas em lei; nove perderam validade; e 15 encontram-se formalmente em tramitação; sendo que diversos dispositivos relevantes de MPs aprovadas foram expressamente rejeitados, como a mudança da Funai para o ministério da Agricultura ou a autorização para que o governo controlasse as ONGs (MP 870). Na visão de Limongi “nenhum outro presidente teve tantas MPs perdendo a validade ou sendo rejeitadas”. Talvez o contraexemplo mais emblemático desse desinteresse ou fragilidade legislativa tenha sido a aprovação da MP da liberdade econômica, açodadamente aprovada sob a batuta do governo, inclusive à revelia do projeto original gestado no ministério da Economia, contendo muitos dispositivos tecnicamente imprecisos, que vão gerar enorme insegurança jurídica, além de ter invalidamente contrabandeado mais uma etapa da reforma trabalhista.[4]
Embora seja muito cedo para estimar se os projetos de lei apresentados pelo presidente serão aprovados, uma análise preliminar de sua tramitação permite dizer que uma vez encaminhados ao Congresso, o Executivo parece perder o interesse pela sua aprovação. Nesse sentido, o protagonismo do Executivo na condução da agenda legislativa, característico do presidencialismo de coalizão brasileiro, a partir de Itamar Franco, vem sendo transferido para o Congresso Nacional. No caso da reforma da Previdência, o deputado Rodrigo Maia assumiu o protagonismo do processo, conformando a proposta à visão dos parlamentares.
Já no caso do pacote anticrime – que entre inúmeras medidas se propôs a flexibilizar a excludente de ilicitude, o que favorecerá a impunidade de policiais violentos e arbitrários – formulado pelo ministro Sérgio Moro, temos assistido a um movimento inverso. Não só Rodrigo Maia não assumiu o protagonismo legislativo, como constrangeu publicamente o ministro da Justiça, anexando o pacote a outros em tramitação, sem que isso tenha gerado uma reação mais contundente do presidente. Hoje o projeto depende, sobretudo, da capacidade da “bancada da bala” e dos “lavajatistas” para ser aprovado. Outras pautas conservadoras, esposadas por Bolsonaro, como os projetos relativos a temas como “escola sem partido”, redução da idade penal ou a ampliação das restrições ao aborto legal também caminham lentamente no Congresso Nacional.
A grande exceção nessa relação que demonstra uma certa passividade do Executivo foi a disputa em torno da flexibilização do Estatuto do Desarmamento. Após uma série de decretos contestados pelo próprio Congresso, a partir do entendimento de que usurpavam competência do legislador e também da propositura de 5 ações junto ao Supremo Tribunal Federal contra os referidos decretos, o governo foi capaz de fazer um acordo pontual, que alterou dispositivo do Estatuto do Desarmamento, flexibilizando o porte de arma em toda a extensão de propriedades rurais.
Os dados acima apontam que a ausência de uma coalizão bem estruturada não tem impedido o presidente de obter alguns avanços no plano legislativo, quando há dentro do parlamento certo consenso em torno da proposta, como no caso da reforma da Previdência. Apontam, porém, que o governo tem tido mais dificuldade na aprovação de medidas provisórias, com conteúdo mais controvertido. Por outro lado, indicam que o governo elaborou pauta muito restrita, direcionada ao atendimento de demandas específicas de seus apoiadores mais conservadores, que se encontram organizados em bancadas temáticas, e não em coalizões políticas. Essa pauta, segundo levantamento realizado pela Folha de S.Paulo, em 10 de setembro de 2019, vem perdendo espaço, sem que o governo se mobilize para que seja deliberada e aprovada. Rodrigo Maia é quem tem determinado a agenda, na qual “a prioridade é a pauta econômica”.
Apesar desse limitado sucesso legislativo é necessário lembrar que havendo recuperação do quadro fiscal o governo adquire maior capacidade de atrair uma ampla e heterogênea base de apoio parlamentar. Enquanto a base não for ampla e sólida o governo terá mais dificuldade de fazer avançar sua agenda legislativa, assim como o presidente se manterá mais vulnerável a eventual pedido de afastamento por crime de responsabilidade (impeachment), pela ausência do que Aníbal Perez-Linan chama de “escudo legislativo”. O reposicionamento do vice-presidente da República, que durante a campanha manteve uma postura bastante agressiva e eventualmente contrária a valores democráticos, em alguma medida indica que tem consciência sobre a possibilidade de impeachment de um presidente que não dispõe de uma forte base parlamentar.
 O poder da caneta
Mais do que disputar a aprovação de emendas, leis e MPs no Congresso Nacional, onde não dispõe de uma coalizão ampla e estável, o governo Bolsonaro – de maneira semelhante ao governo Trump, que não dispõe de maioria nas duas casas do Congresso – tem se concentrado em atos administrativos, ordens presidenciais e na edição de decretos. Esse último parece ser o meio jurídico pelo qual ele persegue parte importante de sua agenda. Nos primeiros oito meses de governo, Bolsonaro editou mais decretos (338) do que FHC (255), Lula (259) e Dilma (135) no mesmo período de seus primeiros mandatos. Metade desses decretos destinam-se a reestruturar órgãos da administração pública, com ênfase em criar ou remanejar cargos em comissão; modificar, delegar ou redistribuir competências; alterar a composição de órgãos; e modificar funcionamento de órgãos. As reestruturações nos colegiados analisados apontam a centralização do poder decisório nas mãos do governo e a diminuição da participação da sociedade civil.
É nesse nível de atuação por decretos que Bolsonaro lida com áreas politicamente sensíveis e centrais ao seu discurso eleitoral, como meio ambiente, indígenas, comunidade LGBT, tortura, trabalho escravo ou direitos das crianças e adolescentes. Bolsonaro tem lidado com esses temas que são objeto de proteção especial da Constituição por meio de decretos, que, de modo geral, independem de negociação com o Congresso. Essa estratégia indica que o governo tem buscado sistematicamente reduzir a eficácia de direitos constitucionais ao fragilizar as esferas de formulação de políticas públicas, de promoção e defesa desses direitos. O presidente também parece utilizar esses decretos para responder às demandas de suas bases eleitorais mais radicais, como vem ocorrendo no campo da flexibilização do acesso e porte de armas de fogo.
Esse emprego sistemático de decretos presidenciais para reduzir o impacto de políticas públicas, especialmente no campo dos direitos fundamentais, não tem passado despercebido dos demais poderes. Tramitam na Câmara dos Deputados nada menos que 32 projetos de decreto legislativo voltados a derrubar decretos presidenciais, tendo o presidente já sido derrotado em duas ocasiões. Nos oito primeiros meses do governo Lula, foram apresentados apenas 2 projetos de decretos legislativo com a mesma finalidade, sendo que nenhum foi aprovado. No governo Dilma nenhuma proposta desse tipo foi sequer apresentada.
Desafios à jurisdição contramajoritária
Não se pode compreender o funcionamento do sistema político brasileiro sem também levar em consideração o comportamento do Judiciário e, em especial, do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, não surpreende que o presidente Bolsonaro venha envidando esforços para se aproximar do Supremo Tribunal Federal, por meio de uma interlocução com o ministro Dias Toffoli. Na qualidade de presidente do Tribunal, Dias Toffoli detém o controle da pauta de julgamentos, decide casos urgentes durante as férias forenses e coordena os debates e votações do plenário. No mais, seus poderes não suplantam os poderes monocráticos dos demais ministros e nem a vontade da maioria dos ministros em plenário.
A presidência do Supremo Tribunal Federal tem buscado construir relações amistosas com as novas forças políticas que assumiram o poder do outro lado da Praça dos Três Poderes. Em maio de 2019, deixou-se seduzir pela assinatura de um “Pacto Republicano”, com a finalidade de remover obstáculos às reformas da Previdência e Tributária, no que foi duramente criticado por magistrados e políticos de oposição. O ministro Dias Toffoli também tem buscado construir uma agenda que não gere grandes desconfortos ao Executivo. Mesmo quando colocados na pauta, não necessariamente entram em julgamento. Nos primeiros seis meses de governo, casos envolvendo demarcação de terras indígenas e reservas ambientais, execução provisória da pena e porte de drogas para uso pessoal chegaram a ser pautados, porém foram retirados de pauta ou não foram objeto de deliberação. Nos casos efetivamente julgados, o Supremo proferiu algumas decisões desfavoráveis ao presidente Bolsonaro, mas cedeu parcialmente em outras matérias. Mesmo nas decisões desfavoráveis ao governo, há ressalvas relevantes a serem apontadas. Em alguma medida, o Supremo parece ter retornado a um padrão de comportamento que marcou os primeiros anos da redemocratização, em que foi bastante deferente com o Executivo, apenas impondo derrotas com base em regras processuais ou de competência explicitas. Dessa forma, o Tribunal demonstra que tem poder, que tem capacidade de constranger, mas que está disposto a exercê-lo de maneira moderada.
Ao avaliar medida provisória que transferia a responsabilidade sobre demarcação de terras indígenas para o ministério da Agricultura, o plenário do STF considerou a MP inconstitucional pelo fato de se tratar de reedição de medida provisória já rejeitada pelo Congresso, não por ameaçar os direitos indígenas. Um caso muito simples de vício formal da legislação (ADI 6062 e outras). Ao julgar a constitucionalidade do decreto que determinou a extinção de inúmeros conselhos de participação social, o Tribunal não aceitou discutir a eventual agressão ao princípio democrático e ao pluralismo, assegurados pela Constituição. Apenas determinou que o decreto não poderia extinguir conselhos criados por lei (ADI 6121).
Mesmo quando o Supremo Tribunal Federal foi mais enfático, o fez em uma causa de pouca relevância prática para o governo, apesar de seu valor simbólico. Julgou a constitucionalidade, por unanimidade, de dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente que afirmam que crianças e adolescentes possuem ampla liberdade de locomoção não podendo ficar sujeitas a ações abusivas dos agentes de segurança e aplicação da lei, indeferindo ação ajuizada em 2005 pelo PSL (partido do Presidente). Neste caso, alguns ministros do Supremo usaram a oportunidade para enfatizar a importância de se respeitar os valores democráticos e os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição (ADI 3446). Na ocasião, ministros realizaram críticas substantivas ao pedido do PSL. Os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes chamaram a pretensão do PSL de “prática higienista”, enquanto o ministro Celso de Mello fez questão de explicitar que se tratava de um pedido do partido político que está no governo. Uma crítica mais dura foi realizada pelo ministro Luís Roberto Barroso sobre a agenda regressiva do governo:
Ministro Luís Roberto Barroso:Quem achar que o problema da educação básica no Brasil é escola sem partido, identidade de gênero ou saber se 1964 foi golpe ou não foi golpe está assustado com assombração errada”.
O caso em que o Supremo mais contrariou interesse do presidente Bolsonaro, no entanto, foi o da criminalização da homofobia. O julgamento deu-se em diversas etapas, ocupando seis sessões do plenário da Corte. Durante esse período, foi protocolado no Senado Federal um pedido de impeachment, por crime de responsabilidade, contra os quatro ministros que votaram pela criminalização da homofobia no início do julgamento. A maioria dos votos apenas foi formada na sessão do dia 23 de maio, um dia após o Senado se mobilizar para legislar sobre o tema e protocolar um pedido para que o julgamento fosse suspenso, dada a inexistência de omissão legislativa. Assim que o ministro Celso de Mello informou os demais ministros sobre o requerimento, o ministro Marco Aurélio manifestou-se de forma favorável à suspensão. Logo em seguida, o ministro presidente Dias Toffoli afirmou que faria “uma sugestão” ao plenário para suspender a sessão, considerando que os votos já proferidos resultaram na mobilização do Legislativo, quando sua fala foi interrompida pelo ministro Celso de Mello:
Ministro Celso de Mello:Se Vossa Excelência puder me permitir, votos que nos valeram uma denúncia perante o Senado Federal, pedindo a instauração de processo de impeachment contra os 4 ministros que já votaram por suposta prática de crime de responsabilidade, numa manifestação superlativa por parte dos denunciantes, uma vez que o fundamento invocado – falta de decoro – não tem simplesmente aplicação ao caso. E mais: põe em discussão, uma vez mais, uma questão que o tribunal decidiu em 1898, em recurso interposto em processo oriundo do Rio Grande do Sul, quando o ilustre advogado Rui Barbosa, patrocinando a causa, discutiu a absoluta inadmissibilidade do chamado “crime de hermenêutica”, ou seja, pune-se o magistrado por decidir, por pensar de uma forma diferente ou não. E salientou então Rui, nesse processo, que na independência dos juízes reside a independência da magistratura. Sem juízes independentes não há cidadãos livres. A despeito de tudo, a intolerância foi agora processualizada no Senado Federal com essa denúncia contra quatro juízes dessa Corte porque, simplesmente exercendo seu dever jurisdicional, formularam decisões absolutamente compatíveis com a ordem constitucional”.
Ministro Dias Toffoli:Eu iria fazer uma sugestão, mas, diante da colocação agora do eminente decano ministro Celso de Mello, vou colher os votos com relação ao pedido de adiamento”.
Assim como vem ocorrendo nas relações entre o Executivo e o Legislativo, o Supremo Tribunal Federal não assumiu uma postura de enfrentamento direto com o Executivo. A agenda vem sendo conduzida pelo presidente do Supremo de forma a não criar problemas para o governo. Toffoli certamente agradou o Planalto ao suspender as investigações baseadas em dados do Coaf que não foram obtidas com prévia autorização judicial, a pedido dos advogados do senador Flávio Bolsonaro, durante o recesso do Tribunal. Por outro lado, os demais membros enviam sinais de que não admitirão uma intervenção em sua autonomia, assim como poderão exercer sua função contramajoritária, invalidando atos e normas de interesse do governo Bolsonaro que afrontem a Constituição. O fato é que a própria falta de ambição do governo no plano legislativo não tem imposto maiores dificuldades ao Supremo.
O grande desafio do Supremo no futuro próximo está relacionado ao julgamento de diversas questões decorrentes da Lava Jato, como a validade das prisões em segunda instância ou o pedido de anulação da sentença que condenou Lula, sob o argumento de que o juiz Sergio Moro não lhe assegurou um julgamento imparcial. Como a publicação dos diálogos entre membros da operação Lava Jato, tem ficado cada vez mais difícil sustentar a imparcialidade do julgamento de diversos réus, entre os quais o ex-presidente Lula. Dependendo do posicionamento do Tribunal nesses diversos casos, isso gerará uma forte reação dos setores lavajatistas que apoiam o governo. O que nunca se pode negligenciar quando se busca compreender o comportamento do Supremo é que se trata de uma instituição com enorme dificuldade de coordenação entre os seus componentes, o que significa que jamais haverá uma reação em bloco, salvo para a defesa das próprias prerrogativas do Tribunal.
Se o governo Bolsonaro mantiver a tendência de se utilizar de decretos, atos administrativos com desvio de finalidade e ordens paralegais, o Supremo Tribunal Federal e as demais esferas da Justiça deverão ser chamadas a lidar de maneira cada vez mais sistemática com essas novas formas de ataque à ordem institucional. Possivelmente, será necessário apurar os critérios para a operação dos mecanismos existentes de controle ou mesmo criar novas categorias que deem conta dessa forma de governar marcada por comunicações não institucionalizadas, seja por mídias sociais ou por determinações que nunca chegam a se tornar atos juridicamente formalizados. Uma forma de comunicação que, diga-se de passagem, tem sido uma das marcas de um novo tipo de populismo autocrático em diversas partes do mundo.
Testes extremos para a resiliência constitucional
 O enredo da onda de populismo autocrático é mais sinuoso e sofisticado do que o dos autocratas do passado, com seus tanques, baionetas e fechamento de parlamentos e tribunais. No populismo autocrático contemporâneo, o lastro eleitoral e as prerrogativas institucionais são utilizadas como instrumento para fragilizar os limites constitucionais ao exercício do poder, procedimentos de participação da sociedade – especialmente de grupos críticos ao governo –, regras de transparência, garantias do estado de direito e, em especial, direitos de grupos demonizados pelos que apoiam o regime, que podem ser imigrantes, ativistas, indígenas, criminosos comuns, ou qualquer outro grupo considerado “inimigo” do povo.
Quando os novos populistas dispõem de maioria parlamentar, como nos regimes parlamentaristas da Hungria ou Polônia, ou em regimes presidencialistas em que o governo foi capaz de formar uma ampla base de sustentação no parlamento, como na Turquia e Venezuela, alterações legislativas, reformas e alteração da composição dos tribunais e emendas constitucionais tendem a ser as ferramentas naturais para se subtrair da Constituição sua essência democrática e liberal.
No Brasil, como nos Estados Unidos, a falta de uma maioria parlamentar e a própria forma como foram dispostas as instituições, especialmente no que se refere à independência da Justiça, exigem um alto grau de consenso político para a promoção de mudanças mais substantivas, o que têm servido de anteparo a medidas constitucionalmente mais regressivas. O maior sucesso do governo, no plano legislativo, está ligado às pautas antiestado, voltadas a reverter mecanismos de regulação econômica, assim como restringir direitos sociais com maior impacto sobre a economia, que encontram respaldo no Congresso. A existência de uma imprensa livre, assim como de uma sociedade civil bastante plural e ativa, também tem imposto barreiras a um governo com pendores autocráticos.
Não se deve negligenciar, no entanto, um processo multifacetado e difuso de fragilização do sistema de direitos que, a bem da verdade, nunca se consolidou no Brasil. O emprego de uma retórica presidencial hostil à população indígena, às mulheres, aos negros, aos homossexuais; um discurso voltado a deslegitimar direitos relacionados à existência digna, como trabalho, saúde e educação; assim como recorrentes manifestações apologéticas à tortura e execuções por parte de agentes estatais e paraestatais; tudo isso abre espaço para que os direitos fundamentais sejam negligenciados ou simplesmente ignorados. Quando essa prática discursiva presidencial é associada com alteração e tentativa de cooptação de algumas agências de fiscalização e aplicação da lei, num país em que essas agências nem sempre têm sua institucionalidade consolidada ou uma cultura sólida de respeito à lei, as barreiras entre o legal e o ilegal vão sendo apagadas, transformando o que antes era violação em algo normal.
Da mesma maneira, o emprego sistemático de discursos hostis aos direitos humanos e à democracia fomenta e legitima a ação de grupos paraestatais e setores mais radicais da sociedade a adotar uma conduta contrária a grupos vulneráveis e ao próprio estado democrático de direito, fortalecendo convicções e práticas autoritárias, há muito arraigadas na sociedade brasileira, como lembra Lilia Schwarcz.
As instituições constitucionais brasileiras têm demonstrado surpreendente resiliência nas últimas décadas. O Brasil, no entanto, não havia passado pela experiência de ser governado por um político que no curso de sua longa carreira parlamentar e no curto exercício da presidência não demonstra reverência aos valores e princípios estruturantes da democracia. O princípio da precaução, especialmente quando estamos imersos numa onda de populismo autoritário ao redor do mundo, determina que todos aqueles que têm compromisso com a democracia devem ficar atentos e reforçar a aliança em torno dos pressupostos essenciais da democracia e da convivência civilizada. Como chama atenção o cientista político Sergio Fausto, mesmo a “direita liberal… precisa se diferenciar da direita predatória e da direita lunática, ambas irmanadas no bolsonarismo, que é guiado por impulsos obscurantistas e autoritários”[5]. Nesse sentido, mais importante que determinar se já cruzamos a linha entre a democracia e o novo autoritarismo é compreender que há uma ação persistente voltada a fragilizar a democracia e os direitos fundamentais, e que a sobrevivência do regime democrático está diretamente associada à capacidade dos mais amplos setores da sociedade, bem como dos diversos atores institucionais, de reforçarem seus compromissos com a Constituição.


[1]
Scott Mainwaring e Fernando Bizarro. O que aconteceu com as democracias da terceira onda? Journal of Democracy (em português), V. 8, número 1, maio de 2019.
[2]
Oscar Vilhena Vieira. A Batalha dos Poderes. São Paulo, Cia das Letras, 2018.
[3]
Angela Alonso. A gênese de 2013: a formação do campo patriota. Journal of Democracy (em português), V. 8, número 1, maio de 2019.
[4] Carlos Ari Sundfeld, entrevista à Virtus News, 16.08.19.
[5]
Sergio Fausto. A direita necessária. Revista Piauí, No. 156, setembro, 2019.

OSCAR VILHENA VIEIRA É professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade de Columbia, NY, doutor em ciência política pela USP e autor, entre outros, de A Batalha dos Poderes, Cia das Letras, 2018. RUBENS GLEZER É professor da FGV Direito SP, onde obteve seu mestrado. É doutor em direito pela USP e foi visiting scholar na faculdade de direito da New York University.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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