05 janeiro 2016

Por uma Imprensa à Altura da Crise

Sempre que se pensa num modelo de jornalismo que dê conta de cobrir criticamente as agendas de maior interesse nacional, esbarra-se num obstáculo inscrito na cultura nacional: a verdade é que a civilização brasileira não entendeu direito o valor e a razão de ser da liberdade de imprensa. Assim, não se compreende também, o lugar da imprensa como um lugar de pensamento livre e crítico. No mais das vezes, esse lugar é visto como acessório ou instrumental. Na melhor das hipóteses, a imprensa seria um sistema mais ou menos neutro para a difusão de informações e opiniões que estaria a serviço de “boas causas” (“boas” segundo uma baliza situada fora da imprensa). Assim fica difícil. Mesmo assim, difícil, vale a pena discutir essa questão e tentar, se possível, apontar caminhos menos viciosos.
Vamos começar pelo básico. A democracia se assenta sobre o princípio de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Trata-se de um princípio que só adquire consequência quando alimentado pela liberdade de imprensa. Sem o livre fluxo de informações e opiniões, o regime democrático não funciona, pois a delegação do poder e o exercício do poder delegado dependem do compartilhamento dos temas de interesse público entre os cidadãos. A democracia é irmã gêmea do jornalismo e dele não pode prescindir – e isso não por motivos morais ou éticos, mas por motivos, digamos, funcionais. Sem imprensa livre, a roda da democracia não gira. Emperra. Quanto mais inclusiva, mais ela expande o universo dos que têm acesso à informação e mais garante transparência na gestão da coisa pública.
Vamos nos apegar ao fio lógico das instituições. Isso não será de todo ocioso num tempo em que a lógica anda em desuso. Cabe à imprensa levar informações ao cidadão e, para melhor cumprir seu papel, ela tem o dever de fiscalizar o poder. A informação de relevância jornalística não existiria se não brotasse do impulso de fiscalizar os atos dos que governam. Não se concebe imprensa que não fiscalize, assim como não há informação de qualidade sem imprensa digna desse nome, capaz de investigar, apurar e informar.
O direito à informação e à comunicação vem sendo proclamado como fundamental desde as primeiras declarações de direitos no século XVIII – e não poderia ser diferente. O jornalismo está a serviço desse direito e qualquer outro interesse que ele abrace o corrompe. Qualquer outro. Parece óbvio – e como –, mas não tem sido assim tão óbvio nas tradições brasileira e sul-americana. Em nossa cultura política mediana, machucada pelos períodos de arbítrio e pelos rompantes populistas, que ainda nos ameaçam, ainda nos encontramos longe de tratar o direito à informação no nível dos demais direitos, como a educação ou a saúde. É pena, mas é a verdade. A liberdade necessária para bem informar a sociedade costuma ser desqualificada de cima para baixo, e isso adultera a democracia.
Na medida em que ganhou forma tal como o conhecemos, entre fins do século XVIII e meados do século XIX, o jornalismo materializou-se como um campo situado fora do Estado, tornando-se independente, portanto, do governo. Considerada como habitus, como discurso e como um método dotado de mecanismos de se reproduzir, podemos também pensar a imprensa – cujo “idioma” é o jornalismo – como uma instituição social (e não estatal). Assim, logrou exercer sua tarefa primordial: vigiar o poder por meio da investigação e disseminação das notícias e das ideias de interesse público, promovendo o diálogo entre os integrantes do espaço público.
É verdade que, hoje, mais do que antes, vigiar o poder significa não apenas vigiar o poder político no sentido convencional, aquele instalado no Governo e no Parlamento e, em certa medida, moldado na dinâmica dos partidos. Para a imprensa, vigiar o poder significa também vigiar o poder econômico e, em especial, o poder dos próprios meios de comunicação, que se converteram em formas relativamente novas de pressão sobre a arena pública – promovem ou simulam, no espaço público, a legitimação de causas próprias ou de causas às quais se associam.
Nos tempos que correm, os problemas instalados nos meios de comunicação conspiram contra a qualidade do debate público. Citemos apenas dois deles. Em primeiro lugar, temos visto uma promiscuidade sem limites entre o Poder Legislativo e o controle empresarial de concessionárias de radiodifusão, com deputados e senadores que são sócios ou partes interessadas em emissoras ou redes de televisão e de rádio (num flagrante conflito de interesses que contraria o disposto no artigo 54 da Constituição Federal). O segundo problema está na convergência (também irregular) entre grandes igrejas, grandes redes de TV e rádio e grandes partidos políticos. Sendo definida pela Constituição como “serviço público”, a radiodifusão jamais poderia ser dirigida ou presidida por parâmetros religiosos (o que ofende o Estado laico). Pergunta-se: a imprensa brasileira tem se ocupado desse tema como deveria? A resposta é não, claro. Mas, não nos demoremos sobre isso. O cerne do desencontro entre as pautas preferenciais do nosso jornalismo e as dimensões da crise múltipla enfrentada pelo Brasil ainda não está nisso. Sigamos em frente.
Como argumentávamos, cabe à imprensa voltar sua atenção fiscalizadora a essas novas formas de poder que se armam no âmbito do mercado, formalmente fora do Estado – às vezes apenas formalmente, uma vez que elas se infiltram, por fora das vias oficiais, dentro das instâncias decisórias do Estado. Falamos das igrejas, dos conglomerados empresariais, do capital financeiro, das corporações (que tantas vezes se apropriam indevidamente da condução da máquina pública), das ONGs (cujo poder de influência é inegável) e de outras formas pelas quais grupos de interesse organizados interferem ou mesmo capturam o funcionamento do Estado. Não raro, essas formas de influência conspiram, veladamente, contra liberdades, contra direitos individuais e também contra a formação livre da vontade dos indivíduos e dos grupos.
Apartidário, equilibrado e livre
Quando confrontados com isso, alguns veículos jornalísticos adotam reações virtuosas. Na busca de aperfeiçoar os parâmetros de sua governança, passam a adotar métodos que garantem a independência da sua gestão editorial não apenas frente às intervenções dos anunciantes, mas também frente às interferências indevidas dos acionistas dos grupos de comunicação a que pertençam. Em poucas palavras, o bom jornalismo é aquele feito por empresas que mantenham um regime para preservar seus jornalistas dos casuísmos dos proprietários. A propósito, veja-se o exemplo recente do jornal “Financial Times”, que, ao ser vendido da empresa Pearson para a japonesa Nikkei, reconheceu um movimento originado na Redação para que se garantisse a independência editorial do diário sob a nova administração.
Mas, os cuidados, como já vimos, não devem parar por aí. A mesma cautela crítica deve ser dedicada a partidos políticos, às organizações não governamentais, que, a exemplo do poder econômico, dispõem de meios para incidir sobre a pauta de interesse social. As igrejas, algumas delas com enorme peso na radiodifusão brasileira, enquadram-se na mesma categoria. As empresas de maior porte, as ONGs e as igrejas praticam em larga escala o agenciamento de interesses na definição do debate público. Em relação a eles, o jornalismo deve guardar distância crítica – análoga à que mantém frente ao Governo – para melhor vigiá-los e para melhor servir aos direitos dos cidadãos, de modo apartidário e equilibrado.
Apartidário, equilibrado – e livre. Para se manter fiel à sua responsabilidade social, o jornalista não deve permitir que causas ou doutrinas totalizantes de uma parte da sociedade – venham elas de ONGs, de igrejas, de governos, de grandes corporações, de partidos, de onde vierem – contaminem seu trabalho. É mais adequado que ele procure, por mais que seja difícil, manter-se independente em relação a esses polos de poder e de influência, sem desmerecer a legitimidade que eles têm. É nesse sentido que temos repetido em diferentes ocasiões: o primeiro dever do jornalista é ser livre, e ser livre significa não se deixar capturar por interesses estranhos ao direito do público à informação independente.
Outra vez, a afirmação desses princípios há de parecer uma insistência no óbvio. Outra vez, contudo, se você observar com atenção, vai ver que esse óbvio vem sendo negligenciado, com consequências drásticas. Lamentavelmente, no Brasil e, também, em todo o continente sul-americano, é comum que políticos, intelectuais e mesmo jornalistas proeminentes digam que pode haver imprensa livre e crítica – principalmente contra o poder econômico, proclamam – comandada direta ou indiretamente por funcionários do governo. Acalentam e espalham a ilusão de que agentes do governo podem conceber, abrigar e até dirigir centros jornalísticos de excelência, num disparate demagógico que procura esconder a incompatibilidade de natureza entre as duas funções. Sobre isso, não pode haver tergiversação: o governo, quando se associa à imprensa, tende a sequestrar-lhe a alma. Portanto, o jornalista só deve se aproximar do governo para perguntar o que o cidadão tem direito de saber. De resto, convém manter distância. Hoje, entretanto, o governo federal e os governos estaduais não controlam os meios jornalísticos apenas por meio de funcionários públicos que lhes sejam subservientes, mas também, e principalmente, por meio do manejo de imensas quantias de dinheiro público repassadas a veículos comerciais sob o pretexto de comprar espaços publicitários para a veiculação de campanhas oficiais. A propaganda estatal se converteu, no Brasil, num atalho para a captura dos humores da reportagem pelos tentáculos dos governantes. A situação é gravíssima e, dadas as características da asfixia econômica dos órgãos de imprensa, é de difícil superação.
Nesse quesito, o Brasil teve o infortúnio de inverter os primados da comunicação pública. Em democracias mais sólidas, as instituições públicas em que se pratica o jornalismo, como as emissoras públicas da Europa, tratam de manter os representantes do governo longe da administração editorial, impedindo que eles opinem em definições das grades de programação, nas decisões de pauta, na escalação de repórteres ou de apresentadores. Algumas emissoras públicas brasileiras tentaram e tentam, não nos esqueçamos, guiar-se da mesma forma. Mas, as tentativas são vãs e, de tempos em tempos, fracassam.
Além dos promotores do governismo disfarçado de jornalismo, estejam eles investidos de cargos públicos em na condução de veículos de opinião financiados aberta ou veladamente por dinheiro público, existem também agentes políticos que incorrem na mesma incompreensão e que vão mais longe nas tentativas de instrumentalizar a imprensa. Houve e há aqueles que, baseados no que qualificam de mau comportamento de veículos jornalísticos – geralmente, segundo apontam, em relação às autoridades, que posam de vítimas –, insinuam ou, por vezes, pronunciam a suposta necessidade de impor limites para a liberdade de imprensa. A recente aprovação da lei de Direito de Resposta, em novembro de 2015, é mais um sintoma do mesmo mal.
Redução das facetas da notícia
Adeptos do costume de dar, como que de presente, liberdade para os amigos, e de exigir, com ares de indignação cívica, responsabilidade dos inimigos, asseveram que nenhuma liberdade é absoluta. Embora seja possível sustentar que a liberdade de imprensa, assim como o direito à vida, deva, sim, ser tomada por nós como direito absoluto (tese em que insistiu o ex-ministro do Supremo, Carlos Ayres Britto), concedamos que nenhuma liberdade é absoluta. Apenas para fins de argumentação. A propósito, nem mesmo a noção de absoluto é absoluta. O problema é que o corolário dessa argumentação aponta para a adoção de uma liberdade tão “relativa” que, além de não ser absoluta, não seria sequer relativa, dado que não seria, tampouco, liberdade. Onde há esse pensamento não há segurança quanto à plenitude do direito à informação, da liberdade de imprensa. E esse pensamento é endêmico entre nós.
Mas, há mais que isso. É preciso levar em conta que o jornalismo, como método, não tem funcionado muito bem em geral. Comecemos por ponderar que o ofício do jornalismo, em particular no modelo adotado no Ocidente desde pelo menos meados do século XIX, baseado no controle dos veículos por empresas com finalidade de lucro (modelo, aliás, em crise há 25 anos por causa da tecnologia da internet), abre flancos importantes para a crítica dos seus inimigos. Há vícios estruturais nesse modelo que criam no público uma sensação que alguns autores chamam de “desinformação funcional”. “O jornalismo tal como o conhecemos hoje omite as circunstâncias determinantes dos fatos” por estar sempre empenhado na prioridade ao que é mais novo, surpreendente numa linguagem que seja a mais rapidamente compreensível pela maioria (numa busca de mínimo denominador comum), argumenta, por exemplo, Leão Serva, num excelente trabalho em que reflete sobre sua experiência como correspondente de guerra.
Esses vícios estruturais, que são compartidos em níveis de intensidade diversos por todos os veículos jornalísticos e em todas as épocas e culturas, formam uma extensa lista: superficialidade na informação (porque ela tem de ser curta), apelo aos aspectos mais espetaculosos dos acontecimentos (porque é preciso chamar a manter a atenção do maior número possível de pessoas), falta de contexto que ajude o público a compreender o cerne do que ocorre (porque o espaço e o tempo disponíveis são pequenos), esquecimento amanhã do que é importante hoje (porque as novidades se sucedem em ritmo acelerado, e tanto os jornalistas quanto a audiência valorizam excessivamente o que ainda não se sabe em prejuízo do que ainda não se conseguiu saber suficientemente).
Isso pode se ver com clareza na cobertura de qualquer assunto, mas é particularmente intensa na dos temas internacionais. Recorrendo novamente a Leão Serva: “Quando se trata de acontecimentos que se desenvolvem no tempo, muitos deles próprios do âmbito da história [como são as guerras], esse ritmo se renova: após o esquecimento e o relaxamento da atenção [a cada grande novidade], uma nova notícia sobressalta o leitor e renova seu estado de alerta”. Não há espaço nem tempo para ir a fundo nas causas dos conflitos, muito menos de retomá-las quando fatos de maior destaque ocorrem. A fim de tornar os fatos algo “simples, claro e objetivo”, pratica-se uma redução deles,o que frequentemente transforma uma história complexa em algo maniqueísta.
Além de reduzir as facetas da notícia para torná-la mais compreensível e omitir muito da história ou para não cansar o consumidor ou por limitações não transponíveis de espaço, “a redução do fato no jornalismo contemporâneo muitas vezes reflete inadvertidamente adesões históricas que superam o papel de cada repórter e o remetem para histórias longínquas do país […]. Esse comportamento pode ser involuntário da parte de cada repórter isoladamente, mas revela que nas operações de redução também operam elementos culturais e ideológicos arraigados, e não só a observação de campo”.
Pode-se acrescentar ainda a esses vícios estruturais um problema filosófico ainda mais amplo e inerente à condição humana, que é a incapacidade de reconstituir a verdade a partir de relatos verbais, como fortemente sugerido por autores de ficção como o argentino Jorge Luis Borges, o italiano Antonio Tabucchi e o romeno Paul Celan, entre muitos outros, e aparentemente comprovado por estudos de neurociência recentes, como, por exemplo, os do físico brasileiro André Martins, que atestam a impossibilidade de alguém ser neutro, o que põe fim ao velho debate do jornalismo sobre a existência da objetividade.
Mesmo que se considere encerrado esse debate com o veredito de que a objetividade não existe, e que, portanto, toda informação veiculada no jornalismo tem algum tipo de parcialidade determinada por inclinação ideológica, preconceito de classe, identificação cultural, condição de gênero, instabilidade emocional, interesse econômico, viés corporativista ou qualquer outro motivo, é inquestionável a possibilidade de relatar fatos comprováveis por meio de documentos verificáveis. Por mais que “tendenciosidades” de motivação de qualquer espécie possam deturpar ou despertar suspeitas sobre matéria jornalística, sempre será possível ter certeza sobre informações (basicamente derivadas das clássicas perguntas: que, quem, quando, onde e por quê, embora o por quê já possa ser questionável). O esforço do jornalismo deve ser relatar o máximo de informações factualmente comprováveis e o máximo de versões relevantes para explicar as razões por que os fatos noticiados ocorreram.
Outra obrigação do jornalismo deve ser tentar ao máximo superar as dificuldades sistêmicas do trabalho no sentido de produzir relatos capazes de fornecer à sua audiência um retrato aceitável dos assuntos de que trata, ainda que com a consciência de que uma superação absoluta será inatingível. Ou seja: embora seja plausível a tese de que as características intrínsecas do jornalismo talvez o impeçam de produzir material que efetivamente permita ao público compreender os fatos, é possível fazer jornalismo de qualidade que ajude as pessoas a chegarem mais perto da compreensão das coisas.
O público em geral não pode se informar apenas com teses e livros que levam anos para serem pesquisados e editados. A maioria das pessoas não tem o tempo e as condições intelectuais e materiais para ler esses livros. Os fatos ocorrem em ritmo muito mais rápido do que esses livros levam para ser produzidos. Assim, embora o jornalismo diário (ou em “tempo presente”) tenha vícios estruturais graves, ele é inevitável e o melhor que se pode fazer é tentar aprimorá-lo.
Muitas dessas dificuldades são inerentes ao jornalismo da forma como ele se organizou nos países ocidentais, de um modo geral, com a primazia do mais novo, do mais sensacional, do mais atraente, do mínimo denominador comum sobre a análise mais detalhada de conjunturas, da história, dos fatores diversos que influenciam ao longo do tempo os acontecimentos. Esse modelo talvez possa ser reformado, mas também dificilmente será substituído por inteiro por algum alternativo.
Tais limitações se aguçam ou atenuam conforme as características de cada indivíduo que desempenha a função. É injusto e incorreto generalizar para toda a categoria profissional as virtudes ou os vícios que possam ser identificados em um só jornalista, por mais influente ou até representativo que ele possa ser ou ter sido.
Modelo de negócios em crise
Há um problema estrutural mais recente que é básico e atormenta a atividade como um todo: o modelo de negócios do jornalismo ocidental está em crise há pelo menos um quarto de século e ainda não se encontrou uma alternativa viável para substituí-lo. Em resumo, as margens de lucro das empresas diminuem, na média, constante e significativamente. É cada vez mais difícil dar ao jornalista melhores condições de trabalho para ir fundo na apuração, ampliar coleta de informações e opiniões sobre os acontecimentos e mais tempo para construir um relato equilibrado e bem composto.
Também o público tem mudado nestes 25 anos na direção de querer informações cada vez mais rápidas, novidades cada vez mais recentes, temas que cada vez mais o entretenham. O espaço de atenção médio diminui progressivamente. As pessoas exigem notícias ligeiras, sensacionais e novas. Como sempre ocorre em qualquer fenômeno de comunicação humana, veículo e público exercem influência recíproca entre si; um depende do outro. E, da mesma forma como a neutralidade é impossível para o jornalista, ela também é impossível para o público que consome a informação: se ela chega de alguma forma distorcida, volta a ser distorcida quando é recebida e digerida pela audiência (e de forma distinta entre os inúmeros indivíduos que a recebem).
Apesar de tantas dramáticas limitações, das inerentes à condição humana às típicas do ordenamento econômico capitalista, das resultantes de deformação de caráter às que surgem como decorrência da crise na maneira de se comunicar em virtude da revolução recente da tecnologia, ainda é possível fazer jornalismo de boa qualidade, e este se mantém imprescindível para a manutenção e o aperfeiçoamento da democracia.
Eventuais más condutas de jornalistas ou de órgãos noticiosos, que ocorram por quaisquer motivos, no entanto, jamais deveriam dar ensejo ao questionamento da liberdade; o que deveria se questionar, aí sim, é a conduta específica de quem errou, bem como as causas do erro. Errar, embora não constitua a regra, faz parte do que é previsível na prática do jornalismo. O jornalismo erra e é no dever de corrigir publicamente o seu erro que ele se aperfeiçoa: repondo a verdade, reparando os danos à honra dos ofendidos, submetendo-se à lei para que os autores dos excessos sejam punidos. Esse é o caminho, e ele não fica mais fácil com menos liberdade. Fica, isto sim, muito menos viável.
Também para que os erros de imprensa se corrijam, o regime de liberdade precisa ser fortalecido – só com mais liberdade se aperfeiçoa o regime da liberdade. Os utopistas autoritários, ainda que não o declarem abertamente, veem no erro não um desvio a ser consertado, mas uma prova de que a liberdade é uma regalia cínica, uma vantagem classista, a ser desmascarada e destronada. Fazem crer que o antídoto residiria em alguma medida de força do Estado, e prescrevem como remédio, possivelmente sem o saber, uma doença muito mais letal que a enfermidade que julgam pretender curar.
Um sintoma da precariedade da cultura política nessa matéria pode ser visto no hábito de algumas autoridades de emitir juízos condenatórios generalizantes sobre o comportamento da imprensa. Há mesmo os que pecam pelo primarismo de considerá-la um corpo uno, indivisível, orientado em bloco. O ponto merece uma breve pausa. É legítimo e necessário que os comuns do público, os sujeitos da vida privada, os partidos, os intelectuais, os estudantes, as ONGs e tantos mais critiquem e discutam correntemente a sua imprensa. A crítica faz bem a ela, em particular, e aos meios de comunicação em geral. Uma sociedade que estimula a crítica dos meios só faz melhorá-los. Mas, quando autoridades, em nome do governo, proferem julgamentos peremptórios sobre a qualidade da imprensa, considerada como um sujeito ideológico compacto, podem gerar um ruído institucional. Embora tenha o direito e mesmo o dever de solicitar correções quando erros de informação vão a público – estando em condições, portanto, de debater com a imprensa – e de exigir que a verdade prevaleça, a autoridade pública deve, como regra, abster-se do papel de árbitro do comportamento da imprensa em geral. Pelas mesmas razões, representantes do Poder Executivo têm o cuidado de não pontificar sobre a saúde do Poder Judiciário, embora possam contestar um acórdão ou uma sentença, assim como evitam desqualificar a instituição do Poder Legislativo, embora possam polemizar tranquilamente com um parlamentar, um partido ou uma bancada.
A vigência serena do regime de liberdade exige a observância de um protocolo segundo o qual a imprensa seja vista pelo governo e por seus representantes como uma instituição autônoma, uma instituição a qual não lhe compete julgar. É nesse sentido que se diz, com acerto, que cabe à imprensa ser livre para vigiar o governo, jamais o contrário. A liberdade de imprensa é um valor sempre sensível, e depende, nesse aspecto, da liturgia com que os governantes a ela se dirigem. Por isso, os representantes do governo agem bem quando silenciam em matéria de media criticism. Quem quer exercer regularmente a função de crítico de mídia, que se afaste de cargos no governo.
Os motivos para isso são numerosos. Na verdade, todos os motivos do mundo reforçam esse protocolo. Vejamos apenas um: o do conflito de interesses. Entre outras obrigações, compete ao Estado estabelecer marcos regulatórios para o setor dos meios de comunicação, com vistas a preservar a concorrência comercial e a diversidade de conteúdos e pontos de vistas, e, se as autoridades passam a expressar publicamente opiniões peremptórias sobre “a grande mídia” ou sobre “a imprensa em geral”, incorrem desavisadamente em potenciais conflitos de interesses, pondo em dúvida a impessoalidade com que tratam ou tratarão do setor. Como ficariam os encarregados de conceder ou renovar as concessões de rádio e televisão se se posicionassem abertamente como adversários de uma estação e apoiadores de outras? Será que tal engajamento seria compatível com a impessoalidade do regime democrático?
Os conflitos de interesses não ficam apenas aí. Como ao governo cumpre zelar pela liberdade, protegendo-a de qualquer ameaça, os seus representantes não deveriam dar à sociedade a impressão de que têm restrições à imprensa em geral ou preferências quanto a um ou outro veículo. Isso acarretaria um desconforto institucional, como se os guardiões das liberdades acalentassem a fantasia de restringi-las, ainda que um pouquinho só, se não para todos, ao menos para um ou outro. Daí a pertinência do protocolo pelo qual os governantes e autoridades públicas se abstêm de questionar – ou de dar a impressão de que questionam – não os erros pontuais que devem ser corrigidos, mas validade da instituição da imprensa em seu conjunto. Se não por mais nada, pela simples razão de que quem não tem compromisso radical com a vigência da mais plena liberdade de imprensa simplesmente não está apto a exercer cargos públicos numa democracia.
Liberdade de imprensa
Não há razoabilidade, portanto, em supor que a liberdade de imprensa se condicione à inexistência de erros. Ela não é uma recompensa que se outorgue aos veículos que acertam ou um privilégio que se interdite aos que erram – é, sim, premissa inegociável para a prática do jornalismo, seja ele bom ou ruim. Ninguém no governo pode se arvorar a agir em nome de melhorar o nível do jornalismo. Isso não faz sentido.
Desde que o governo e o Estado não atrapalhem, o jornalismo pode se dedicar a melhorar-se e isso ele consegue se for fiel ao seu dever de ser livre. Dever: esta é a palavra. Fala-se muito no dever da verdade, e com razão. Fala-se na fidelidade com que se devem reportar os fatos e o debate das ideias, também com razão. Mas, a busca da verdade dos fatos começa pela busca da verdade essencial do jornalismo, cujo nome é liberdade. Esta é a verdade interior do jornalismo e, sem cultivar sua verdade interior, ele seria incapaz de ver a verdade que lhe é exterior. O profissional do jornalismo não pode admitir, e nem a sociedade pode admitir que ele admita, a hipótese de que o exercício do jornalismo não seja livre, afirmativamente livre, escancaradamente livre.
E ser livre é um imenso desafio. A liberdade não é apenas letra. Ela só existe se for exercida de fato, por meio da visão crítica, do rigor, da objetividade, na obstinação por tornar públicas as informações que o poder preferiria ocultar. A liberdade floresce mais no conflito que no congraçamento – e, por isso, alguns a confundem com a mera falta de educação, o que também é uma forma de rebaixá-la. Por um caminho ou por outro, ela precisa ser explícita, pois disso depende a confiabilidade, a credibilidade e a autoridade da imprensa. Se não reluzir na liberdade quente, ela morre.
Nesse caso, a responsabilidade não deve ser entendida como um contrapeso da liberdade. Ao contrário, a liberdade é a maior e a primeira das responsabilidades da imprensa. O resto vem depois: ser justo, equilibrado, ponderado, elegante etc. Ainda que o equilíbrio constitua uma virtude que a ética recomenda cultivar, o jornalismo começa pelo dever da liberdade, como vivência material cotidiana. As chamadas virtudes do ofício existem para materializar e para sustentar seu bem maior, a liberdade. Ela é o bem principal – as outras virtudes lhe são acessórias.
Nem mesmo o apartidarismo, um cânone da boa prática de imprensa, é para o jornalista um imperativo tão alto quanto o de ser livre. O apartidarismo é uma exigência? Sem dúvida, mas apenas porque reforça o princípio da independência editorial, que está na base da qualidade da informação. Isso significa que se uma revista decidir apoiar uma causa partidária, tem o direito de fazê-lo, desde que não o faça com dinheiro fornecido pelos cofres públicos – nesse caso, teríamos o erário financiando uma legenda em detrimento de outras, o que configuraria uma forma de uso da máquina pública para fins partidários ou pessoais. Uma emissora de TV ou de rádio, sendo concessão pública, sofre – e deve sofrer – restrições quando se trata de apoiar editorialmente uma causa partidária, pois os serviços públicos não devem se prestar ao proselitismo político, mas um veículo impresso, que não é concessionário frente à administração pública, pode, dentro da sua esfera de liberdade, lançar apelos para que seus leitores apoiem uma campanha ou mesmo que votem num determinado candidato.
Claro que, no plano ético, não se deve burlar o pacto de comunicação com o público. Para o seu próprio bem, não é recomendável que uma publicação dissimule o seu conteúdo, fingindo que está veiculando uma coisa – informação objetiva, por exemplo – para entregar outra – proselitismo, por exemplo. Agindo assim, além de ameaçar a si mesma com o risco do descrédito, ela estaria corroendo as bases da instituição da imprensa em seu conjunto. Fora isso, no plano da legalidade ou da normalidade institucional, um veículo impresso pode muito bem exercer a sua liberdade abraçando uma bandeira que o identifique com um determinado partido, num determinado momento. Assumirá o risco: se o seu gesto deixar no leitor a impressão de que esse veículo renunciou à sua própria liberdade para se converter num apêndice de uma agremiação ideológica, a perda de credibilidade virá. Se isso ocorrer, ele terá jogado no lixo a razão pela qual terá um dia merecido o respeito do público, mesmo daquele público que, eventualmente, concorde com as causas que ela abraçou. Fora isso, é bom ter claro que até mesmo a prática do partidarismo, que contraria um dos cânones da ética de imprensa, só é um problema para o jornalismo porque pode implicar a renúncia da liberdade – esse sim, o valor maior.
A liberdade não funciona como redoma, um manto protetor que acolhe maternalmente os profissionais, livrando-os de cobranças, de julgamentos e de condenações. Liberdade não é impunidade, mas um fator que impele o jornalista a se expor a julgamentos e punições. É uma bandeira que a imprensa tem o dever de carregar com altivez, por mais que isso lhe custe – e custa muito. Quando negocia algumas de suas franjas, ainda que mínimas, deixa de ser imprensa e se converte na sua pior negação, traindo suas origens e turvando o seu futuro.
Para o jornalista, enfim, a liberdade de imprensa é um dever porque, para o cidadão, ela é um direito. Para que o cidadão possa contar com o direito à informação e com a vigência do regime da liberdade, o jornalista precisa tomá-la como um dever incondicional.
A democracia ainda depende do jornalismo – e esse, agora, depende de identificar e cultivar o que lhe é essencial. Experimentamos uma abundância sem precedentes de referências e de discursos fervilhando nos espaços públicos. Cifras, declarações, afirmações, gráficos, rezas, fotos, desenhos, vídeos, documentários, tabelas, infográficos, mapas – uma infinidade de textos, sons e imagens, em profusão vulcânica, vinda de todas as partes, abarrota os olhos, os ouvidos e, eventualmente, a paciência de todo mundo. ONGs, autarquias, bancos, empresas, governos, fábricas de automóveis, escolas, agências espaciais, igrejas, seitas e furgões que vendem pamonha produzem seus próprios sites, seus alto-falantes, seus filmes e suas emissoras de rádio e de televisão. Ruidosamente, forjam nexos diretos e íntimos com qualquer tipo de público, com qualquer parte física ou imaterial do sujeito.
No meio da tempestade de conteúdos cujas intenções se embaralham e se dissimulam, uma pergunta inquieta o cidadão: “Em quem eu posso confiar?” Cada vez mais, quando se trata de informação e de diálogo sobre temas de interesse público, o olhar desengajado e o relato objetivo adquirem valor. O jornalismo adquire valor. Credibilidade, independência, foco no cidadão e compromisso com expandir progressivamente o universo daqueles que têm acesso à informação: nisso se resume a sua responsabilidade social. É desse modo que ele contribui para a democracia inclusiva e para o desenvolvimento humano.
Cobertura de políticas públicas
Para fazer crescer ainda mais esse valor e reforçar sua credibilidade, o jornalismo, em especial o impresso, deveria ficar mais em certas prioridades. Por exemplo, dar mais ênfase à cobertura de políticas públicas do que à cobertura da política comezinha. Ao contrário do que acham muitos críticos apressados da imprensa, ela não é capaz de influenciar resultados de eleições, como comprova largo acervo de pesquisa científica acumulado desde 1948, quando Paul Lazarsfeld e outros estudaram o comportamento do jornal e dos eleitores da cidade de Elmira, no Estado de Nova York.
Há aspectos da vida política em que a imprensa pode mesmo exercer papel muito relevante, mais até do que o de outros atores significativos. Um deles é o da definição da agenda pública. Há uma infinidade de temas em permanente debate numa sociedade democrática. E há momentos específicos em que decisões são tomadas com efeitos duradouros para toda a coletividade. A imprensa não deveria (embora frequentemente o faça) se alhear do debate prévio dos temas dessa agenda.
O Congresso Nacional, frequentemente execrado, não por motivos injustos, é uma instituição com grande transparência. O calendário de suas sessões é público. A agenda das comissões e do plenário, idem. Quem tiver interesse e disposição pode participar e influir. E o jornalismo deveria incentivar essa participação, apesar de quase sempre chegar atrasado ao debate. É muito comum (ocorreu até, recentemente, com matéria de seu interesse direto, a lei que regulamentou o direito de resposta, que só entrou no noticiário às vésperas da aprovação) o veículo jornalístico só tratar de uma lei importante para seu público depois de ela ter sido aprovada. Agir assim é como só tratar da final do campeonato de futebol depois que a partida acabou. Ou do show dos Rolling Stones no Morumbi só depois de encerrado.
À imprensa cabe ajudar o cidadão que quer tomar parte no processo a fazê-lo. Por que não divulgar mais a agenda do Poder Legislativo e fazer com que ela coincida com a da sociedade? Por que não aproximar os representantes e os representados?
Se o Congresso está distante da população, é melhor forçá-lo a aperfeiçoar-se do que pregar o seu fechamento ou ignorá-lo. O mesmo se aplica às Assembleias Legislativas, Câmaras Municipais, Executivos dos três níveis e às diversas instâncias do Judiciário.
O jornalismo pode contribuir muito na construção de pontes que possibilitem essa melhora, como demonstram diversos exemplos de outros países. É só querer.
Outra maneira para a imprensa acumular valor e credibilidade é a prática do jornalismo preventivo. Neste caso, além de ampliar prestígio, a imprensa pode efetivamente evitar tragédias, em vez de apenas noticiá-las após terem ocorrido, como faz anualmente aos verões, em função das enchentes e deslizamentos provocados por tempestades. Relatar os alagamentos que ocorrem, publicar fotos de carros boiando nas ruas, contar os quilômetros de congestionamento é muito pouco. É possível e necessário fazer acompanhamento sistemático das providências que as autoridades dizem tomar. É perfeitamente possível verificar o quanto do orçamento destinado à prevenção de enchentes e outros desastres naturais está sendo executado ao longo dos meses de um ano e alertar o cidadão quando a execução for abaixo do previsto, como quase invariavelmente é. Em vez de apenas noticiar a morte de centenas de pessoas numa boate que estava sem autorização para funcionar do Corpo de Bombeiros, é possível investigar quantas casas de diversão pública estão com seus alvarás em dia.

Em suma: o jornalismo tem problemas essenciais decorrentes da natureza humana dos que o praticam, assim como tem problemas estruturais decorrentes do modelo capitalista e da crise que a atividade enfrenta há 25 anos motivada pelas novas tecnologias, mas ainda assim precisa ser preservado em liberdade porque é essencial para a democracia e para a construção da cidadania. Para merecer mais apoio da sociedade e se mostrar realmente útil, deve investir mais naquilo que lhe dá mais valor e o torna imprescindível para os cidadãos.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é jornalista, doutor e livre-docente em Comunicação pela USP, mestre em Comunicação pela Michigan State University. EUGÊNIO BUCCI é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Instituto de Estudos Avançados da USP. Escreve regularmente no jornal O Estado de S. Paulo e é colunista da revista Época

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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