25 maio 2022

Breve ascensão e queda: a atuação externa do Brasil no debate de think tanks de EUA, UE e China

Luciana Wietchikoski analisa a visão de think tanks estrangeiros sobre o Brasil, revela piora da percepção sob Bolsonaro e explica que a interpretação deles permite entender como as elites políticas que permeiam o debate e a tomada de decisões em política de três grandes potências interpretam a posição do Brasil no cenário político internacional atual

Discurso do presidente Jair Bolsonaro na Abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (Alan Santos/PR)

Estados Unidos (EUA), União Europeia (UE) e China, além de atores centrais na dinâmica internacional, se configuram como parceiros políticos, diplomáticos e econômicos fundamentais para o Brasil. Em meio às mudanças no cenário internacional, ao longo do século XXI nossa atuação externa tem se colocado no radar dos principais think tanks de política internacional dessas potências, tais como a Brookings Institution (EUA), French Institute of International Relations (França) ou o Shanghai Institutes for International Studies (China).

Ao aproximar elites políticas, diplomáticas, empresariais e acadêmicas para definir interesses e ameaças em política ou segurança internacional, estes think tanks são tradicionais espaços sociais de debate, formulação e divulgação de política externa nesses países. Contando com orçamentos milionários provenientes de recursos públicos e/ou de grandes corporações/fundações filantrópicas (a origem oscila de acordo com cada organizaçãoou país), os think tanks buscam assessorar ou influenciar o processo de tomada de decisões governamentais, fornecer recomendações específicas ao setor privado e formar consenso público quanto as suas posições. Para tanto, desenvolvem inúmeras atividades públicas e privadas com acesso privilegiado junto a Legislativos ou a órgãos colegiados, departamentos burocráticos nas áreas diplomáticas e de defesa, universidades, grandes empresas (governamentais e privadas) e nas principais mídias internacionais.

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Esse perfil social nos indica como importantes quadros das elites internacionais têm caracterizado o papel do Brasil nos últimos anos, bem como as orientações deliberativas em circulação (e disputas) nos espaços de debate e formulação de políticas públicas para a área de política externa e defesa daqueles atores. Longe de ser referência para adoção brasileira de uma posição ou outra, os enquadramentos elaborados nesses ambientes tornam-se fontes para identificar como importantes extratos sociais dos nossos principais parceiros comerciais, de investimento e de atuação internacional atuais estão discutindo as relações bilaterais, as atribuições regionais e globais para o Brasil.

‘Os enquadramentos elaborados nesses ambientes tornam-se fontes para identificar como importantes extratos sociais dos nossos principais parceiros estão discutindo as relações com para o Brasil’

O Brasil no debate dos think tanks: breve ascensão e queda

De um modo geral, no início dos anos 2000 o Brasil esteve ausente das grandes preocupações dos think tanks. Quando abordado, o país foi inserido no contexto de discussões mais amplas envolvendo a região latino-americana. Esta abordagem mudou nos anos seguintes impulsionada pelas transformações internacionais e pelo protagonismo que o Brasil assumiu: construção de novas coalizões em organizações internacionais (como BRICS, G-20 Comercial e IBAS), criação de novos espaços de concertação regional (como a UNASUL), maior presença para além do seu entorno regional, ampliação de sua participação em missões de paz das Nações Unidas (MINUSTAH) ou mesmo pelo início a vários programas de produção de sistemas de armas modernos com parceiros internacionais.

Com o maior protagonismo do Brasil, governos, opinião pública e o mundo dos negócios das potências globais necessitaram definir políticas para esse global player

Com essa situação nova, governos, opinião pública e o mundo dos negócios das potências globais necessitaram definir políticas para esse global player. No caso específico chinês, o aumento do interesse acerca do Brasil se desenvolveu em meio à intensificação das relações comerciais, diplomáticas e políticas bilaterais bem como da própria afirmação da China como potência internacional, o que levou o governo daquele país a investir em centros especializados voltados ao Brasil para assessorar as políticas governamentais e do seu empresariado nacional. 

Para dar conta de produzir visões e elaborações políticas acerca do Brasil, os principais think tanks contrataram quadros especializados, criaram institutos, forças tarefas, relatórios e promoveram diversos eventos dentro e fora de suas sedes. Foi nesse contexto, por exemplo, que surgiram os primeiros institutos dedicados exclusivamente ao Brasil, como foi o caso do Instituto Brasil do Wilson Center (EUA) em 2004, do Centro de Estudos Brasileiros da Academia Chinesa de Ciências Sociais (2009) e do Centro de Pesquisas Brasileiro da Universidade de Hubei (2012) (ambos chineses). Nos EUA, por exemplo, o Council on Foreign Relations reuniu nomes como o ex-Secretário de Energia dos EUA, Samuel W. Bodman, e o ex-presidente do Banco Mundial, James D. Wolfensohn, na força tarefa “Iniciativa Brasil Global” que resultou no grande relatório lançado em 2011 “Brasil global e as relações EUA-Brasil”. Já na Europa, think tanks produziram alguns relatórios específicos, como foi caso do “Brasil, uma força marítima? Ambições de uma potência emergente no Atlântico Sul (2011)”, lançado pelo German Institute for International and Security Affairs.

‘Apesar da histórica presença do país no sistema internacional e de seus indicadores de hard power, há um certo “desinteresse” em relação ao Brasil pelas elites internacionais’

Contudo, com exceção dos think tanks chineses, na medida em que a crise econômica brasileira se aprofundava e o Brasil reorienta sua política externa a partir de 2016, registra-se progressiva diminuição das atividades acerca do Brasil nos think tanks.

Nesse sentido, observa-se que, apesar da histórica presença do país no sistema internacional (membro da Liga das Nações, um dos fundadores da Organização das Nações Unidas e de várias outras organizações) e de seus indicadores de hard power (PIB, reservas de hidrocarbonetos, território e população), há um certo “desinteresse” em relação ao Brasil pelas elites internacionais. Em meio ao retrocesso das iniciativas, desde 2019, com o governo Bolsonaro, o conteúdo da percepção sobre o Brasil nos think tanks também se transforma, torna-se unanimemente negativa, como veremos a seguir.

Algumas das visões gerais dos think tanks sobre o Brasil

Para os think tanks estadunidenses, ao longo da primeira década e meia dos anos 2000 duas grandes visões se estabeleceram acerca do Brasil. Ao tratarem da atuação e das iniciativas junto a América Latina (como a UNASUL e investimentos) na África (cooperação técnica) e por meio do IBAS, a participação do Brasil foi entendida como a de um ator internacional alinhado com os valores e propostas da ordem internacional liberal vigente. Desse modo, alguns think tanks apresentaram, por exemplo, recomendações ao governo estadunidense para criação de canais de estreitamento para parcerias de atuação global conjunta nessas regiões sob liderança estadunidense.

No entanto, percebe-se uma demarcação crítica clara quanto à atuação do Brasil quando as produções trataram das agendas comumente chamadas de “primeiro nível” (por se tratar de questões de segurança internacional) ou que envolveram atores considerados como desafiantes à formulação de política dos EUA, tais como Rússia, China e Irã. Assim, em sua grande maioria, a produção sobre a atuação do Brasil, por exemplo, junto à China e à Rússia no contexto dos BRICS, bem como na criação de mecanismos de diálogo e negociação sobre a questão nuclear com o Irã em alternativa ao formato P5+1 (Declaração de Teerã de 2010) foram consideradas uma ameaça aos interesses estadunidenses.

‘Ao observar a produção sobre o governo Bolsonaro, diferentemente dos registros na década passada, em nenhum momento a produção recente atribui ao Brasil um papel de protagonista ou de liderança internacional’

Ao observar a produção sobre o governo Bolsonaro, até mesmo entre os think tanks conservadores estadunidenses (tradicionais incentivadores e atuantes na implementação de agendas neoliberais para os países latino-americanos), as produções mostram-se bastante críticas e consensuais quanto, por exemplo, à capacidade do governo brasileiro de manter os princípios e valores democráticos e de direitos humanos. Outro elemento que merece destaque é que, diferentemente dos registros na década passada, em nenhum momento a produção recente atribui ao Brasil um papel de protagonista ou de liderança internacional.

Já nos think tanks europeus, existem dois momentos na produção. Até a primeira metade da década de 2010 as análises sustentaram uma visão na qual o Brasil realizava uma política internacional previsível e exercia liderança de maneira pragmática e conciliadora. Baseadas no diagnóstico da “pretensão de projeção global”, diversas publicações enfatizaram a necessidade de um novo patamar de relações. Na América do Sul, por exemplo, recomendava-se a formação de canais de cooperação que viabilizassem os interesses europeus, oportunidade garantida, segundo os thinks tanks, pela função do Brasil de estabilizador ou mediador regional na medida que era associado à preservação da democracia e dos direitos humanos.

Contudo, conforme apontam Fernando Preusser de Mattos e Bruna Rohr Reisdoerfer (2021), a partir da segunda metade dos anos 2010 e, especialmente, a partir do governo de Bolsonaro, mesmo tratado como um importante ator no Sistema Internacional, o Brasil não é mais visto como parceiro estratégico. O desprezo com as políticas de proteção ambiental, a condução diante da pandemia de Covid-19 ou então as tendências autoritárias colocam o Brasil como um agente desestabilizador – “potência do caos” – na região.

‘O desprezo com as políticas de proteção ambiental, a condução diante da pandemia de Covid-19 ou então as tendências autoritárias colocam o Brasil como um agente desestabilizador na região.

Nos think tanks chineses também se verificaram dois momentos. Até meados de 2016, as publicações declararam que o Brasil esteve envolvido como uma governança global responsável, comprometido com os tradicionais princípios e normas ordenadoras internacionais e com uma política externa voltada a construção de uma ordem representativa dos interesses dos países que a época se projetavam como emergentes. Nesse contexto, o Brasil foi visto como um ator político relevante internacionalmente e para a China dado que defendeu o BRICS, o G-20 bem como a construção de uma ordem global multipolar. Dessa forma, os think tanks observaram grandes interesses em comum e recomendaram fortalecimento das relações no bilateral e multilateral.

Sobretudo a partir de 2019, com o governo Bolsonaro, os think tanks chineses descrevem um país que adotou uma visão ideológica de extrema direita alinhada aos EUA, especialmente quando Trump permaneceu à frente da presidência estadunidense. Para os analistas chineses, os anúncios de saída de alguns compromissos multilaterais de governança global, o abandono da cooperação com os países em desenvolvimento e do modelo de integração regional voltado ao desenvolvimento e diálogo estabilizador têm forte impacto à estabilidade regional, às dinâmicas de governança global e à concertação política bilateral e multilateral com a China. Também contribuíram para essa visão os constantes discursos críticos do presidente brasileiro e seus filhos em relação à China desde a campanha.

O Brasil e o futuro

A visão dos think tanks acima apresentados permite entender como as elites políticas que permeiam o debate e a tomada de decisões em política de três grandes potências interpretam a posição do Brasil no cenário político internacional atual. O seu conteúdo aponta que cada think tank está ligado aos interesses econômicos e políticos bilaterais, regionais e globais de seus países. Nesse contexto, ao Brasil foram atribuídas diferentes interpretações que variaram de acordo com os think tanks. Em certos pontos, tais como a atuação por meio do BRICS, relação com a China ou o protagonismo na Declaração de Teerã, as avaliações são bastante divergentes. Em comum, todos os think tanks têm desenvolvido uma percepção extremamente negativa da política externa brasileira do governo Bolsonaro.

‘Em comum, todos os think tanks têm desenvolvido uma percepção extremamente negativa da política externa brasileira do governo Bolsonaro.’

Para o Brasil, essas análises constituem importantes ferramentas que podem ajudar na avaliação estratégica e nas formulações da política do país para estes atores, assim como para os fóruns internacionais nos quais o Brasil interage com eles. Com exceção do momento atual, é possível observar que, a partir de uma perspectiva discursiva, a política externa brasileira, mesmo com constrangimentos, tem espaço para explorar parcerias com esses grandes atores com o objetivo de alcançar seus interesses nacionais. Para tanto, faz-se necessário relembrarmos os tradicionais princípios que a diplomacia brasileira desenvolveu ao longo de sua história. A construção do nosso interesse nacional também passa pelo estabelecimento de um diálogo com os diversos atores sociais domésticos envolvidos nos debates em política externa, sejam eles políticos, diplomatas, grandes empresários como também as diversas iniciativas no âmbito acadêmico e civil mais amplo que trabalham intensamente para pensar nossos problemas e soluções a partir da interação do país com o internacional.


Referências:

SVARTMAN, M, Eduardo; WIETCHIKOSKI, Luciana (Org.). O Brasil visto de fora: os think tanks e as representações sobre o Brasil num mundo em mudança (2000-2020). 1. ed. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2021.

WIETCHIKOSKI, Luciana. A atuação internacional do Brasil no século XXI: as visões dos principais think tanks estadunidenses (2003-2016). 2018. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018.

Luciana Wietchikoski é doutora em ciência política pela UFRGS com estágio pós-doutoral em relações internacionais pela UFSC e professora na Unisinos

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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