Da guerrilha à Presidência da República, o aprendizado de José Pepe Mujica
Raros políticos ganharam exposição pública, no Uruguai e além de suas fronteiras, como Pepe Mujica, especialmente depois de seu governo. A simplicidade que sempre marcou sua vida, que contrasta com o modus vivendi de quase todos os seus pares mundo afora, abriu-lhe púlpitos nos quais repartiu seus aprendizados

Por Luiz Roberto Serrano*
O desfecho já era esperado há algum tempo em função da deterioração de seu estado de saúde, que ele não escondeu de ninguém, chegando a pedir, ultimamente, que o deixassem em sossego. Pedido compreensível, tendo em vista a atração que o ex-guerrilheiro e ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica exercia sobre os seus simpatizantes e, especialmente, sobre os jornalistas que não cansavam de entrevistá-lo.
O desenlace, resultante da deterioração de sua saúde, deu-se nesta segunda-feira, 12 de maio, quando foi anunciado seu falecimento. Sua partida, aos 89 anos, recebeu uma inusitada e extensa cobertura da imprensa mundial, inclusive da brasileira. Mais do que isso: as cerimônias de adeus atraíram a presença de multidões de uruguaios para prestar-lhe suas últimas homenagens, uma demonstração de como a sua vida calou fundo no seu país natal.
A caminhada de Pepe Mujica percorreu extremos da vida política de seu país. Foi militante, como guerrilheiro, do grupo “revolucionário” Tupamaro; passou por um duro e sofrido isolamento carcerário, que se estendeu por mais de uma década, durante sua prisão pelo então regime militar uruguaio em 1972; foi senador, eleito dentro das regras democráticas que passaram a vigorar no país depois da queda do regime ditatorial; disputou e conquistou a Presidência da República do Uruguai para o período de 2010 a 2015.
Uma trajetória rica em ensinamentos sobre as tortuosas veredas políticas desta América Latina. Pepe Mujica foi um dos sete presidentes latino-americanos que vivenciaram guerrilhas: Fidel e Raúl Castro, em Cuba; Daniel Ortega, ainda no poder na Nicarágua; Dilma Rousseff , ex-presidente do Brasil; Salvador Sánchez Cerén, ex-presidente em El Salvador, e Gustavo Petro, atual mandatário da Colômbia. Nenhum deles, à exceção dos irmãos Castro, ganhou a evidência conquistada por Pepe Mujica, que continuou a ser estrela mesmo após deixar a presidência de seu país.
Além da trajetória política, o grande diferencial de Pepe Mujica foi o modo simples que manteve ao longo da vida. Como presidente da República, continuou morando no bairro operário de Rincón del Cerro, a 20 minutos do centro de Montevidéu, numa propriedade com 20 hectares, que abrigava uma casa muito singela, onde vivia com a esposa, a senadora Lucia Topolansky, e cultivava flores e hortaliças. Mesmo como presidente da República, continuou deslocando-se em seu modesto Volkswagen azul, modelo universalmente conhecido como “besouro”. E ainda fez doações de partes da propriedade para construções com fins sociais, uma delas para a Universidade do Trabalho do Uruguai.
Mujica foi presidente da República entre 2010 e 2015 pela Frente Ampla , fundada em fevereiro de 1971, uma coalização eleitoral uruguaia que reunia da centro-esquerda à esquerda e da qual fazem parte vários partidos políticos e organizações da sociedade civil. E que dois anos depois de sua fundação, em 1973, foi colocada na clandestinidade por um dos golpes militares que assolaram a América Latina naquele período.
Com a volta da democracia, 12 anos depois, a Frente Ampla foi recuperando espaço e elegeu Tabaré Vasquez para a presidência para o período 2005-2010. Seu sucessor, como já dito acima, foi o nosso personagem, José Pepe Mujica, que foi secundado no cargo pelo próprio antecessor, Tabaré Vasquez, caracterizando 15 anos da Frente Ampla no governo da república vizinha. Depois de um interregno, com a eleição de Luís Lacalle Pou, do Partido Conservador, a Frente Ampla voltou ao governo com a ascensão de Yamandu Orsi à Presidência da República.
São muito citadas como marcas do governo de Mujica algumas medidas como a liberação do uso da maconha, a legalização do aborto e a permissão ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Todas consideradas avançadas pelos padrões de sociedades conservadoras. Mas, além disso, os governos da Frente Ampla foram e têm sido tempos de implementação de medidas de recuperação econômica para as faixas menos favorecidas da população. Em declarações à agência Bloomberg Linea, Daniel Chasquetti, doutor em Ciência Política da Universidade da República do Uruguai, sintetizou os efeitos dessas políticas: “Ao final do primeiro mandato da Frente Ampla (de Vasquez) a pobreza caiu de 39,9% para 21% da população e quando Mujica, seu sucessor, saiu do governo, já caíra para 9,7%”.
Raros políticos ganharam exposição pública, no Uruguai e além de suas fronteiras, como Pepe Mujica, especialmente depois de seu governo. A simplicidade que sempre marcou sua vida, que contrasta com o modus vivendi de quase todos os seus pares mundo afora, abriu-lhe púlpitos nos quais repartiu seus aprendizados. Alguns deles:
Sobre seu estilo de vida:
“Eu não sou pobre, eu sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo apenas com o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade”.
Sobre suas temporadas em prisões:
“… Passamos mais de dez anos de solidão na prisão, e tivemos tempo… passamos sete anos sem ler um livro, e tivemos muito tempo para pensar. E descobrimos o seguinte: ou você alcança a felicidade com pouca e leve bagagem, porque a felicidade está dentro de você, ou você não alcança nada”.
“Tive que aguentar 14 anos em cana. (…) Nas noites que me davam um colchão eu me sentia confortável; aprendi que se você não pode ser feliz com poucas coisas, você não vai ser feliz com muitas coisas. A solidão da prisão me fez valorizar muitas coisas”.
Sobre o sentido da vida:
“Porque não viemos ao planeta apenas para nos desenvolvermos, assim, de forma geral. Viemos ao planeta para sermos felizes, porque a vida é curta e passa rápido. E nenhum bem vale tanto quanto a vida — isso é o essencial”.
Finalmente a grande lição, do ativista que transitou da guerrilha à Presidência da República, sempre em perseguição a uma sociedade mais justa para todos:
“Pensávamos que era só chegar ao governo e construir uma sociedade mais justa. Descobrimos que isso é impossível. A verdadeira transformação política deve acontecer de baixo para cima, com a democracia”.
*Luiz Roberto Serrano é jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP
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