Dia do Orgulho, cruzadas anti trans e o fim do mundo
Mais de 50 anos depois da revolta que levou à criação do Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA, a pauta trans ganha destaque de forma trágica, como alvo em comum de fundamentalistas cristãos, extrema direita e feministas radicais

Celebrado ao redor do mundo em festas de rua, passeatas, discursos de políticos e peças publicitárias, o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA nasceu de uma revolta.
Na noite de 28 de junho de 1969, os frequentadores do bar Stonewall Inn, em Nova York, cansados da truculência policial a que eram constantemente submetidos, decidiram revidar atirando copos e se recusando a ser presos. O confronto se alastrou pelos arredores, com apoio da vizinhança, que entrou na briga e ajudou a fazer com que a polícia recuasse.
Uma das particiṕantes mais ativas do evento ficou conhecido como a Revolta de Stonewall foi Marsha P. Johnson, uma drag queen e travesti negra. Ao lado da amiga Sylvia Rivera, outra mulher trans, Marsha esteve na linha de frente dos protestos. Nas décadas seguintes as duas se tornaram vozes importantes no ativismo em defesa das pessoas trans, que consideravam marginalizado dentro do movimento gay.
‘Mais de 50 anos depois, com o ativismo LGBTQIA consolidado ao redor do mundo, a pauta trans ganha visibilidade de maneira trágica’
Mais de 50 anos depois, com o ativismo LGBTQIA consolidado ao redor do mundo, a pauta trans ganha visibilidade de maneira trágica. O tema é relegado ao segundo plano pela esquerda tradicional, ao mesmo tempo que políticas anti trans são abertamente defendidas em governos democráticos. Esse movimento não conta apenas lideres conservadores ou religiosos, tendo apoio de uma parcela do movimento feminista e de celebridades como a escritora J.K. Rowling, autora da série Harry Potter.
Ameaça global
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece a autodeterminação de gênero como um direito humano. Contudo esse princípio tem sido ignorado na ascensão de políticos ultraconservadores que, em associação com a direita cristã, têm se empenhado na criação de políticas discriminatórias que impactam diretamente na vida de transexuais e transgêneros.
‘O Brasil lidera o número global de assassinatos de pessoas trans há 16 anos, e a tentativa de criar dispositivos legais contra essa população é bastante expressiva’
O Brasil lidera o número global de assassinatos de pessoas trans há 16 anos, com 122 mortes registradas em 2024, apesar de uma queda de 16% em relação ao ano anterior. Mesmo assim, a tentativa de criar dispositivos legais contra essa população é bastante expressiva nas esferas federal e estadual.
Entre janeiro de 2019 e 31 de outubro de 2024, foram apresentados 437 projetos considerados prejudiciais para pessoas LGBTQIA+. Temas como proibição da linguagem neutra, interferências em políticas de educação antidiscriminatória, participação em eventos esportivos e a restrição do uso de banheiros para pessoas trans representam 56% das propostas. Mais de 50% desses projetos é de autoria de parlamentares de três partidos: PL (159), Republicanos (62) e União Brasil (31).
‘O país segue uma tendência em andamento em diversas nações de tradição democrática’
O país segue uma tendência em andamento em diversas nações de tradição democrática, como Estados Unidos e Inglaterra, cujas políticas anti trans tiveram destaque internacional nos últimos meses.
O novo governo de Donald Trump já em seus primeiros dias colocou em prática políticas contra a população trans, declarando que o governo federal só reconheceria dois sexos, homens e mulheres.
Na prática o ato determinou que apenas esses dois sexos seriam reconhecidos por documentos oficiais, como passaportes e vistos. A deputada federal Erika Hilton (PSOL/SP) foi uma das figuras públicas afetada pela medida, ao ter seu gênero mudado para masculino no ato da emissão do visto pela embaixada dos Estados Unidos. A parlamentar faria uma viagem oficial ao país, mas desistiu temendo que o desrespeito à sua identidade de gênero se tornasse um perigo para sua segurança.
‘O novo governo do republicano também eliminou iniciativas de diversidade, equidade e inclusão do governo’
O novo governo do republicano também eliminou iniciativas de diversidade, equidade e inclusão do governo, também afeta políticas que buscavam ampliar as proteções à discriminação sexual para incluir orientação sexual e identidade de gênero. Tratamentos de transição de gênero foram proibidos para menores de 19 anos e houve corte no financiamento para escolas e hospitais que pesquisam esses tratamentos. A presença de pessoas trans nas forças armadas e das competições esportivas foi proibida.
Trump determinou ainda que as presas trans sejam colocadas em prisões masculinas e que os tratamentos de pessoas trans presas fossem retirados, mas a medida foi barrada por um juiz federal.
Feministas trans excludentes
Em alguns lugares a ofensiva anti trans, em geral capitaneada pela extrema direita, tem sido endossada por uma facção movimento feminista, em geral alinhado ao campo político progressista ou de esquerda. TERFs, sigla para Trans Excludent Radical Feminists (Feministas Radicais Trans Excludentes), têm-se aliado aos conservadores para restringir os direitos de transexuais.
‘Corrente crítica considera um risco à segurança das mulheres cisgêneras a presença de mulheres trans em espaços exclusivos para mulheres’
Essa corrente considera um risco à segurança das mulheres cisgêneras (as que são designadas mulheres ao nascer) a presença de mulheres trans em espaços exclusivos para mulheres como prisões femininas ou abrigos para vítimas de violência doméstica. Outros argumentos usados por essa vertente é o de que mulheres trans reforçam estereótipos de gênero e representam uma ameaça à igualdade e que as mulheres trans seriam “homens infiltrados” para desestabilizar o movimento feminista.
Apesar desses posicionamentos serem rejeitados pela maior parte do movimento feminista, as TERF já firmaram alianças com grupos conservadores para impedir que pessoas trans fossem incluíudas em legislações que protegem contra a discriminação de gênero.
O caso mais recente aconteceu no Reino Unido, quando a Suprema Corte decidiu que a definição de mulher na legislação de igualdade se refere a “uma mulher biológica e sexo biológico”. A decisão foi celebrada pela escritora J.K. Rowling em suas redes sociais. A autora de Harry Potter tem se posicionado publicamente como feminista trans excludente, apoiando financeiramente organizações contrárias aos direitos das mulheres trans.
Em defesa de qual vida?
Há registro de pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento em diversas sociedades e épocas.
Na Índia (hijras) e na Tailândia (kathoeys) são pessoas trans femininas que representam um terceiro e tem papel espiritual importante em suas comunidades. África, Oceania, Ásia e nas Américas possuem registros da presença de pessoas que representariam o terceiro sexo ou pessoa dotada de dois espíritos antes da colonização europeia. Nos Bálcãs, desde 1400, as virgens juramentadas são pessoas designadas como mulheres ao nascer, mas que optaram por viver a identidade masculina.
‘Com a colonização e difusão do cristianismo ao redor do globo, difundiu-se também uma visão binária de sociedades, hierarquizada entre masculino e feminino e com o sexo voltado para a reprodução’
Com a colonização e difusão do cristianismo ao redor do globo, difundiu-se também uma visão binária de sociedades, hierarquizada entre masculino e feminino e com o sexo voltado para a reprodução.
Conforme explica a filósofa Judith Butler, a doutrina da Igreja prega a existência de papéis distintos para homens e mulheres na vida pública e na família. Sob esta ótica, defender a existência de mais de um modo de organizar sexualidade, família e parentesco e que o gênero pode ser dissociado do sexo representaria a falência moral e, no limite, a destruição da natureza e da própria vida na Terra.
‘Não são as pessoas trans que ameaçam a vida na Terra’
A realidade, porém, é que independente do que dizem governos de direita, feministas trans excludentes ou líderes religiosos, não são as pessoas trans que ameaçam a vida na Terra.
No momento em que finalizo essa coluna quem o faz é o conflito Israel, Irã e Estados Unidos. Três países governados por líderes ultraconservadores (em diferentes graus), engajados numa disputa de poder patriarcal, onde a conciliação é sobrepujada pela lógica da dominação.
As pessoas trans, assim como as famílias que neste momento são bombardeadas em algum lugar do Oriente Médio, querem poder viver em paz.
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
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