E agora, Síria?
Bastou uma semana para o mapa da guerra na Síria ser reconstruído, abrindo espaço para a reformulação da geopolítica regional e criando um leque de oportunidades para o questionamento territorial de parte da Turquia, dos irredentistas curdos, da Rússia, do Irã, além dos “fundamentalistas” do Estado Islâmico
![](https://interessenacional.com.br/wp-content/uploads/2024/12/image1170x530cropped-3-1024x464.jpg)
De forma muito acelerada, e até certo ponto inesperada, os rebeldes sírios finalmente ocuparam Damasco no último dia 7.
O presidente Bashar Al-Assad fugiu; refugiou-se em Moscou, e um novo governo, liderado pelo grupo Hayat Tahrir ai-Sham (HTS), sob a chefia de Abu Mohammed al-Juliani, passou a ocupar o poder na Síria.
Ainda que se afirmando “desvinculado”, este grupo tem suas raízes na Al Qaeda, a mesma falange sunita que, recordemos, destruiu as Torres Gêmeas de Nova York e ocupa atualmente de forma opaca o poder no Afeganistão. Outros grupos participaram da operação: a Frente Nacional de Libertação, o Ahrar al-Sham, o Jaish al-Izza e o Movimento Nour al-Din al-Zenki, bem como facções apoiadas pela Turquia, sob a égide do Exército Nacional Sírio.
‘Vários países, tanto da região quanto do Ocidente, manifestaram apoio ao poder que se instalou em Damasco’
Vários países, tanto da região quanto do Ocidente, manifestaram apoio ao poder que se instalou em Damasco: os líderes europeus celebraram a queda do regime de Bashar al-Assad, que qualificaram de “bárbaro e cruel”, e pediram estabilidade e paz na reconstrução do país.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, acrescentou que “a Europa está pronta para ajudar a Síria a se reconstruir”; a Grã-Bretanha e a Alemanha compartilharam deste sentimento. O presidente francês, Emmanuel Macron, foi ainda mais direto em seu post no X: “O Estado bárbaro caiu. Enfim”…
O presidente Joe Biden disse que planeja falar com líderes da região ao redor da Síria. Num breve comentário na Casa Branca, ele disse que enviaria altos funcionários do governo para a região, a fim de proteger os nacionais americanos e manter a segurança nos centros de detenção dos combatentes do Estado Islâmico. Referindo-se aos próximos passos, Biden disse que os Estados Unidos planejam se envolver num processo liderado pela ONU “para estabelecer a transição mais pacífica possível”. Ele enfatizou, porém, que este processo deve ser determinado pelo povo sírio.
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, também mencionou que seu enviado especial está “trabalhando com os sírios”.
‘Donald Trump, porém, já afirmou que a crise não é um problema dos EUA‘
Donald Trump, porém, já afirmou que a crise não é um problema dos EUA – “it´s not our business” – sinalizando que após a sua posse o país poderá ficar fora do conflito.
Será? E que tipo de reconstrução é possível numa das regiões mais complexas e tumultuadas do planeta? Recorramos, como de costume, à história política recente.
Com efeito, bastou uma semana para o mapa da guerra na Síria ser reconstruído, abrindo espaço para a reformulação da geopolítica regional, que criou, aliás, um “leque de oportunidade” para o questionamento territorial de parte da Turquia, dos irredentistas curdos, da Rússia, do Irã, além dos “fundamentalistas” do Estado Islâmico.
E qual é este status quo?
‘Basta olhar para o mapa para nos conscientizarmos da profunda complexidade da região e do jogo de poder que ali se desenrola há séculos’
Basta olhar para o mapa para nos conscientizarmos da profunda complexidade da região e do jogo de poder que ali se desenrola há séculos.
No caso da Turquia, a indefinição que ora reina em Damasco é vista como a oportunidade ideal para tomar o controle da parte da sua fronteira com a Síria das mãos dos curdos, que são hoje cerca de 30 milhões de pessoas, na maioria muçulmanos sunitas.
Recordemos que há milênios eles reclamam um território – um Estado próprio – que abrangeria, em tese, partes da Turquia, Irã, Síria e Iraque. O plano dos turcos é controlar os dois lados da fronteira no nordeste da Síria e estabelecer uma “zona de segurança”, de cerca de 32 quilômetros, para impedir que isto aconteça.
Os russos, por sua vez, que eram os aliados – e garantes – de Assad, a quem agora dão asilo, embora fragilizados pela guerra na Ucrânia, ainda tencionam ocupar os espaços vazios deixados pelos americanos, que operam bases militares em todo o Oriente Médio há décadas.
No seu auge, em 2011 havia mais de 100 mil soldados dos EUA no Afeganistão, e mais de 160 mil no Iraque, em 2007. Embora o número seja muito inferior após a retirada do Afeganistão em 2021, ainda existem cerca de 30 mil soldados americanos espalhados pela região. Na Síria, atualmente são apenas cerca de 900 deles, em pequenas bases como no campo petrolífero de al Omar e al-Shaddadi, no nordeste do país. Este movimento de introversão anuncia-se ainda mais aguerrido na próxima administração americana e redesenharia o equilíbrio de poder no Oriente Médio.
O Exército de Israel, por sua vez, entrou na zona desmilitarizada na fronteira com a Síria para garantir a proteção dos seus cidadãos que vivem no território que ocupa nas colinas de Golan desde a guerra de 1967. Este território está situado no nordeste do país, a cerca de 60 quilômetros de Damasco. Os israelenses afirmam, entretanto, que a ocupação é “limitada e temporária”.
‘É ingênuo da parte do Ocidente acreditar que os grupos jihadistas sunitas não permanecem aguerridos’
É ingênuo da parte do Ocidente – e dos americanos, em particular – acreditar que os grupos jihadistas sunitas – a al Qaeda e seu subproduto, o Estado Islâmico – não permanecem aguerridos: eles estão únidos pela mesma percepção do islã.
Como sabemos, o fulcro de toda a problemática que divide o mundo muçulmano é o antagonismo na disputa pela herança política do islã desde a morte do profeta Maomé, em 632 EC. Se pesquisarmos quais são as correntes que estão na base de todas as disputas intrarreligiosas suni/xia, na Síria, inclusive, vemos que, o grande líder do mundo xiita – o vizinho Irã – , que apoiava o regime alauita (uma derivação do xiismo) de Bashar al-Assad – tem como “inimigo” a outra corrente da mesma fé – os sunitas do Al Qaeda e do Estado Islâmico.
‘No fundo, o fulcro de toda a questão está na divisão entre sunitas e xiitas’
No fundo, no fundo, o fulcro de toda a questão está na divisão entre sunitas e xiitas. Este é o “x” da questão : “it´s religion, stupid“. E este é um tema que nos é totalmente alheio e que jamais compreenderemos inteiramente. Eu sei porque vi!
E, nesta grande confusão – herdeira da história – onde estaria a “verdade” ? Será que a Síria “pacificada” conseguirá, como alardeiam os novos donos do poder, ofertar à população as mesmas liberdades para todas as religiões e para as mulheres, como foi durante a “ditadura” de Bashar al-Assad? Ou será, como tem sido no caso do Afeganistão, que uma vez no poder as camadas mais radicais e obscurantistas ditarão o comportamento da elite política?
Quem ganha…e quem perde?
Esperemos que dê certo: a paz mundial reclama.
To be continued (ainda tem muito chão…)
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional