12 abril 2023

É possível diminuir a desigualdade econômica no Brasil?

A situação política interna e o contexto internacional tornam improvável que o novo governo consiga grandes avanços na área, mas o fato de a desigualdade de renda ter diminuído no passado recente deve dar aos brasileiros a confiança de que ela pode cair novamente. Para professor, o Brasil não está condenado pela história à alta desigualdade, e existem razões para ser otimista sobre as possibilidades de queda dela no longo prazo

A situação política interna e o contexto internacional tornam improvável que o novo governo consiga grandes avanços na área, mas o fato de a desigualdade de renda ter diminuído no passado recente deve dar aos brasileiros a confiança de que ela pode cair novamente. Para professor, o Brasil não está condenado pela história à alta desigualdade, e existem razões para ser otimista sobre as possibilidades de queda dela no longo prazo

Cerimônia de lançamento do novo programa Bolsa Família, uma tentativa do governo de combater a pobreza e a desigualdade (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Anthony W. Pereira*

Junto ao Oriente Médio e à África do Sul, o Brasil lidera o mundo em desigualdade econômica (Piketty 2020: 22). No entanto, entre 1995 e 2015, o coeficiente de Gini do Brasil –uma medida convencional, embora um tanto limitada, da desigualdade de renda– caiu de 0,596 para 0,519, uma queda de cerca de 13% (Banco Mundial 2023; De Barros 2022: 246). Embora houvesse esperanças de que essa redução da desigualdade continuasse, a tendência desde 2015 tem sido o aumento da desigualdade econômica (Tornaghi 2021). Um relatório do banco Credit Suisse revelou que, em 2020, a parcela de 1% mais rica da população no Brasil recebeu 49,6% da renda total, em comparação com 42,8% no Chile, 40% na Índia, 35% nos Estados Unidos, 33,6% na México e 18% no Japão (Elias 2021).

Quais são as perspectivas de um retorno às taxas decrescentes de desigualdade econômica no Brasil? A questão é importante porque os atuais altos níveis de desigualdade do Brasil estão ligados a pelo menos três problemas da economia e da sociedade. Altas taxas de desigualdade criam sentimentos subjetivos de privação relativa e impedimentos à autorrealização, ou ao exercício do que o economista e filósofo Amartya Sen (2000) chama de capacidades, entre os que menos ganham. Também inibem o crescimento do mercado interno e limitam as possibilidades de desenvolvimento, contribuindo para a falta de inovação (Sanchez-Ancochea 2021: 10; Tornaghi 2021). Finalmente, eles estão correlacionados com baixos níveis de confiança interpessoal, bem como confiança nas instituições políticas (Scartascini e Vale 2021), sugerindo que a desigualdade pode tornar mais difícil alcançar uma democracia robusta.

A desigualdade também está ligada à pobreza. Sob condições de alta desigualdade, o crescimento econômico faz menos para reduzir a pobreza do que faria de outra forma. Não é por acaso que o período de queda da desigualdade no Brasil eentre 1995-2015 foi também um período de redução substancial do número de famílias vivendo na pobreza.

Razões para otimismo

Existem algumas razões para ser otimista sobre as possibilidades de novas quedas na desigualdade econômica no Brasil, pelo menos no longo prazo. O Brasil não está condenado pela história à alta desigualdade. Não aboliu a escravidão até 1888, mas algum tipo de trabalho forçado é a história comum da maior parte da humanidade antes da revolução industrial. Por exemplo, a Dinamarca –um país hoje associado a um alto nível de desenvolvimento humano e relativa igualdade econômica e social– tinha condições de trabalho serviçais em suas propriedades agrícolas no século XVIII. Camponeses do sexo masculino com idades entre 14 e 36 anos foram forçados a permanecer nas propriedades onde nasceram sob as regras do Stavnsbånd, que não foram abolidas até 1788 (Børn 1977: 117). Nas Américas, a escravidão foi generalizada até o início do século XIX, e em 1860 o número de escravos nos Estados Unidos (cerca de 4 milhões) era muito maior do que no Brasil (cerca de 1,6 milhão) e Cuba (cerca de 400 mil) (Piketty 2021: 70).

‘Os níveis de desigualdade são resultado de escolhas políticas que não são inevitáveis nem “naturais”’

Um dos estudiosos mais conhecidos das desigualdades de riqueza e renda, Thomas Piketty, argumenta que a desigualdade é moldada pelo regime de propriedade do Estado, códigos tributários, políticas de educação e saúde, sistema de relações trabalhistas e leis de imigração. Em outras palavras, os níveis de desigualdade são resultado de escolhas políticas que não são inevitáveis nem “naturais”. Qualquer comunidade política pode optar por aplicar o princípio que o filósofo John Rawls identificou em seu clássico Uma Teoria da Justiça, publicado pela primeira vez em 1971. Ou seja, “desigualdades sociais e econômicas, por exemplo, desigualdades de riqueza e autoridade, são justas apenas se resultam em benefícios compensatórios para todos, e em particular para os membros menos favorecidos da sociedade” (Rawls 1999: 13).

‘No Brasil, uma variedade de políticas produziu a queda da desigualdade entre 1995 e 2015, que foi especialmente marcante durante os dois primeiros mandatos de Lula’

No Brasil, uma variedade de políticas produziu a queda da desigualdade entre 1995 e 2015, que foi especialmente marcante durante os dois primeiros mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Como outros governos da chamada “onda rosa” na América Latina durante esse período, o governo Lula se beneficiou do aumento dos preços das commodities. Ampliou e consolidou os programas de transferência condicionada de renda, sendo o mais notável o Bolsa Família. Elevou o valor real do salário mínimo. Criou programas de crédito consignado com taxas de juros relativamente baixas, ampliando o acesso ao mercado de consumo para milhões de pessoas. Também aumentou o acesso à universidade para estudantes de baixa renda por meio de empréstimos estudantis do ProUni e (sob a presidência de Dilma Rousseff) determinou cotas de admissão em universidades federais para indígenas, afro-brasileiros e estudantes de escolas estaduais.

O fato de a desigualdade de renda ter diminuído constantemente ao longo de duas décadas no passado recente deve dar aos brasileiros a confiança de que ela pode cair novamente. É verdade que a extensão, a importância e o significado do declínio são debatidos, e é difícil obter dados confiáveis sobre a desigualdade de riqueza. Também é verdade que o desempenho relativo do país na região não é excepcional, com quedas maiores sendo registradas em países como Chile e Peru no mesmo período (Taylor 2020: 7-8). E o país ainda continua campeão da desigualdade, o mais desigual da região mais desigual do mundo, a América Latina e o Caribe. Mas as escolhas políticas são importantes e reduziram a desigualdade no passado.

Barreiras de Curto Prazo

Então, a desigualdade de renda poderia cair no atual governo do presidente Lula? Isso parece improvável por pelo menos três razões. Estas são as limitações e o esgotamento das políticas da “onda rosa”, o atual equilíbrio de forças políticas e a situação internacional.

Piketty (2020: 953-958) argumenta que foi a classe média (aqueles abaixo dos 10% superiores da distribuição de renda e acima dos 50% inferiores) que pagou pelas políticas do Partido dos Trabalhadores. Isso pode ser visto na política de salário mínimo, que elevou o custo de bens não exportáveis em áreas como serviços (incluindo educação privada e assistência médica privada) usados fortemente pela classe média (Loureiro 2018). Embora esse tipo de política tenha aumentado a proporção da renda nacional destinada aos 50% de assalariados mais pobres entre 2002 e 2015, era difícil sustentá-los, porque induziam a oposição da classe média e reduziam a competitividade de muitas exportações, especialmente bens manufaturados.

Além disso, aqueles que estão entre os 10% mais ricos não tiveram queda em suas rendas entre 2002 e 2015. Na verdade, aqueles que estão no 1% mais rico aumentaram sua participação na renda nacional no mesmo período, ganhando o dobro como os ganhos dos 50% mais pobres (Piketty 2020: 957). Para Piketty, isso refletia uma fragilidade das políticas dos governos Lula e Dilma: eles nunca tentaram tornar a tributação sobre riqueza e renda mais progressiva.

‘O bolsonarismo, longe de se preocupar com a desigualdade econômica, parece refletir um desejo de reimpor hierarquias e desigualdades sociais tradicionais’

É improvável que o atual governo Lula consiga isso, em parte porque a oposição bolsonarista de extrema-direita ao PT é mais forte do que era nos anos 2000. O bolsonarismo, longe de se preocupar com a desigualdade econômica, parece refletir um desejo de reimpor hierarquias e desigualdades sociais tradicionais em uma sociedade que, na visão bolsonarista, tornou-se perigosamente caótica e profundamente hostil aos valores sociais, religiosos e nacionais tradicionais. Uma vez que os bolsonaristas associam o PT ao crime organizado –e o crime organizado é inimigo dos “bons cidadãos”– esses “bons cidadãos” supostamente se opõem às tentativas do PT de promover os interesses daqueles na metade inferior da distribuição de renda.

Embora intervenções específicas e limitadas para melhorar a situação fiscal precária do governo brasileiro possam ser imaginadas sob o atual governo Lula, uma ampla reforma tributária na direção da progressividade – por mais que aproxime o Brasil das normas internacionais nessa área – é difícil imaginar.

‘A atual situação internacional não oferece um ambiente propício para aspirantes a reformadores ansiosos por aumentar a igualdade econômica no Brasil’

Finalmente, a atual situação internacional não oferece um ambiente propício para aspirantes a reformadores ansiosos por aumentar a igualdade econômica no Brasil. Houve um aumento substancial da desigualdade em todo o mundo nas últimas cinco décadas. Na Índia, nos Estados Unidos, na China, na Europa e na Rússia, os 10% mais ricos receberam 25-35% da renda total em 1980, mas subiram para 35-55% em 2018 (Piketty 2020: 20-21). Mais recentemente, a cooperação internacional para engendrar a convergência –um piso comum – na tributação de pessoas físicas e jurídicas tornou-se menos provável do que antes. Isso se deve principalmente ao aumento das tensões geopolíticas e ao aumento da competição econômica nacional após a guerra na Ucrânia e ao aumento da hostilidade mútua entre os Estados Unidos e a China.

Estima-se que os paraísos fiscais (envolvendo atividades legais e ilegais) custem aos governos em todo o mundo US$ 200 bilhões por ano, quando se trata de indivíduos, e US$ 500 a US$ 600 bilhões por ano, quando se trata de corporações (Shaxson 2019). Setores econômicos inteiros, como bancos privados, viagens e hospitalidade sofisticada, alta costura, atividades de fundações filantrópicas, financiamento de campanhas políticas e arrecadação de fundos universitários, são entregues a bajulações indignas em relação a indivíduos de alto patrimônio líquido e gerentes de corporações ricas. O governo brasileiro estaria nadando contra uma maré global muito forte se conseguisse reduzir a desigualdade econômica nas condições atuais.


*Anthony W. Pereira é colunista da Interesse Nacional, diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/anthony-w-pereira-o-brasil-conseguira-se-reindustrializar/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências

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Celso Rocha de Barros, PT, Uma História (São Paulo: Companhia das Letras, 2022).

Claus Bjørn, “The Peasantry and Agrarian Reform in Denmark” in Scandinavian Economic History Review, Volume 25, Number 2, 1977, pp. 117-137.

Matías Busso and Julián Messina, “Montesquieu’s Mistake, or Why Inequality Doesn’t Have to be Part of the Latin American DNA” in Ideas Matter, a blog of the Inter-American Development Bank, 12 May 2021, at https://blogs.iadb.org/ideas-matter/en/montesquieus-mistake-or-why-inequality-doesnt-have-to-be-part-of-the-latin-american-dna/ accessed on 2 April 2023.

Juliana Elias, “Desigualdade no Brasil Cresceu (de Novo) em 2020 e Foi a Pior em Duas Décadas” in CNN Brasil, 23 June 2021.

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Diego Sanchez-Ancochea, The Costs of Inequality in Latin America: Lessons and Warnings for the Rest of the World (London: IB Taurus, 2021).

Carlos Scartascini and Joanna Vale, “How Perceptions of Inequality Affect Trust in Latin America and the Caribbean” in Ideas Matter, a blog of the Inter-American Development Bank, 12 May 2021, at https://blogs.iadb.org/ideas-matter/en/how-perceptions-of-inequality-affect-trust-in-latin-america-and-the-caribbean/ accessed on 2 April 2023. 

Amartya Sen, Development as Freedom (New York: Anchor Books, 2000).  

Nicholas Shaxson, “Tackling Tax Havens” in Finance and Development, International Monetary Fund, September 2019 at: https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/2019/09/tackling-global-tax-havens-shaxon accessed on 2 April 2023.

Matthew M. Taylor, Decadent Developmentalism: The Political Economy of Democratic Brazil (Cambridge: Cambridge University Press, 2020).

Cecilia Tornaghi, “Inequality is Brazil’s Achilles Heel” in Americas Quarterly, 19 July 2021, at https://www.americasquarterly.org/article/inequality-is-brazils-achilles-heel/ accessed on 2 April 2023.

World Bank, Gini Index – Brazil at Data Worldbank.org 2023 at: https://data.worldbank.org/indicator/SI.POV.GINI?locations=BR accessed on 2 April 2023.

Anthony W. Pereira é diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na Escola de Assuntos Globais do King’s College London, onde dirigiu o King’s Brazil Institute.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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