27 fevereiro 2025

Emilia Pérez – Cadê o filme horroroso que prometeram?

Muito distintos um do outro, os rivais Emília Perez e Ainda Estou Aqui afirmam a importância da memória e de como isso passa pelo direito das famílias enterrarem seus mortos, vítimas da violência do estado de exceção ou das disputas de poder relacionadas a um dos negócios mais lucrativos do mundo. Passa também pelo protagonismo das mulheres na busca por justiça, e reparação

Não adiantou Fernanda Torres dizer que não queria clima de Copa do Mundo. A indicação ao Oscar veio, e o brasileiro a abraçou como se finalmente a injustiça sofrida por Fernanda Montenegro pudesse ser corrigida e, com isso, lavar a alma do povo. 

Como somos o país das novelas, a carga dramática da corrida de Ainda Estou Aqui pelo Oscar (também indicado a melhor filme internacional e melhor filme) foi intensificada com a emergência de um rival de peso: Emilia Pérez. Aquele filme que se passa no México, dirigido por um francês e estrelado por uma espanhola e duas americanas.  

‘O longa de Jacques Audiard foi aclamado no festival de Cannes até começar a ser cancelado devido aos estereótipos relacionados às pessoas trans e à cultura mexicana’

No ano passado, o longa de Jacques Audiard foi aclamado no festival de Cannes e muito elogiado pela crítica especializada – até começar a ser cancelado devido aos estereótipos relacionados às pessoas trans e à cultura mexicana. 

As declarações do diretor e membros da equipe só contribuíram para aumentar o ranço. O filme chegou até a ganhar uma paródia em protesto, Johanne Sacreblu. O curta da mexicana Camila Aurora é um musical em que os atores reproduzem estereótipos relacionados à França.

Não obstante, Emília Pérez segue vencendo premiações e se tornou uma pedra no caminho da redenção do cinema nacional. Vencida pela curiosidade, decidi assistir a ele, pronta para não gostar. Acabei me deparando com uma trama interessante e que se assemelha mais ao nosso candidato ao Oscar do que se poderia imaginar. Além disso, quando somados aos demais concorrentes, esses dois filmes compõem uma narrativa interessante sobre a visão do cinema de hoje sobre o tempo em que vivemos. 

Gênero e sobrevivência

A questão de gênero em Emilia Perez não está restrita à transição da personagem-título. Ela aparece já na primeira cena, quando a advogada Rita, vivida por Zoe Saldaña, precisa escrever a defesa de um acusado de feminicídio. O caso é vencido com facilidade por seu chefe, que discursa no tribunal, ficando com toda a glória (e maior parte do dinheiro). 

‘Ter um doutorado não é suficiente quando já se é considerada velha ou negra demais’

Nesse momento, Rita recebe um telefonema com uma proposta de trabalho milionária, porém misteriosa. O número musical que vem a seguir mostra Rita dançando em meio a mulheres com roupas de faxineiras, cantando sobre a falta de oportunidades no mercado de trabalho mesmo para quem teve acesso à educação. Ter um doutorado não é suficiente quando já se é considerada velha ou negra demais. 

A missão de Rita é ajudar Manitas del Monte, líder de um cartel, a completar a transição de gênero, iniciada secretamente há dois anos. Manitas tem uma família, com uma esposa e dois filhos, mas está disposta a deixar as pessoas que mais ama para poder assumir sua verdadeira identidade. 

‘Em um meio saturado de masculinidade tóxica, não há como prever as chances de uma mulher trans permanecer viva’

Não se trata de um álibi para fugir da polícia, mas de deixar para trás um núcleo familiar que ela ama, mas que não sabe se a amaria de volta. Trata-se também de sobrevivência. Em um meio saturado de masculinidade tóxica, não há como prever as chances de uma mulher trans permanecer viva. 

Memória e reparação

Apesar do maior chamariz de Emilia Perez ser a transição de gênero e de abordar tangencialmente machismo e diferenciar identidade de gênero de orientação sexual, o tema aborda o tráfico de drogas ilícitas por um ângulo pouco usual: o da reparação e redução de danos. 

Em um arco de redenção, a personagem título se torna uma ativista em busca de pessoas desaparecidas em razão dos carteis, atividade na qual se torna muito bem sucedida, já que dispõe de meios financeiros e contatos internos obtidos em sua vida pregressa. 

Embora esta redenção seja questionável (especialmente por causa da última cena do filme), ela funciona por lançar luz ao sistema e suas contradições internas que contribuem para que esta violência gerada pela guerra entre os carteis se perpetue. 

‘Cidadãos de bem limpam suas reputações doando dinheiro para mitigar problemas que eles ajudaram a criar’

Em um jantar em benefício da causa dos desaparecidos, a advogada Rita se surpreende ao ver entre os convidados políticos corruptos, advogados de criminosos e outras pessoas que enriqueceram às custas do comércio ilícito de estupefacientes. Cidadãos de bem limpam suas reputações doando dinheiro para mitigar problemas que eles ajudaram a criar. 

Muito distintos um do outro, os rivais Emília Perez e Ainda Estou Aqui afirmam a importância da memória e de como isso passa pelo direito das famílias enterrarem seus mortos, vítimas da violência do estado de exceção ou das disputas de poder relacionadas a um dos negócios mais lucrativos do mundo. Passa também pelo protagonismo das mulheres na busca por justiça, e reparação.  

Patriarcado em crise

Vale a pena prestar atenção ao iraniano A semente do fruto sagrado, que também concorre ao prêmio de Melhor Filme Internacional. O longa mostra como o cotidiano de uma família é afetado no momento em que irrompem os protestos contra o uso do véu islâmico, imposto pelo Estado teocrático de 1979. O estopim para esses acontecimentos foi a morte de Mahsa Amini em 2022, aos 22 anos. Presa por supostamente infringir o código de vestimenta, Mahsa morreu sob custódia da polícia. 

A repressão às manifestações provocou a morte de mais de 500 pessoas e levou à detenção de mais de 22 mil. O filme conta como a desobediência feminina é tratada pelo “cidadão de bem”. O pai de família, aquele que parece estar distante da violência estatal, mas que está de acordo com o princípio autoritário, já que tem o privilégio de ser o chefe da casa e por isso vai fazer tudo para manter as coisas exatamente como elas são.

Vale a pena mencionar que a categoria tem mais um filme protagonizado por mulheres, o dinamarquês A garota da agulha, a história de um crime real diretamente relacionado à situação de pobreza e falta de acesso a direitos reprodutivos durante e após a Primeira Guerra. Já quinto indicado, a animação Flow, da Lituânia, chama atenção para as possibilidades de sobrevivência em meio à crise climática – o que na história só pode ser alcançado com cooperação e aprendendo a conviver com a diferença. 

‘Em tempos em que a misoginia tem destaque na rearticulação do conservadorismo mundo e que o apocalipse vem parcelado em ondas de calor e desastres ambientais, é muito oportuno que a ficção levante essas pautas’

Em tempos em que a misoginia tem destaque na rearticulação do conservadorismo mundo e que o apocalipse vem parcelado em ondas de calor e desastres ambientais, é muito oportuno que a ficção levante essas pautas. Seja na busca por justiça e reparação, por direitos reprodutivos ou por liberdade civil, vemos nesses filmes uma mensagem da importância dos ativismos das mulheres, não apenas em questões relacionadas à gênero, mas como modos de atuação política para além das instituições. 

Mulheres estão há tempos na linha de frente de ativismos diversos: na busca por desaparecidos políticos, por  justiça pelos mortos em operações policiais, nos movimentos anti-cárcere, pela justiça climática. Não estamos vivendo sob uma ditadura teocrática ou um estado de exceção permanente dirigido por um líder democraticamente eleito, mas não falta  torcida e esforços para chegarmos lá. A semente do fruto sagrado complementa as discussões trazidas pelos filmes já mencionados. Mesmo em contextos sombrios, é preciso seguir lutando por memória, justiça, por liberdade e pela vida do planeta.

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Arte 🞌 Cultura 🞌 Soft Power 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter