25 junho 2025

Exportando o futuro: o fetichismo da energia e os paradoxos do lítio

O debate energético continua marcado por paradoxos. De um lado, uma racionalidade técnica que ignora o pensamento social; de outro, um discurso que, por vezes, flerta com o irracionalismo, como se fosse possível viver sem energia ou prescindir de sua mediação material

Ilustração criada com inteligência artificial com base no artigo (Foto: ChatGPT)

Por Elaine Santos*

Quando comecei a estudar o tema da energia, lembro que meu professor e orientador, Sinclair Mallet Guy Guerra, me ofereceu, em formato físico, o texto de Cristovam Buarque intitulado O fetichismo da energia. Reflexões sobre o chamado problema energético brasileiro e o papel dos economistas na sua solução, publicado em 1982 na Revista Pernambucana de Desenvolvimento.

Nunca encontrei esse texto digitalizado, mas talvez alguém, lendo este artigo, possa me enviar. Segundo Sinclair, aquele presente era também um desafio: que eu atualizasse o pensamento ali proposto. Sempre o menciono nos meus textos, não apenas pelo legado intelectual e humanista que me deixou, com sua coleção de manuscritos sobre energia e imperialismo energético, mas porque ele acreditava que certos debates precisam ser continuamente aprofundados.

Desde então, passei a compreender a energia não apenas como eletricidade ou petróleo, mas como produção material, a base invisível de tudo o que é produzido, circula e se acumula. E isso inclui também a mineração.

O texto de Buarque foi publicado em um momento de transição no Brasil: o fim da ditadura militar, quando o País buscava retomar o crescimento enquanto enfrentava as consequências da crise do petróleo. O ponto de partida de Buarque era tratar o problema energético como um problema social. Logo nas primeiras páginas, ele afirmava: o “fetichismo da energia” revela que o problema energético brasileiro não é nem energético, nem brasileiro. A raiz da crise, para ele, está na racionalidade econômica global que distorce as relações entre sociedade, natureza e poder. Em suas palavras, “a relação homem-natureza, em sua apropriação e na racionalidade econômica, transformou o sonho de uma sociedade consumista e universal, que os Estados Unidos e a Europa tentaram impor ao restante do mundo, em uma grande aberração dos centros poluídos e poluidores”. Buarque enfatizava que o desequilíbrio energético reside fundamentalmente na demanda. Embora, no curto prazo, o foco recaia sobre a oferta — por força da inércia do parque produtivo —, é na demanda que se encontram algumas das medidas mais eficazes.

Quatro décadas depois, o diagnóstico permanece atual. Talvez por transitar entre dois mundos: o corporativo da energia, onde tudo se resume a números, aumento da oferta e da produção de energia (que nem sempre se traduzem em desenvolvimento, mesmo no seu sentido mais básico); e o mundo dos que ainda se dedicam a pensar criticamente as contradições desse sistema, percebo como o debate energético continua marcado por paradoxos. De um lado, uma racionalidade técnica que ignora o pensamento social; de outro, um discurso que, por vezes, flerta com o irracionalismo, como se fosse possível viver sem energia ou prescindir de sua mediação material.

Esses últimos até tento entender, já que a energia e seus empreendimentos energéticos sempre carregaram consigo a promessa da modernidade e do desenvolvimento — mas que, na prática, têm se traduzido em um “melhorismo” cada vez mais localizado. Já os “contabilistas da energia”, aqueles que resumem tudo a curvas e projeções de oferta e demanda, como se os números fossem uma entidade neutra pairando acima da sociedade… esses, confesso, não entendo.

Um dia desses, estive num debate sobre a geopolítica e estratégias para evitar apagões na Europa, e um dos técnicos presentes reclamava do que chamou de “pseudo-especialistas” debatendo o tema nos meios de comunicação. Mas qual o problema? Isso não seria, ao contrário, desejável? Que bom que todos — e os meios de comunicação — estejam discutindo de forma ampla, temas que interessam a todos. São os zeladores da ordem técnica, mesmo em um debate cujo título envolvia geopolítica.

E assim a tecnocracia vai moldando o debate público…

Essa tensão me lembra uma tese interessante que li tempos atrás, segundo a qual as formulações e soluções para o problema da energia e dos combustíveis estão no campo da política e, portanto, também no das guerras, dos conflitos e das condições materiais que moldam os limites objetivos e subjetivos das ideologias e das ações humanas.

É nesse ponto que a mineração, enquanto produção material e forma de energia, se insere. O lítio, por exemplo, tem sido apresentado como o “novo petróleo”. Mas o que se esconde por trás dessa metáfora? O Brasil tem se posicionado como ator-chave nesse mercado, com reservas significativas e dezenas de projetos de pesquisa e exploração em andamento. No entanto, a base de tudo ainda é extrativista. A transformação industrial desses minerais ocorre, majoritariamente, fora do Brasil, especialmente na China. Isso significa que exportamos matéria-prima bruta, mas importamos a tecnologia refinada e, com ela, o valor agregado.

Apesar do preço do lítio ser extremamente volátil e depender de fatores geopolíticos, tecnológicos e industriais, ele também indica o lugar que ocupamos na divisão internacional do trabalho e da tecnologia: enquanto uma tonelada de concentrado de espodumênio vale atualmente cerca de US$ 800, o hidróxido de lítio, já processado, gira em torno de US$ 8.400 por tonelada (segundo dados de maio de 2025). Embora a diferença tenha diminuído em relação aos picos do início 2024, os valores atuais estão em patamares bem baixos, o que poderá trazer desafios aos novos projetos. A industrialização local ainda pode gerar até dez vezes mais valor econômico e esse adensamento produtivo ainda nos falta, com a exceção parcial da Companhia Brasileira de Lítio que realiza refino químico no País.

Para tentar reverter esse quadro, em janeiro de 2025 foi lançada uma chamada pública BNDES-Finep voltada a projetos de transformação de minerais estratégicos para a transição energética, no âmbito da Política Nova Indústria Brasil. A iniciativa recebeu 124 propostas de 136 grupos econômicos, com destaque para investimentos em terras raras, lítio, cobre e grafite. O objetivo do edital foi agregar valor internamente, promovendo o refino de lítio, a purificação de grafite, a metalurgia de silício e a produção nacional de baterias. O processo prioriza empresas brasileiras, exigindo que as propostas sejam submetidas por companhias nacionais, ainda que possam contar com parcerias internacionais. Dos 124 projetos submetidos, 56 foram selecionados e seus nomes divulgados no último 12 de junho, sendo 20 deles provenientes de Minas Gerais. Embora a iniciativa sinalize um avanço rumo à internalização das capacidades produtivas, isso não garante, por si só, apropriação tecnológica ou redução da dependência estrutural.

Enquanto o Brasil ensaia um passo rumo ao que nomeou de “reindustrialização verde”, o cenário global se movimenta em direções diversas.

Nos Estados Unidos, a Lei de Redução da Inflação (IRA), que previa centenas de bilhões de dólares para a transição energética, vem sendo desidratada desde o início de 2025. O novo governo suspendeu recursos e congelou programas de energia limpa. Empresas, como a Aspen Aerogel, anunciaram o cancelamento de fábricas planejadas e redirecionaram a produção para os EUA, México e China.

A União Europeia, por sua vez, aposta no Critical Raw Materials Act, investindo em capacidade de refino e transformação dentro da Europa e em parcerias com países como o Brasil. E em março deste ano, a Comissão Europeia aprovou 47 projetos estratégicos para reforçar capacidades nacionais no setor das matérias-primas críticas. Em Portugal, quatro projetos foram distinguidos com esse “selo” de credibilidade: três relacionados com o lítio e um com o cobre. Em junho, mais 13 projetos fora da Europa foram anunciados como estratégicos. O objetivo é reduzir a dependência de fornecedores únicos e reforçar a segurança econômica diante de tensões com China e EUA.

No Brasil, apenas o projeto da refinaria de níquel e cobalto de São Miguel Paulista foi selecionado. Já a controversa mina de lítio do Jadar, que provocou resistência na Sérvia, também entrou na lista.

Em 2018, lembro de ter lido no Plano de CT&I em Minerais Estratégicos que o lítio era considerado um mineral estratégico, um dos chamados “portadores de futuro”. O problema é que, neste momento, o Brasil continua exportando esse futuro – em estado bruto, para ser refinado, valorizado e apropriado por outros. Talvez Sinclair dissesse que ainda estamos presos ao mesmo fetichismo que ele me ensinou a questionar. E talvez Buarque dissesse que o problema energético brasileiro continua sendo, sobretudo, político e econômico.


Elaine Santos é pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/

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