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Interesse Nacional
28 fevereiro 2024

A saga da Índia 8 – O templo do deus Rama, em Ayodhya, e o BJP

Em um país de místicos, Narendra Modi está sendo saudado como um “salvador”, e os devotos o veem como nada menos do que uma manifestação de Rama. Cenário leva a um questionamento sobre o justo equilíbrio entre política e religião

Em um país de místicos, Narendra Modi está sendo saudado como um “salvador”, e os devotos o veem como nada menos do que uma manifestação de Rama. Cenário leva a um questionamento sobre o justo equilíbrio entre  política e religião

O primeiro-ministro da República da Índia, Narendra Modi, durante diálogo dos Líderes com o Conselho Empresarial do BRICS (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Por Fausto Godoy*

O artigo Ram Temple Stirs Religious Fervor as India Readies for Election Fever, dos analistas Junaid Kathju e Luqmaan Zeerak, publicado na mais recente edição do The Diplomat, aborda um tema sensível que escapa à compreensão dos que não convivem com o universo – e os conflitos – político-religiosos sempre latentes e que volta e meia afloram de maneira violenta na Índia.

Um dos mais sensíveis, já há muito tempo, é o “status” sagrado do local onde se situava a mesquita de Ayodhya, que tem sido objeto de uma longa disputa entre hindus e muçulmanos. Ayodhya está situada às margens do  rio Ganges, no estado de Uttar Pradesh, no norte da Índia. É um importante centro de peregrinação para os hindus, que adoram “Lord” Rama, um dos avatares do deus Vishnu, que faz parte da trindade suprema do hinduísmo: Brahma, o “Criador”; Vishnu, o “Preservador”; e Shiva, o “Destruidor (de maneira simplista). Os hindus acreditam que o deus nasceu nessa localidade, que é também um ativo núcleo comercial desde o ano 600 AEC.

Os muçulmanos, por sua vez, acreditam que um dos generais do primeiro imperador mogul, Babur, construiu a Babri Masjid (Mesquita de Babur) em 1528, sob suas ordens. Esta crença tornou-se corrente desde 1813-14, quando o agrimensor da Companhia das Índias Orientais, Francis Buchanan, relatou que encontrou uma inscrição nas suas paredes atestando este fato. Ele seguiu a tradição local que acreditava que o imperador Aurangzeb (1658–1707), descendente de Babur, após demolir o templo edificou a mesquita em cima dos escombros. Perdura desde então a polêmica sobre se o edifício foi demolido ou modificado. Os muçulmanos reclamam que oravam no local igualmente sagrado para eles durante gerações até 1949, quando um ídolo de Rama foi colocado sub-repticiamente no seu interior.

A partir do século XIX, houve vários conflitos e disputas judiciais entre as duas comunidades sobre a questão. Eles tomaram rumo violento em 6 de dezembro de 1992, quando a associação religiosa hindu de extrema-direita Vishva Hindu Parishad (VHP) e seu braço político, o Partido Bharatiya Janata (BJP), atualmente no poder em Delhi, organizaram uma manifestação no local envolvendo cerca de 150 mil pessoas, e demoliram o edifício. Este ato desencadeou uma batalha legal que durou décadas e só teve fim em 2019 quando a Suprema Corte da Índia autorizou a construção de um templo hindu no local.  

Sem surpresa, a resistência à demolição recaiu desproporcionalmente sobre a minoria muçulmana de Ayodhya: …”eles [as autoridades] tentaram muitas coisas para nos retirar deste lugar, mas minha família não vai a lugar nenhum. Eles têm que nos matar se quiserem ocupar este lugar”, disse o zelador muçulmano da mesquita. 

O governo do primeiro-ministro Narendra Modi, do BJP, reivindicou o crédito pelo “resgate” e reconstrução do templo; e preparativos estão em andamento para sediar uma retumbante cerimônia de consagração no próximo dia 22 de janeiro, ainda que a construção somente deva estar concluída em 2027. Grupos da agremiação radical Hindutva transmitirão o evento, que contará com a presença de Modi e outros líderes do BJP, em telas gigantes em cidades de toda a Índia, bem ao estilo grandiloquente do Primeiro-Ministro… Ayodhya ostenta  atualmente um look festivo; a cidade está tomada por uma febre religiosa. Os cânticos de Jai Shri Ram (Vitória ao Senhor Rama) reverberam por todos os cantos; devotos estão chegando de todas as regiões da Índia. 

Neste cenário, subjaz uma mensagem política contundente e preocupante: num país de místicos, Narendra Modi está sendo saudado como um “salvador”; os devotos o veem como nada menos do que um avatar (manifestação) de Rama…”foi ele quem tornou tudo isto possível”, dizem. 

O timing desta consagração, cerca de três meses antes de a Índia ir às urnas para sufragar  – está praticamente consolidada, segundo os analistas -, a vitória do Bharatiya Janata Party e do premiê Modi, corrobora o seu caráter definitivamente político. Mais do que isto, a maioria da população da Índia, sobretudo a mais jovem (mais de 50% dela tem menos de 25 anos de idade), está tomada por um fervor político que beira a devoção, o que é extremamente preocupante diante do proselitismo do primeiro-ministro a respeito da supremacia hindu. Afinal, não devemos nos esquecer que a população muçulmana, com cerca de 204 milhões de indivíduos (estimativa de 2019), é a segunda maior do país e a terceira maior do mundo. Este cenário político vai, portanto, em contra ao que sufraga a própria Constituição do país, que reza:

“NÓS, O POVO DA ÍNDIA tendo solenemente resolvido constituir a Índia em uma SOBERANA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA LAICA SOCIALISTA e assegurar a todos os seus cidadãos:

JUSTIÇA, social, econômica e política; 

LIBERDADE de pensamento, expressão, crença, fé e culto; 

IGUALDADE de status e de oportunidades; e promover entre todos a FRATERNIDADE assegurando a dignidade da pessoa e a unidade e integridade da Nação…”

E fica a pergunta que não quer se calar, aliás aplicável a vários contextos mundiais atuais: qual é o justo equilíbrio entre  política e religião?


*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

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