Estado, Constituição e defesa da democracia – Pressupostos para o Brasil que podemos vir a ser
País tem passado por turbulências sociais e políticas dos últimos meses e anos, mas é possível pensar estratégias para que instituições funcionem de forma plena e a favor da sociedade. Para pesquisador, é preciso superar leituras míopes que atrasam o país, compreender melhor o projeto constitucional inaugurado em 1988 e evitar a omissão diante das […]
País tem passado por turbulências sociais e políticas dos últimos meses e anos, mas é possível pensar estratégias para que instituições funcionem de forma plena e a favor da sociedade. Para pesquisador, é preciso superar leituras míopes que atrasam o país, compreender melhor o projeto constitucional inaugurado em 1988 e evitar a omissão diante das injustiças perpetradas
Por Felipe Tirado*
Nos últimos meses, o Brasil passou por uma série de experiencias que levam a uma reflexão sobre o que entendemos por Estado, democracia, direito, as instituições e seus deveres. Algum tempo após eleições extremamente conturbadas, discursos e atos terroristas e golpistas, mais do que compreender melhor o que houve, é necessário estabelecer formas de obstar que tais fatos se repitam. Através de uma crítica construtiva (e um tanto quanto otimista), este texto busca apresentar ao menos três tarefas fundamentais ao desenvolvimento do Estado Democrático de Direito que podemos vir a ser.
Como muitos têm defendido — como Conrado Hübner faz semanalmente na Folha — para o país chegar onde chegou, as instituições não estavam propriamente funcionando ou, em casos extremos, citando o podcast Medo e Delírio em Brasília, “dormiam furiosamente”. Evidências dessas declarações podem ser vistas nas mais diversas ações e omissões de variadas instituições estatais — em maior ou menor medida, a depender de como estas cumprem suas funções constitucionalmente atribuídas.
Evidentemente, isso não quer dizer que indivíduos que compõem essas instituições não estivessem trabalhando. Certamente, a grande maioria está. Alguns indo muito além de seus deveres funcionais, inclusive. Dois exemplos claros, na história recente, são o indigenista, servidor da Funai, Bruno Araújo Pereira e muitos profissionais da saúde, em especial aqueles do SUS, durante a pandemia de Covid-19. Entretanto, como sabe qualquer estudante de instituições, o resultado do conjunto é maior do que a soma das partes.
A afirmação de que algumas partes não estejam funcionando também não quer dizer que as instituições não poderiam funcionar, que estão fadadas ao fracasso. Pelo contrário, denota a esperança de que elas passem a funcionar cada vez melhor. Entretanto, como supõe o argumento, para que isso ocorra, é necessário que a maioria das partes atue de forma diligente, na maior parte do tempo. Este texto é sobre isso — a necessidade de um compromisso com o Estado brasileiro, aquele que podemos vir a ser.
Para tanto, é necessário que alguns pressupostos básicos sejam aceitos. Inicialmente, a partir das afirmações acima, é evidente que trabalho de qualidade é feito, e que as instituições de Estado podem ser ainda melhores. É necessário, assim, rejeitar leituras que negam o Estado (e seus papéis) em razão de uma impossibilidade estrutural ou natural de o Brasil “dar certo” ou mesmo decorrente de síndromes de vira-lata. Interpretações recorrentemente expressas por diversos membros do governo anterior. Leituras que percorrem a história da nação desde sua fundação, tanto de perspectivas oficiais quanto acadêmicas, como muito bem apontam e criticam Marcelo Cattoni e Jessé Souza. Ter um olhar crítico sobre essas perspectivas retrógradas e compreender o importante papel do Estado no Brasil é fundamental.
Na esteira do primeiro pressuposto, outro ponto essencial é o compromisso com o projeto constitucional iniciado em 1988. Ao contrário do que alguns pregam, o projeto iniciado em 1988 ainda está vigente (e não, não autoriza o que quer que seja uma “intervenção militar constitucional”). Com alguma amplitude de interpretação, trata-se de um projeto de uma república, uma democracia social, que tem como objetivos fundamentais: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Está logo no início do texto, no Artigo 3º, não precisa ler muito, mas vale a pena lembrar constantemente. Qualquer que seja o fundamento da política pública a ser empreendida ou a despeito da autonomia e (pretensa) independência da autarquia pública, esses são os objetivos fundamentais a serem observados.
Por fim, em sentido já defendido na Interesse Nacional, é necessário rejeitar, com oposição veemente, discursos e atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Não bastam juras de amor à democracia ou composição de grupos de trabalho especiais após o cometimento dos atos, e os inúmeros danos decorrentes deles. É necessário trabalhar diligentemente contra esse tipo de conduta. Uma tarefa que pode ser empreendida por diversas instituições, a partir de sua competência constitucional. Quanto mais procrastinação ou omissão, maior o dano presente e futuro às instituições.
Em conclusão, para que sejamos o país que podemos ser (e sim, nós podemos), é necessário que ao menos esses três pressupostos sejam seguidos. Devemos superar leituras míopes feitas no passado que nos amarram e, de forma reificante, nos atrasam até os dias de hoje. Temos que compreender melhor o projeto constitucional inaugurado em 1988, e os objetivos que guiam a República. Não podemos mais nos omitir ou protelar diante das injustiças perpetradas — que quanto maiores forem, mais premente deve ser a reação. Que sejam esses os pontos de partida para que sejamos o país sonhado por aqueles que promulgaram a constituição mais democrática de nossa história, o Brasil que certamente podemos vir a ser.
*Felipe Tirado é doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute
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